Brasil convive com cenários extremos na oferta de água
Valor Econômico – 05/06/2012
Respondida por 134 governos nacionais, uma pesquisa da agência de águas da ONU (UN-Water) trará um novo dado aos participantes da Rio+20, que fará de 19 de junho seu dia da água. Desde 1992, quando representantes de cem países e 80 organismos intergovernamentais e não governamentais, reunidos em Dublin, capital da Irlanda, previram um futuro dramático para a água doce do mundo, cerca de 80% dos países criaram ou reformularam suas leis rumo à gestão dos usos múltiplos do precioso líquido.
O Brasil está bem nessa foto, com um sistema de gestão e uma Política Nacional de Recursos Hídricos estabelecidos na Lei 9.433, em 1997. Baseada no modelo francês, que define bacias hidrográficas como unidades de gestão, ela reconhece a água como bem econômico, prevendo a cobrança pelo seu uso e a gestão tripartite formada por governo, sociedade civil e usuários, em geral grandes consumidores. Além de racionalizar o consumo, a lei visa amenizar conflitos entre os usos – do abastecimento público ao lançamento de dejetos, ou navegação – bem como a disparidade de cenários.
Detentor de 12% de água doce do planeta, o Brasil concentra 80% desse total na região Amazônica. Enquanto um cidadão de Roraima dispõe de 1,74 milhão de m3 de água por ano, o índice de Pernambuco é de apenas 1,3 mil m3 por habitante/ano, menos que o mínimo preconizado pela ONU para o consumo humano.
Uso incorreto do solo agrícola, crescimento urbano desordenado e a poluição agravam as diferenças. Por exemplo, a degradação do rio Tietê levou a população da capital paulistana a abastecer-se com água da bacia do rio Piracicaba, que hoje faz falta no interior paulista. A erosão e o assoreamento dos cursos d”água devido ao desmatamento, bem como a crescente impermeabilização do solo urbano, ampliam efeitos de eventos climáticos extremos, como inundações. Que, segundo estudos do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), tendem a multiplicar-se devido ao aquecimento global.
Ocorre que, passados 15 anos da Lei das Águas, o país ainda está instalando a nova estrutura. Lançado ontem pela Agência Nacional de Água (ANA), o documento “Conjuntura de Recursos Hídricos no Brasil – 2012” revela que o país já tem 176 comitês de bacias hidrográficas, dos quais sete de âmbito interestadual. Só que a soma não cobre todo território nacional.
Degradação do Tietê leva capital paulistana a abastecer-se da bacia do rio Piracicaba, afetando o interior
Com valores estabelecidos pelos próprios comitês e retorno do dinheiro para projetos locais definidos em conjunto, a cobrança pelo uso da água só pode existir se houver o plano de bacia que, à semelhança de planos diretores, relaciona metas, projetos e critérios da arrecadação e aplicação dos recursos. Só parte dos comitês cumpriu essa etapa. No âmbito interestadual, eles abrangem uma faixa que vai da margem direita do rio Amazonas, passa pelas bacias do Tocantins-Araguaia e do rio São Francisco, chegando às dos rios Doce, Paraíba do Sul e PCJ, sigla os rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí.
Entre os 169 comitês estaduais, pouco mais da metade (56,8%) estabeleceu esses planos até final de 2011, sobretudo nas regiões sul, sudeste e nordeste do país. Se no âmbito interestadual a própria ANA recebe os recursos, os comitês estaduais também tem de criar agências de bacia, como braço executivo, antes de cobrarem pela água.
“Os avanços institucionais acontecem nas regiões mais afetadas por deficiências na quantidade ou qualidade da água, e por conflitos entre os usos”, interpreta Sergio Ayrimoraes, superintendente de planejamento de recursos hídricos da ANA, que usa outro dado para contrapor críticas. Antes de 1997, diz ele, cinco estados tinham lei ou política de recursos hídricos. Hoje todos têm.
Dos sete comitês de bacias de domínio da União, só quatro já cobram o uso da água: rio Doce, Paraíba do Sul, São Francisco e o PCJ. Entre os estaduais, o Rio de Janeiro é o único Estado com a cobrança em todo território. Logo atrás vêm São Paulo e Minas Gerais, parcialmente cobertos pelo sistema, seguidos do Espírito Santo e Paraíba, onde a implantação está em curso.
Ao todo, R$ 131 milhões foram recolhidos em 2011, valor próximo ao orçamento anual da ANA. “Pode parecer pouco, mas se bem investidos em gestão, conseguem fazer diferença”, garante Ayrimoraes. A maior fatia coube ao Comitê do São Francisco. Cerca de 64% dos R$ 21,8 milhões arrecadados vieram do Ministério da Integração, responsável pela transposição do São Francisco.
Na outra ponta, o Comitê do Rio Doce, que iniciou a cobrança em novembro, optou por recolher apenas em 2012 os R$ 1,76 milhão devidos. Segundo o superintendente adjunto da ANA, serão aplicados no controle da poluição e equacionamento das cheias na região.
O leque de aplicações do dinheiro pelos comitês inclui desde ações estruturais, como obras de saneamento, até não estruturais, por exemplo educação ambiental, ou planejamento. Mas uma pesquisa conduzida pelas agências dos rios Paraíba e PCJ com a ANA na virada de 2010 para 2011 indicou que, apesar de entenderem a cobrança como indutora da racionalização do uso da água, os usuários preferem obras, como estações de tratamento de esgoto.
Reflexo dos problemas em regiões mais urbanizadas? Segundo o IBGE, 90,9% da população urbana é atendida pela rede de água, mas só 61,8% contam com a coleta de esgotos e, pior, só um terço do coletado é tratado.