Veto a assistolia fetal no Brasil é antiético e afeta Saúde Pública, afirma Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia
Comunidade científica internacional reage ao obscurantismo do Conselho Federal de Medicina do Brasil
A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) publicou, nesta terça-feira, 17/6, nota sobre a proibição da assistolia fetal no Brasil. O documento afirma que a Resolução 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM) é antiética, contraria todas as evidências médicas disponíveis, impede o acesso a cuidados de qualidade e afetará negativamente os indicadores de Saúde Pública. A maior federação de obstetrícia global reforça que a proibição fere o princípio da não maleficência, ao potencialmente sujeitar mulheres e recém-nascidos a abortos inseguros e aos riscos da prematuridade extrema, banalizados de propósito pelo CFM.
A Resolução CFM 2.378/2024 levou a interrupção temporária dos serviços de aborto legal tardio, obrigando meninas e mulheres estupradas a prolongarem ainda mais a gestação. A resolução foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal, em ação movida pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Rede Unida e o Partido Socialismo e Liberdade (Psol).
O Projeto de Lei 1904/2024 retoma a tentativa de punir mulheres e meninas estupradas que recorram ao direito legal de abortar após 22 semanas, bem como as equipes de Saúde. O PL equipara aborto após 22 semanas a homicídio, inclusive em casos de estupro, estabelecendo prisão de até 20 anos, superior à do estuprador condenado. A proposta de punição a mulheres violentadas gerou indignação e protestos das mulheres, inclusive católicas e evangélicas.
Criança não é mãe – As principais usuárias do serviço de aborto legal tardio são meninas menores de 14 anos, juntamente com mulheres periféricas, moradoras de áreas rurais, indígenas e negras, que enfrentam barreiras adicionais aos serviços de Saúde. A nota da FIGO reforça que as mulheres e meninas que recorrem ao aborto tardio estão entre as mais vulneráveis, são frequentemente sujeitas a um maior estigma e perseguição, e enfrentam complicações mais graves e taxas de mortalidade mais elevadas quando forçadas a recorrer a práticas de aborto inseguras.
Confira a tradução da nota, originalmente publicada em inglês.
Nota da FIGO sobre a recente proibição da indução de assistolia fetal para abortos legais no Brasil
Em muitos países ao redor do mundo, as mulheres e meninas que precisam abortar em idades gestacionais avançadas enfrentam barreiras significativas no acesso a serviços seguros. Estas mulheres e meninas estão entre as mais vulneráveis, são frequentemente sujeitas a um maior estigma e perseguição, e enfrentam complicações mais graves e taxas de mortalidade mais elevadas quando forçadas a recorrer a práticas de aborto inseguras.
Leis restritivas que ignoram as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) contra a imposição de limites de tempo, juntamente com a escassez de serviços qualificados, agravam ainda mais as injustiças contra estes indivíduos. Nas regiões onde a legislação permite serviços de aborto seguro em fases posteriores da gravidez, é obrigação ética e profissional dos profissionais de saúde defender o acesso, a qualidade e desafiar quaisquer barreiras que agravem as barreiras estruturais existentes.
No Brasil, o aborto provocado é legal em três circunstâncias: quando a gravidez é resultado de estupro, quando há risco da morte da gestante e quando há diagnóstico de anencefalia fetal. Nessas três circunstâncias, não há limite de idade gestacional para acesso ao direito ao aborto seguro no texto da legislação brasileira. No entanto, o Conselho Federal de Medicina do Brasil (CFM) emitiu recentemente uma resolução que proíbe a indução de assistolia fetal para abortos induzidos legalmente, prejudicando esses direitos.
A proibição é antiética e contradiz evidências médicas
A FIGO expressa profunda preocupação com a recente resolução emitida pelo Conselho Federal de Medicina do Brasil (CFM) que proíbe a indução de assistolia fetal para abortos induzidos legalmente. Essa proibição no Brasil é antiética e contradiz as evidências médicas.
Para procedimentos de aborto realizados após 20 semanas de gestação, as evidências científicas indicam que se considere a indução de assistolia fetal para prevenir sinais de vida durante o aborto medicamentoso (induzido) ou a expulsão fetal após a preparação cervical, mas antes de um procedimento planejado de dilatação e evacuação (D&E). A probabilidade de sobrevivência neonatal transitória após a expulsão aumenta com a idade gestacional e o intervalo entre a preparação cervical e o aborto. Para o aborto medicamentoso além do limite de viabilidade, a indução de assistolia fetal deve ser sempre uma opção.
A proibição impede o acesso a cuidados de aborto de qualidade para mulheres com gravidez avançada (além da viabilidade) que, de outra forma, teriam direito ao aborto legal no Brasil. A assistolia fetal em abortos induzidos avançados é um componente essencial do atendimento padrão de qualidade e está alinhada com o resultado pretendido do aborto, que nunca é um nascimento vivo.1,2
A proibição impede obstetras e ginecologistas de aderirem ao princípio ético da beneficência. Está bem estabelecido que o aborto seguro induzido é mais seguro do que o parto, mesmo em idades gestacionais avançadas.3 A interrupção da gravidez sem indução de assistolia fetal constitui uma indução de um nascimento vivo prematuro (que, por definição, não é um aborto). Sem a indução da assistolia fetal, os abortos para além do limite de viabilidade tornam-se impossíveis de realizar e as mulheres serão forçadas a continuar a gravidez e a assumir os riscos do parto a termo e da maternidade forçada, ou a recorrer a abortos muito inseguros. Assim, a proibição viola o direito das mulheres de aceder e beneficiar de tecnologias científicas modernas para um aborto seguro.4
A proibição contraria o princípio ético da não maleficência ao potencialmente sujeitar as mulheres e o recém-nascido aos danos da prematuridade, caso gravidez avançada seja interrompida sem induzir assistolia fetal. A interrupção de uma gravidez avançada sem a assistolia fetal pode resultar em sinais transitórios de vida ou mesmo em sobrevivência, com todas as complicações associadas à prematuridade (incluindo dificuldade respiratória, persistência do canal arterial, hemorragia intraventricular grave, enterocolite necrosante, sepse de início tardio, displasia broncopulmonar que requer oxigênio suplementar e retinopatia).5 A indução de assistolia fetal é, portanto, necessária para prevenir riscos evitáveis para os recém-nascidos e garantir a não maleficência, bem como para evitar implicações legais para os médicos que enfrentam obrigações de cuidados para com os recém-nascidos com sinais de vida.
A proibição viola a eliminação da tortura ou de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes estabelecida pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. A proibição da indução de assistolia fetal pode forçar os obstetras e ginecologistas a recusar cuidados de aborto solicitados legalmente devido ao seu compromisso de não causar danos ao recém-nascido. Tal recusa constituiria uma violação do direito da pessoa grávida de estar livre de tortura e de outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.6
A proibição promove uma falsa suposição de que os estudos sobre bebés prematuros são aplicáveis a fetos abortados, usando a retórica da viabilidade. A viabilidade é um conceito médico relevante apenas para cuidados neonatais e prestação de cuidados intensivos no contexto de parto prematuro espontâneo ou por indicação médica.7,8 Não é relevante para abortos induzidos. Mesmo no contexto aplicável, o parto prematuro é uma medida de último recurso em obstetrícia, uma vez que qualquer dano ao recém-nascido, por mais leve que seja, deve ser evitado. Os estudos com prematuros citados na resolução do Conselho Federal de Medicina do Brasil estão relacionados a partos prematuros inevitáveis e não devem ser generalizados para fetos abortados.9, 10 Essa má interpretação proposital também banaliza os riscos da prematuridade.
A proibição afetará negativamente os indicadores de saúde pública, aumentando potencialmente falsamente as taxas de mortalidade e morbilidade neonatal e infantil.
Garantindo um cuidado seguro e respeitoso
A FIGO reitera que o procedimento de assistolia fetal deve ser avaliado e legalmente permitido como intervenção terapêutica para garantir um aborto médico induzido seguro em fases gestacionais avançadas, quando a viabilidade extrauterina é possível. A prática permite que o cuidado seja prestado de modo que respeite a autonomia da gestante e a proteja de danos. A proibição da assistolia fetal – com o consequente risco de nascimentos vivos resultantes de pedidos de aborto legal – inviabiliza o acesso a assistência médica segura. No Brasil, priva os profissionais de saúde da capacidade de defender os direitos das mulheres e meninas que são reconhecidos pela legislação nacional. Esta proibição agrava as disparidades e injustiças sociais: estabelece um precedente perigoso para toda a região, ameaçando os progressos significativos alcançados nesta área nos últimos anos.
Referências
- World Health Organization (WHO). Clinical practice handbook for quality abortion care. Geneva: WHO, 2023. Disponível em: www.who.int/publications/i/item/9789240075207
- World Health Organization (WHO), International Classification of Diseases 11th Revision (2022). The global standard for diagnostic health information. Disponível em: https://icd.who.int/browse11/lm/en#/http://id.who.int/icd/entity/151711…;
- Bartlett LA, et al. Risk factors for legal induced abortion-related mortality in the United States. Obstet Gynecol. 2004 Apr;103(4):729-37.
- CESCR. General Comment Nº 25: Science and economic, social and cultural rights. Article 15(1)(b), (2), (3) and (4) of the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights. United Nations, 2020 (UN Doc. E/C.12/GC/25).
- Stoll BJ, et al; Neonatal outcomes of extremely preterm infants from the NICHD Neonatal Research Network. Pediatrics. 2010 Sep;126(3):443-56.
- United Nations. General Council. Human Rights Council. A/HRC/22/53. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman, or degrading treatment or punishment, Juan E. Méndez. Paragraphs 49 and 50.
- Nuffield Council of Bioethics. Critical care decisions in fetal and neonatal medicine: ethical issues. London: Nuffield Council of Bioethics, 2006.
- Romanis EC. Is ‘viability’ viable? Abortion, conceptual confusion and the law in England and Wales and the United States. J Law Biosci. 2020 Oct 9;7(1): lsaa059.
- Brumbaugh JE,et al. Outcomes of Extremely Preterm Infants With Birth Weight Less Than 400 g. JAMA Pediatr. 2019 May 1;173(5):434-445.
- Tyson JE, et al.; National Institute of Child Health and Human Development Neonatal Research Network. Intensive care for extreme prematurity–moving beyond gestational age. N Engl J Med. 2008 Apr 17;358(16):1672-81.
Tradução e reportagem: Clara Fagundes/Cebes