Ana Costa: Dia internacional da mulher

No Brasil a cada quatro minutos uma mulher é agredida em seu próprio lar. Em 2009, a igreja católica excomungou família e médicos que realizaram aborto legal em uma menina de 9 anos, grávida de gêmeos, estuprada pelo padrasto desde os seis anos. A mulher ainda trabalha mais (somado às atividades domésticas) e ganha menos no mercado de trabalho que o homem, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O cenário ainda não é dos melhores para a população feminina no país. Por outro lado, houve diversas conquistas ao longo do último século em relação aos direitos da mulher. Quem fala sobre essas mudanças, em especial no que diz respeito à saúde, é a médica sanitarista doutora em ciências da saúde, autora do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) e diretora do Cebes, Ana Costa.
Sobre a interrupção segura da gravidez – uma reivindicação história do movimento feminista-, Ana, que também é estudiosa do tema gênero e saúde, e sempre defendeu a autonomia das mulheres em decidir sobre seu próprio corpo, se diz pessimista: “O Congresso Nacional está armado na luta anti-aborto que hoje é objeto de organizações internacionais com financiamento abastado”. Confira a entrevista.

1) Nas últimas décadas, foram introduzidas na agenda social e internacional as questões voltadas para saúde além da reprodutiva, apontando a saúde sexual. Qual é a real conquista para as mulheres com a inclusão dos problemas relacionados à “saúde sexual”? Na prática, isso mudou a realidade das mulheres?

De fato, as conferências do sistema da ONU ocorridas nas décadas de 80 e 90 avançaram e ampliaram os direitos das mulheres no que diz respeito à sexualidade e à reprodução. Definitivamente, estes avanços garantem o livre e saudável exercício da sexualidade independente da reprodução que, por sua vez, deve ser objeto de garantias quanto à autonomia na escolha entre ter e não ter filhos. No entanto, a saúde sexual deve ser vista no contexto da saúde integral, ou seja, o estado de equilíbrio físico, mental, espiritual e social. Portanto, não há saúde sexual sem saúde integral e vice-versa. É necessário lembrar que a conquista da saúde das coletividades é produto do processo de acumulação social gerando o desenvolvimento com universalização das políticas sociais. O acesso universal aos bens e serviços oferecidos pelas políticas sociais é estratégia que tem eficácia na mudança das situações e condições que determinam a saúde.
Compreender a saúde sexual na complexidade da saúde é fundamental para todo o processo de oferta de mecanismos que resultem em “bem estar sexual”. O Brasil tem grande responsabilidade e importância na contextualização da saúde sexual como elemento imprescindível da saúde integral das mulheres e das pessoas.
Por outro lado, inerente ao conceito de saúde sexual é importante que os direitos sexuais resguardem a liberdade e a autonomia das mulheres. Os direitos sexuais e reprodutivos são fundamentais na consolidação da nossa democracia. Integram esses direitos desde a livre orientação sexual até a liberdade decisória em relação ao aborto.

2) O movimento feminista e outras organizações tiveram participação importante na inclusão do conceito de saúde reprodutiva articulado com os direitos reprodutivos e sexuais. Qual a importância do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), criado na década de 1980, nesse cenário?

O PAISM foi um importante marco de mudança na forma de pensar e fazer a saúde das mulheres, que anteriormente era focada apenas nos aspectos maternos – gestação, parto e puerpério. A desconsideração das condições de gênero na análise da saúde partia de um pré-conceito da homogeneidade das pessoas que constituem a população.
É o PAISM que, mesmo não explicitando o conceito de gênero, inaugura na saúde a valorização das especificidades – física, psíquicas e sócio-culturais das mulheres. Estas especificidades compõem o processo de determinação social do processo saúde-doença.
Mesmo incipiente à época, o movimento feminista apoiou as bases conceituais e políticas contidas no PAISM. É importante lembrar a tensão política que o país vivia: além da ditadura que subtraia as liberdades, havia interesse de expressivos setores da sociedade e dos poderes em instituir políticas de controle demográfico. Estas políticas deveriam impor às pessoas e aos casais o número de filhos, o tamanho da família. Apontado por esses setores como caminho para o desenvolvimento, estas iniciativas significavam a mutilação a um direito básico, o de escolher como, quando e quantos filhos ter…e trata-se de uma questão que envolve centralmente as mulheres.

3) Levantamento parcial da Lei Maria da Penha, sancionada em agosto de 2006 para punir a violência doméstica contra mulheres, revela que só 2% dos processos concluídos resultaram em condenação ao agressor. Os dados são do Conselho Nacional de Justiça de 2009. De que forma essa violência afeta a saúde das mulheres?

O cumprimento da Lei Maria da Penha tem um significado de mudança de cultura – na sociedade, família e nas instituições. A naturalização da violência contra a mulher está fundada nos valores que a sociedade atribui às mulheres na hierarquia social. Além disso, os assuntos privados não eram priorizados para o tratamento na esfera pública.
O setor da saúde hoje foi assumir responsabilidade sobre a prevenção da violência bem como na atenção e cuidado às mulheres violentadas. Há muito o que aperfeiçoar, ampliar cobertura e qualidade. Mas já existem iniciativas de gestão de informação que apontam claros caminhos.
A ação intersetorial tanto no amparo às vítimas como no controle e erradicação da violência, é de fundamental importância. O trabalho do setor da saúde carece de complementariedade do setor de segurança pública e depende das políticas sociais que promovem a melhoria das condições de vida com mais educação, trabalho, emprego, renda, etc. Apesar da violência sexual e doméstica não respeitar classes sociais e escolaridade, não há dúvida de que a autonomia financeira das mulheres contribui para que elas saiam da situação familiar ou social de violência domésti