Comércio de sangue plasma, jamais!
Proposta de emenda que visa permitir a comercialização do plasma no Brasil conta com o apoio de diversos senadores e está em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça. A proposta de comércio do plasma foi tema do Cebes Debate da última segunda-feira (11). O programa está disponível aqui.
“Estou vendendo o sangue”. Algo que para muitos pode soar como metafórico já fez parte de uma realidade do Brasil e volta à discussão atual a partir da proposta de emenda à Constituição Federal (PEC) 10/2022, ou PEC do Plasma, que visa permitir a venda de plasma humano para o desenvolvimento de novas tecnologias e produção de medicamentos.
A comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas é proibida pela constituição, mas até 1998 não havia a regulamentação do dispositivo. Foi uma luta do então deputado Sérgio Arouca que criou o projeto de lei – conhecida como Lei Betinho – que regulamenta a proibição de comercialização de sangue e de seus derivados. O projeto ficou em tramitação na câmara durante oito anos até sua aprovação.
Betinho, apelido de Herbert José de Souza, foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro que se dedicou ao projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Em 1986, ele descobriu ter contraído o vírus da imunodeficiência humana em uma das transfusões de sangue a que era obrigado a se submeter periodicamente devido à hemofilia.
A proposta de emenda que está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) tem o objetivo de modificar o Artigo 199, que estabelece as normas para coleta e processamento do plasma humano. A votação que aconteceria nesta quarta-feira, 13, foi retirada da pauta a pedido da relatoria. Na PEC, a comercialização do plasma deixaria de ser proibida.
Para o presidente do Cebes, Carlos Fidelis, este projeto vem na esteira de outros que solapam a soberania brasileira, atingem fortemente a saúde da população e prejudicam projetos como o Complexo Econômico e Industrial da Saúde e a Hemobrás. “A gente já está vendendo água, vendendo nossas bacias hidrográficas como aconteceu em Brumadinho, e agora também pretendem vender nossa soberania e a saúde do povo brasileiro”.
O parecer entregue pela relatora da proposta, senadora Daniella Ribeiro (PSD – PB) estabelece o seguinte:
“§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de pesquisa e transplante, pesquisa e tratamento, bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização, com exceção ao plasma § 5º A Lei disporá sobre as condições e os requisitos para a coleta, o processamento e a comercialização de plasma humano pela iniciativa pública e pela iniciativa privada, para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de medicamentos hemoderivados destinados a prover preferencialmente o SUS” .
Leia aqui a íntegra do relatório.
A autoria da PEC é do senador Nelsinho Tred (PSD – MS) e conta com a assinatura de diversos outros senadores. Veja aqui.
A ex-secretária executiva do Ministério de Saúde, Ana Paula Menezes, aponta para o risco deste tipo de proposta. “Quando temos essa possibilidade de coleta remunerada, isso está associado de uma forma muito direta à questão da exploração dos pobres e da população mais vulnerável, constituindo uma grande violação da dignidade humana”, disse.
“Se você retira o plasma, está abrindo uma porteira para que outros tecidos e órgãos possam ser vistos e tratados como mercadoria. Isso jamais pode ser franqueado nessa perspectiva de atender uma necessidade de mercado”. Ana Paula Menezes
O Cebes, assim como outras entidades como Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MPTCU) e outras já manifestaram sua posição contrária à proposta.
A Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) apresentou um documento com dez motivos que justificam o arquivamento da PEC do Plasma. São eles:
- Comercialização do plasma – impacto na doação de sangue
- Retirada de item sobre remuneração do doador
- Destino da coleta privada do plasma – necessário fortalecimento da hemorrede
- Desperdício de plasma excedente pelos bancos privados
- Rota do plasma brasileiro
- Produção e aumento do preço dos medicamentos
- Da capacidade e ampliação da Hemobrás
- Distanciamento do abastecimento prioritário
- Desafio do abastecimento
- Construções para uma nova Política de Sangue
A íntegra do documento pode ser acessada neste link ou no final desse texto.
Posição do governo – O Ministério da Saúde criou um grupo técnico composto pela Hemobrás, Hemorrede e Programa Nacional de Qualificação da Hemorrede (PNQH) para promover a qualificação técnica e gerencial da Hemorrede para que ela possa recolher todo o plasma para fins industriais da Hemobrás. De acordo com a coordenadora geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, Joice Aragão, o PNQH foi encontrado pela atual gestão “bem debilitado”. “Nos últimos anos não houve qualquer investimento e fortalecimento ou ampliação que efetivamente contribuísse para que a Hemorrede pudesse ampliar a oferta de plasma pronto para fins industriais”, explica.
De acordo com Joice, o ministério tem realizado uma parceria estreita com a Hemobrás e outros hemocentros. “O que posso dizer é que nós da coordenação de sangue e o Ministério da Saúde temos todas as condições de encarar um processo de qualificação da Hemorrede. Não existe entre nós da equipe qualquer dúvida de que temos que encarar este grande desafio”.
Joice refuta a tese apontada pelos defensores da PEC de que o Brasil não possui condições de manipular o plasma de forma suficiente. “Essas alegações não são verdadeiras e não correspondem às intenções neste momento do governo”. Para ela, é possível chegar a uma produção de 500 mil litros a partir da qualificação da Hemorrede em parceria com o trabalho de auditoria da Hemobrás e uma logística adequada.
“A quem interessa que nosso plasma tome outros rumos? Não a nós do ministério, não a nós brasileiros e brasileiras.” Joice Aragão
O plasma – O plasma é a parte líquida do sangue, composta principalmente de água, mas também contém várias proteínas, eletrólitos, hormônios, nutrientes e resíduos. É um componente que pode ser utilizado no desenvolvimento de novas tecnologias e medicamentos.
Hoje, no Brasil, o plasma é coletado a partir do sangue das doações. O argumento da PEC é que o país desperdiça o plasma. Por isso, propõe a coleta individual e a comercialização, o que pode aprofundar ainda mais a vulnerabilidade de inúmeros brasileiros e fortalecer um novo mercado.
De acordo com Ana Paula Menezes, hoje Hemobrás está funcionando com superávit e produção de receita. “O medicamento hemoderivado vendido pela Hemobrás ao SUS hoje, custa na ordem de R$1.100, quando se compra o importado é R$ 1.800. Então estamos falando de racionalidade, de melhor medicamento porque traz nossa bagagem genética e mais barato, porque é produzido aqui”.
Atualização: Nesse dia 15 de setembro, o governo federal divulgou nota sobre a PEC 10/2022 onde informa que: “é contrário à remuneração, compensação ou comercialização na coleta de sangue ou de plasma“. No texto, destacou o “caráter estratégico do setor para a autonomia nacional“. E finalizou com a seguinte informação:
“Assim, a maior participação da iniciativa privada, que pode advir de uma negociação no texto da PEC 10/2022, deve ocorrer sob regulação do Poder Público e limitada ao transporte, armazenamento e processamento do plasma, tendo em vista o atendimento prioritário às necessidades do SUS”.
Assista o Cebes Debate nesse link ou a seguir:
Acesse o PDF com Dez Motivos que Justificam o Arquivamento da PEC do Plasma (PEC 10/2022):