Reformas tributária e fiscal e o financiamento da seguridade social e do Sistema Único de Saúde (SUS)
Uma das prioridades do 3o mandato do presidente Lula é a agenda de reformas tributária e fiscal. Francisco R. Funcia escreveu no portal Domingueiras sobre como isso pode afetar o financiamento da seguridade social e do Sistema Único de Saúde. No texto, o economista frisa que “além da mudança da regra fiscal do teto de despesas primárias, se não houver uma nova regra de cálculo do piso federal da saúde, haverá menos recursos orçamentários para 2024 em comparação a 2023, com a retomada do valor do piso congelado no valor de 2017 estabelecido na Emenda Constitucional 95/2016”.
Francisco R. Funcia é economista (PUC-SP), Doutor em Administração (USCS) e Mestre em Economia Política (PUC-SP), Professor dos Cursos de Economia e Medicina da USCS, Pesquisador do Observatório de Políticas Públicas, Conjuntura, Empreendedorismo e Inovação da USCS (Conjuscs) e Presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).
Veja o texto a seguir:
As agendas das reformas tributária e fiscal ganharam prioridade nesses primeiros dias do novo governo federal, sob a coordenação do Ministério da Fazenda. O objetivo desta nota resumida é apontar aspectos dessas duas agendas que podem impactar o processo de financiamento da seguridade social e do SUS.
Em linhas gerais, conforme consta em https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/fevereiro/brasil-aumenta-potencial-de-crescimento-com-reforma-tributaria-afirma-bernard-appy, a reforma tributária, cuja tramitação está sendo priorizada pelo governo federal, tem como objetivo principal a substituição de vários tributos – Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), de competência federal, Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), de competência estadual, e Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), de competência municipal – por um único imposto sobre o valor adicionado, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência federal (conforme consta na PEC 45), ou por dois tributos, um imposto sobre bens e serviços, subnacional, e uma contribuição sobre bens e serviços, federal (conforme consta na PEC 110).
É importante destacar que há mais uma proposta de reforma tributária (a PEC 46), que visa também a simplificação da tributação sobre consumo, chamada de “Simplifica já”, que os prefeitos têm demandado a incorporação nos estudos que estão sendo realizados pelo Ministério da Fazenda (conforme https://fnp.org.br/noticias/item/3019-fnp-defende-autonomia-dos-municipios-na-reforma-tributaria).
Os tributos a serem substituídos são fontes específicas de financiamento da seguridade social na esfera federal e da base de cálculo dos pisos estaduais e municipais de saúde. Nessa perspectiva, seria importante conhecer os estudos sobre os impactos dessas propostas, considerando principalmente que foram retirados recursos do SUS em mais de R$ 37 bilhões de 2018 a 2022, por causa do congelamento do valor do piso federal da saúde conforme regra de cálculo estabelecida pela Emenda Constitucional 95/2016, conforme estudo da Nova Política de Financiamento da Saúde coordenado pela Associação Brasileira de Economia da Saúde/ABrES (disponível em https://www.ie.ufrj.br/images/IE/grupos/GESP/gespnota2022_ABRES%20(2).pdf ).
A propósito da regra fiscal, o objetivo da mudança anunciada pelo Ministério da Fazenda é substituir o “teto de gastos” fixado pela Emenda Constitucional 95/2016 por outro mecanismo de controle das despesas públicas, além de corretamente apontar que a atual regra não trata de como aumentar a receita pública, que também integra a política fiscal.
Trata-se de intenção governamental bastante importante para o financiamento das políticas públicas em geral, e da saúde em especial. Segundo a regra do teto de despesas primárias, o limite máximo dos gastos do governo federal corresponde aos valores pagos em 2016, atualizados somente pela variação do IPCA/IBGE. Com isso, nenhum centavo de aumento de receita até 2036 poderiam ser destinados para o financiamento federal na prestação de serviços nas áreas de saúde, educação, habitação, infraestrutura, saneamento, etc., reduzindo também as transferências para esse fim aos governos estaduais e municipais.
O esgotamento dessa regra de controle das despesas apareceu no Projeto de Lei Orçamentária de 2023, encaminhado ao Congresso Nacional no final de agosto de 2022. No caso do Ministério da Saúde, várias programações tiveram grande redução de valor para 2023, algumas acima de 60%, incluindo saúde indígena, programa de vacinação, atenção primária à saúde, formação de profissionais de saúde, dentre outras.
Com a PEC da Transição, aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro/2022, houve um incremento de recursos para as despesas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) do Ministério da Saúde superior a R$ 21,2 bilhões (14,2%), passando de R$ 149,9 bilhões para R$ 171,1 bilhões.
Após essa revisão aprovada para o orçamento ASPS 2023, as subfunções orçamentárias específicas da Função Orçamentária “Saúde” tiveram os seguintes acréscimos: “Atenção Básica” 45,6%, “Assistência Hospitalar e Ambulatorial” 29,7%, “Suporte Profilático e Terapêutico” (ou Assistência Farmacêutica) 19,7%, “Vigilância Epidemiológica” 21,1% e “Alimentação e Nutrição” 158,0%. Outras subfunções orçamentárias classificadas como despesas ASPS no Ministério da Saúde também tiveram acréscimos expressivos, como por exemplo, “Desenvolvimento Tecnológico e Engenharia” (2.932,7%), “Formação de Recursos Humanos” (158,8%) e “Assistência aos Povos Indígenas” (161,3%).
Mas esses R$ 171,1 bilhões para ASPS representam menos de 15% da Receita Corrente Líquida da União estimada para 2023, portanto, abaixo da regra de cálculo da Emenda Constitucional 86/2015, que foi suspensa por 20 anos pela Emenda Constitucional 95/2016. Entretanto, nem a regra da Emenda Constitucional 86/2015 e muito menos a regra da Emenda Constitucional 95/2016 atendem a necessidade de financiamento do SUS.
Nessa perspectiva, seria muito importante que houvesse a revogação dessas duas Emendas Constitucionais e a aprovação de uma outra com regra de cálculo do piso federal da saúde que não contenha fatores como receita ou produto interno bruto, porque são vinculados à dinâmica cíclica da economia. Na crise econômica, por exemplo, as necessidades de saúde da população aumentam, mas a receita cai e, com isso, reduz o financiamento do SUS se esse fator estiver presente na regra de cálculo do piso (conforme abordado no citado estudo da ABrES).
Portanto, além da mudança da regra fiscal do teto de despesas primárias, se não houver uma nova regra de cálculo do piso federal da saúde, haverá menos recursos orçamentários para 2024 em comparação a 2023, com a retomada do valor do piso congelado no valor de 2017 estabelecido na Emenda Constitucional 95/2016. Além disso, o acréscimo obtido no orçamento de 2023 é insuficiente para se cumprir o dispositivo constitucional que a saúde é direito de todos e dever do estado – não é porque a regra da Emenda Constitucional 95/2016 é ruim, que transformará em aceitável a regra da Emenda Constitucional 86/2015.
O citado estudo da ABrES aponta para uma regra de transição para calcular o piso federal da saúde e apresenta três cenários de crescimento gradual das despesas ASPS: um deles, o gasto público federal representaria no mínimo 50% do gasto público total, ou seja, alcançaria o equivalente ao valor de 3% do PIB (superando o nível histórico que predominou nas últimas décadas em torno de 1,6% e 1,7% do PIB).
Acesse aqui a matéria publicada originalmente no portal Domingueiras.