Matheus Falcão: ‘Precisamos construir a digitalização do SUS a partir das necessidades do território’
O diretor do Cebes, Matheus Falcão falou com a jornalista Daiane Batista, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho, sobre os benefícios e os riscos da Saúde Digital no Brasil. Ele aborda a iniquidade da sociedade brasileira no acesso à tecnologias e conexão com internet e como esses fatores devem ser pensados na digitalização da Saúde no País. Veja a seguir a matéria.
“A inteligência artificial é um conjunto de inovações tecnológicas, muito associadas a coleta e processamento de dados, junto à capacidade de transformar esses dados em informações”, explica o pesquisador Matheus Falcão, integrante do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz.
De acordo com Matheus, quanto maior for a base de dados, mais possibilidades de inovações teremos, inclusive, no campo da saúde, onde “essas tecnologias têm nos permitido ampliar esse dado para além do aspecto clínico, pois ele é também, epidemiológico, genético e de comportamento”. O pesquisador enfatiza que é justamente ao mapearmos essas inovações junto às transformações sociais, que chegamos à saúde digital.
Para Matheus, as mudanças trazidas pela nova sociedade digital compreendem tanto as inovações tecnológicas quanto as mudanças sociais. Ele cita a pesquisadora Ilara Hammerli da Ensp, ao destacar que as inovações não devem ser nem “tecnofóbicas, negando a tecnologia, nem tecnofóricas, achando-se que a tecnologia irá solucionar todos os nossos problemas”.
No caso da saúde digital, explica Matheus, não é diferente, nos expondo constantemente a riscos e benefícios, que vão desde o vazamento de dados, utilizados contra a própria pessoa, para excluí-la de determinada cobertura do plano de saúde, por exemplo, até a utilização de instrumentos digitais para diagnóstico e das ferramentas de telessaúde que permitem chegar a regiões mais afastadas.
Para o pesquisador, é justamente em prol de canalizar essas inovações aos seus benefícios potenciais e para proteger a população de eventuais riscos, que é tão importante que o Estado tome as rédeas e o controle desse processo social da transformação digital da saúde. “A criação de uma Secretaria de Saúde Digital é um passo muito importante”, considera Matheus. “É preciso mapear bem os riscos, os potenciais e a capacidade do Estado brasileiro de lidar com essa situação. Mapear nossa capacidade tecnológica e não simplesmente ancorar o nosso desenvolvimento em grandes empresas estrangeiras, por exemplo”, propõe.
O pesquisador salienta, entretanto, que somente a criação de uma Secretaria de Saúde Digital não é suficiente, pois, há muito tempo, existem no Ministério da Saúde ações como a Política Nacional de Informação Informática em Saúde (PNIIS), responsável por orientar os procedimentos de tecnologia da informação e comunicação (TICs) de todo o sistema de saúde brasileiro. “A PNIIS já está na sua terceira edição, discutindo esse tipo de ação desde a década de 90. Nesse sentido, ter uma Secretaria de Saúde Digital é muito importante, mas é apenas um, entre vários passos para controlarmos esse processo tecnológico em favor do direito à saúde”.
A inovação tecnológica e os excluídos digitais
A transformação digital da saúde não deve gerar mais exclusão, alerta Matheus, explicando que num cenário de iniquidades, como o brasileiro, ainda temos uma profunda injustiça social, que, no âmbito digital, reflete-se na falta de infraestrutura e conectividade nos territórios.
Para o pesquisador, pensar as condições para a saúde digital, amplia a própria ideia de direito à saúde, ao trabalhar “não só infraestrutura clínica, mas a infraestrutura de vigilância e a infraestrutura que assegure direito de conectividade, e o acesso à internet”.
O pesquisador cita estudo do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e do Instituto Locomotiva (ver aqui), voltado a mensurar as barreiras e limitações no acesso à internet móvel pelos usuários das classes C, D e E, que revelou que uma grande parte da população brasileira, especialmente as classes citadas acima, deixa de acessar serviços públicos por não ter acesso à internet ou a um instrumento como um telefone inteligente. “Se não considerarmos isso na equação da saúde digital, potencialmente, estaremos gerando mais desassistência”, avalia.
Conforme destaca, a partir da abordagem da pesquisadora Ilara Hammerli, Matheus propõe a reflexão constante sobre os riscos do pensamento tecnofórico na saúde, como se “bastasse encher o SUS de computador e de software para resolver as coisas”.
Para o pesquisador, é preciso ir além, pois “existe uma dimensão social muito importante, em que a digitalização do SUS, não se dá apenas a partir das inovações e técnicas, mas também, a partir das necessidades das comunidades”, pontua.
Outra preocupação trazida por Matheus diz respeito ao impacto dos erros tecnológicos nas sociedades. Ele explica que há reprodução errada de decisões humanas pelos algoritmos. Isso porque vivemos num “mundo em que várias sociedades ainda são racistas e os algoritmos acabam refletindo esse racismo para as populações”.
Para Matheus, evitar que esses vieses não aconteçam é o desafio. Nesse sentido, “precisamos coletar mais dados de populações vulneráveis, incluindo, o marcador raça e cor”. “Se não incluirmos esse debate na nossa estratégia de saúde digital, estaremos tomando como ponto de partida a exclusão dessa população”, alerta.
Saúde digital e os impactos no SUS
Matheus reafirma a necessidade de reflexão quanto aos riscos e benefícios potenciais e à infraestrutura capaz de assegurar o direito de conectividade e acesso à internet de forma equânime. Quando se tem uma estrutura boa de telessaúde, afirma o pesquisador, “há a possibilidade de incluir nos processos do SUS a modalidade de teleinterconsulta na prática médica” – quando se estabelece um processo de comunicação entre dois profissionais de saúde, permitindo a troca de informações entre ambos para tratar do mesmo paciente, para auxílio no diagnóstico ou na terapia de um agravo de saúde –.
De acordo com Matheus, esse tipo de comunicação pode ampliar possibilidades de atenção para uma população, em nível local, que não teria acesso a esse profissional especialista. “Um exemplo de telessaúde, inclusive, já aceito antes da pandemia”, lembra.
Ao lado desses benefícios, lembra o pesquisador, há também tem os riscos: não se pode esquecer da precarização do serviço, ao se substituir de forma definitiva o presencial pelo remoto. “Teleinterconsulta é uma ferramenta a mais para ajudar, deve ser complementar”, alerta, chamando, mais uma vez, a atenção para os perigos do “solucionismo tecnológico ou da tecnoforia”.
Para o pesquisador, ao se pensar a informatização no campo da saúde, é preciso lembrar que temos no Brasil, em vigor desde 2020, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), mas com “uma baixa eficácia”, ainda. Conforme considera, o órgão responsável por zelar pela proteção de dados pessoais e por regulamentar, implementar e fiscalizar o cumprimento da LGPD no Brasil, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, não se mostrou suficientemente ativo.
Para Matheus, os desafios incluem, ainda, pensar a regulação da inteligência artificial e o uso econômico desses dados “em nível mais profundo”.
Saúde digital e colonização
A análise de Matheus se dá também em uma perspectiva colonial. “Temos na dinâmica público-privada, assim como numa dinâmica Norte-Sul global, dados sendo produzidos nos países do sul, como ativo econômico que são a base da inovação nessa nossa revolução informacional”.
Conforme explica, o impacto disso se dá quando esses dados são coletados pelas grandes empresas, são processados, viram inovação no Norte global, e essas inovações voltam para nós a um preço muito mais alto. “Assim como no passado exportamos minério de ferro para comprar a liga metálica pronta a um preço muito mais alto. Na saúde, estamos exportando dados e comprando software e algoritmo de digitalização artificial a um preço muito mais alto”, comparou.
De acordo com Matheus, há outro ponto “preocupante” no aspecto da colonização, quanto a orientar nossa transformação digital na saúde por aquilo que o mercado já oferece. “O mercado tem soluções, mas precisamos nos perguntar do que o SUS precisa. Fazer uma encomenda tecnológica, em que o Estado compra o desenvolvimento da tecnologia”, defende, acrescentando que é preciso orientar o mercado para o que o SUS precisa. “Assim, estaremos privilegiando o desenvolvimento nacional. Precisamos disso para quebrar essa lógica colonial, da manutenção econômica do Norte global produzindo o que é de mais valor e nos tirando o que é matéria-prima – nesse caso, o dado – e do setor privado pautando o SUS – em vez do contrário”, alerta.
Veja o artigo de Daiane Batista também no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho