Helena Paro discute formação médica e direito ao aborto em entrevista ao Cebes
O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) recebeu a médica obstetra Helena Paro, integrante da Rede Médica pelo Direito de Decidir e da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO). Professora de Medicina, Helena Paro, atua no serviço de abortamento da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. Confira entrevista mediada pela médica Ana Costa, diretora-executiva do Cebes, parcialmente transmitida no Cebes Debate, em 24/6.
Ana Costa – O Cebes agradece muito a presença da professora Helena Paro, uma referência no tema do atendimento aos direitos sexuais reprodutivos, particularmente em defesa do direito ao aborto e da prática da assistência aos casos de abortamento na cidade de Uberlândia. Gostaria que você comentasse a perspectiva de formação profissional. Eu também sou professora de graduação de medicina e fiz um estudo há alguns anos sobre a presença da temática do aborto na formação médica e é um tema ausente do currículo.
Helena Paro – Perfeito, professora Ana. Muito obrigada pelo convite. Agradeço a oportunidade de falar porque, como você mesmo disse, o assunto dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, sobretudo o direito a esse cuidado em saúde que é o direito ao aborto legal, ao aborto induzido, é muito negligenciado.
É uma negligência proposital, uma invisibilização dessa necessidade dentro do sistema de saúde. Isso se reflete nos cursos de graduação da saúde, não só da Medicina. Eu me lembro muito de como eu não escutei falar sobre aborto legal, aborto induzido. A gente só achava que existia aborto espontâneo, porque só aprende sobre o aborto espontâneo durante a graduação.
Eu me formei em uma universidade pública, fiz residência num hospital público ligado à Universidade Federal de Uberlândia. E só depois de ser professora e ter que estudar, teoricamente, para dar aula, é que eu fui ter contato com leis, portarias. Fui saber do Código Penal. Acho que sou o exemplo vivo de como essa negligência na formação se traduz num dos conhecimentos…
A gente vai precisar muito, no Brasil, de uma sorte de um profissional que esteja interessado em realmente cuidar integralmente das mulheres, das meninas, e pessoas com capacidade de gestar.
Não basta a gente ter uma disciplina, disciplinas optativas ou obrigatórias, sobre o ponto de vista teórico porque, na saúde, nós aprendemos a partir da prática. Então, se não existe um serviço de atendimento a pessoas em situação de violência sexual, se não existe um serviço de aborto legal nas universidades ou nos cursos da área da saúde, é pouco provável que, ao se deparar com uma pessoa em necessidade de um aborto Legal, o profissional de saúde tenha o conhecimento e as habilidades necessárias para fazer esse atendimento.
Ana Costa – A segunda pergunta é sobre a realidade do aborto no Brasil dentro de um serviço de atendimento.Gostaria muito que você falasse sobre o cotidiano do serviço. Como é lidar com esse sofrimento e como ele se manifesta em meninas, em adolescentes, em mulheres mais adultas? E por que é tão importante essa sensibilidade no processo de cuidado dessas pessoas?
Helena Paro – Uma das coisas que eu aprendi muito nesses sete anos de serviço de aborto legal no Hospital de Clínicas de Uberlândia é que muito do sofrimento relacionado ao cuidado tem mais a ver com as violências que as meninas, mulheres e pessoas com capacidade de gestar sofrem.
Existem três permissivos, três casos em que o aborto é legal no país: gravidez resultante de estupro, anencefalia fetal (que é uma malformação incompatível com a vida) e risco de vida à mãe. Outras malformações incompatíveis com a vida que não são anencefalia têm sido judicializadas, e o judiciário tem autorizado o aborto legal nos casos de malformação e nos casos que impõem risco à vida da pessoa gestante.
A imensa maioria, mais de 95% dos casos atendidos, são relativos a gravidez resultantes de estupro. E o sofrimento psíquico das meninas, mulheres, de pessoas com capacidade de gestante, tem muito mais a ver com o sofrimento relacionado ao estupro e relacionadas às violências institucionais não só do sistema de saúde, mas também do sistema de Segurança Pública. Os psicólogos, assistentes sociais, médicos, enfermeiros não sabem informar, cuidar e muito menos referenciar a paciente que deveria ter o cuidado na unidade de saúde próxima da sua casa. Essa não é a realidade do Brasil.
Menos de 4% dos municípios brasileiros tem um serviço capacitado para o aborto legal. Na verdade, esse “capacitado” tem a ver com fazer. Porque a capacidade técnica é muito simples. O aborto legal não requer habilidades tão específicas, em termos técnicos.
Acho que tem sido importante a gente colocar histórias [dessas pacientes]. Porque é muito [mais] fácil ouvir os números. Essa realidade de que só 2.000 abortos legais são realizados no Brasil inteiro por ano, ao passo que a gente tem mais de 820 mil estupros, segundo estimativa do IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Se 5% desses estupros resultam em gravidez, a gente teria só no permissivo violência sexual 40.000 gestações em decorrência de um estupro. Mais 20.000 crianças e adolescentes são mães por ano no nosso país antes dos 14 anos, [o que é] estupro de vulnerável. Fora os 30% de morte materna que são as causas obstétricas indiretas, ou seja, de doenças que já existiam antes da gravidez e que se agravaram durante a gravidez.
Eu acho que esses números têm que ser traduzidos em experiências. Numa gravidez resultante de estupro, a gente pensa em quem chega [para atendimento], né? É uma menina de 11 anos que chega com lacinho de fita amarela no cabelo, com 17 semanas de gravidez, violentada pelo padrasto na zona rural ali do interior de Minas Gerais, e não sabe como uma mulher engravida. Quando é perguntada, “você sabe como uma mulher fica grávida?”, ela responde “não, eu vou aprender isso na escola só no ano que vem”. Essa é a cara de uma de uma menina que o projeto de lei 1904 que tenta criminalizar o aborto depois de 22 semanas, tenta criminalizar.
É numa mulher de 30 anos de idade, com diagnóstico de câncer de tireoide avançado, que não foi resolvido com a retirada total da tireoide em cirurgia. Uma mulher que precisa de tratamento complementar de quimio e radioterapia, mãe de um menino de 4 anos de idade. Essa mulher, ao realizar os exames para iniciar a radioterapia e a quimioterapia, incluindo o beta hcg, descobre uma gravidez e escuta do hospital oncológico que só poderá voltar depois de 9 meses. Essa mulher teve que sair para ser atendida no interior de Minas, porque não teve acesso a assistência. Isso na capital do Rio de Janeiro. Essa mulher tem que viajar do Rio de Janeiro para o interior de Minas Gerais, para Uberlândia, porque não existem serviços que acolham ela na sua necessidade de salvar sua própria vida para poder cuidar do seu filho e interromper a gravidez, realizar um aborto de maneira segura, de uma maneira que preserve a sua vida.
O aborto é 14 vezes mais seguro do que um parto. Isso é importante também a gente colocar, porque no imaginário das pessoas o aborto mata, o aborto é perigoso. O aborto que mata é o aborto inseguro, o aborto clandestino das mulheres sem recursos. Porque as mulheres com recursos vão recorrer, mesmo em aborto clandestinos, a maneiras seguras, como medicamentos ou procedimentos realizados em clínicas clandestina, mas seguras. Agora, as mulheres pretas pobres, pardas, as indígenas, as que moram distantes dos centros urbanos, são as que vão morrer por um aborto. Aborto, quando realizado ou orientado por profissionais capacitados, é 14 vezes mais seguro do que um parto vaginal.
Quando a gente fala de anencefalia ou de malformações incompatíveis com a vida, é importante colocar que são geralmente diagnosticadas depois da segunda metade da gravidez. Nem todas as mulheres têm acesso à tecnologia da saúde, a um bom diagnóstico de ultrassonografia nos primeiros três meses de gravidez. Muitas vezes esse diagnóstico vai ser dado mais avançado. Muitas vezes os médicos tentam retardar esse diagnóstico, porque o prognóstico é ruim e geralmente nós estamos falando de gravidez desejadas. Existe uma falta de treinamento também dos profissionais de saúde em dar esse diagnóstico sombrio para mulheres que estão ali com uma gravidez desejada. O diagnóstico de incompatível com a vida vai sendo postergado e, com isso, a gravidez vai avançando.
É claro que o aborto induzido é mais seguro nas primeiras semanas da gravidez. Mas ele ainda é muito mais seguro do que um parto vaginal mesmo depois dessas 22 semanas. Por que eu tô colocando as 22 semanas? É porque no Congresso Nacional foi aprovado o regime de urgência de votação de um PL que criminaliza as mulheres e os profissionais de saúde que realizam um aborto nos permissivos legais quando é necessário realizá-lo depois de 22 semanas.
Eu convido a todos a ler o relato de uma cineasta. Ela publicou o relato do aborto legal dela por malformação fetal incompatível com a vida no jornal O Globo no dia 19 de junho de 2024. E a manchete do relato dela é um relato muito contundente das violências que ela sofreu dentro do sistema de saúde por precisar de um aborto depois de 22 semanas: “Eu não quis esperar 6 meses. Quem me fez esperar e quem me obrigou a esperar seis meses sofrendo com o diagnóstico de incompatibilidade com a vida é extrauterina foi o sistema de saúde”.
Então, a gente precisa trazer esses relatos para as pessoas entenderem que são nossas irmãs, que são nossas filhas, que são nossas mães, nossas tias, nossas primas, nossas vizinhas que vão precisar de cuidado. A Organização Mundial da Saúde é categórica em afirmar que aborto é cuidado em saúde. O aborto é uma tecnologia, um avanço do conhecimento científico do conhecimento na área da saúde. É direito de toda a pessoa ter acesso à saúd, ter acesso ao avanço do conhecimento em prol do seu do seu próprio bem-estar e da sua saúde.
Ana Costa – Eu acho que você toca em um ponto muito importante. Infelizmente o Conselho Federal de Medicina, nosso órgão que regula a ética e boa prática da Medicina, tem tido nos últimos anos atitudes bastante estranhas, que nos deixam muito indignados. E, agora mais especificamente, [a Resolução CFM 2.378/2024] em relação ao aborto legal.
Helena Paro – Infelizmente o que a gente tem visto hoje no Conselho Federal [de Medicina] e nos conselhos regionais é uma total incompreensão, talvez proposital, do que que é o conselho.
A ética não está dissociada da ciência, muito pelo contrário. Eles precisam de fiscalizar a prática profissional com a centralidade na segurança e saúde dos pacientes. É falácia do Conselho Federal de Medicina, durante a pandemia, falar de autonomia médica. Um artigo do nosso código de ética médica fala que o médico vai exercer sua profissão com a autonomia – com a autonomia significa que um chefe não pode nos impor as suas posições ideológicas contrárias à ciência.
Não há autonomia de fazer o que não tem evidência científica. Não é autonomia para prescrever cloroquina para covid. E, da mesma maneira, o conselho não pode impedir a melhor prática médica, como a indução de assistolia fetal dos casos de gravidez depois da viabilidade extrauterina. A Organização Mundial da Saúde e Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia colocam a necessidade da assistolia fetal nos abortos induzidos acima de um período gestacional, que não é exato, 20 – 22 semanas. A “viabilidade fetal” vai depender muito das tecnologias de cuidados intensivos neonatais. Não tem nada a ver com aborto induzido, porque a intenção do aborto não é ter um recém-nascido, é interromper a gestação.
Há uma deficiência da formação médica, de saber o que que é ciência, de saber o que é ética, o que que é bioética? Isso é uma deficiência da nossa formação, de análise crítica. Os conselhos hoje estão dominados por pessoas de ideologias que não são compatíveis com os princípios da Medicina, que são: respeito pela autonomia do paciente, primazia pelo bem-estar dos pacientes e luta por justiça social. Esses são os três pilares do profissionalismo médico. Os Conselhos de Medicina hoje tão muito afastados desses princípios.
Ana Costa –Finalizando essa magnífica conversa, você poderia apontar, em linhas gerais, quais as bases para uma política de saúde que possa fazer com que o Brasil atinja melhores níveis de direitos sexuais e reprodutivos? O SUS tem uma política de saúde da mulher andando um ritmo muito distante daquilo que a gente gostaria. Quais são os grandes desafios hoje para essa política?
Helan Paro – Acho que o primeiro grande desafio é que não deveria ser uma política somente do Ministério da Saúde ou do Sistema de Saúde, ela tem que vir junto com uma política também do Ministério da Educação. O primeiro pilar dessa política é a educação para sexualidade, para que, no futuro, nossos jovens e as nossas crianças entendam que o corpo da mulher não é objeto. Uma educação para diminuir a cultura do estupro, que a gente tem no nosso país. Ela é muito importante também para que entendam o que que é uma violência sexual, porque muitas vezes [as crianças] são violentadas em casa e não entendem, são violentadas por anos, até crescerem.
Quando as pessoas pensam em violência sexual, imaginam uma mulher violentada por um desconhecido na rua, que sai com olho roxo. E não é isso que a gente que a gente tem. 75% são crianças e adolescentes, em sua grande maioria violentadas por pessoas próximas dentro de casa, né? [É necessária] uma política de educação para sexualidade, desde as fases iniciais, com linguagem apropriada, até a adolescência.
Outra questão é acesso aos métodos contraceptivos para prevenir gravidez indesejada. É fundamental que tenhamos acesso a todos os métodos contraceptivos, porque cada método vai ser é ideal para cada pessoa. [Precisamos] de uma política que realmente inclua todas as pessoas com necessidade de contracepção, sem discriminação.
É uma necessidade ter uma formação adequada dos profissionais de Saúde, com Ministério da Educação e Ministério da Saúde juntos. Educação sexual para a prevenção do aborto, formação [profissional] em aborto, no cuidado. Nessa política precisaríamos tirar o misoprostol dos hospitais, tirar o misoprostol da cadeia. O misoprostol é um medicamento super seguro, que poderia estar nas Unidades Básicas de Saúde da Família, com treinamento adequado dos profissionais de Saúde para orientar o tratamento medicamentoso em casa até a 12ª semana. Se querem tanto evitar o aborto depois de 22ª semana, então é preciso que esse cuidado esteja próximo de onde as pessoas vivem.
Um outro ponto que eu incluiria seria uma política de distribuição de renda e um pré-natal adequado, novamente com o Ministério da Saúde e Ministério da Educação, porque a gente precisa formar profissionais para um pré-natal de qualidade.
Precisa também de condições dignas depois do nascimento, de redes de apoio, para que as mulheres não sejam coagidas a interromper uma gravidez. a gravidez, ou não-gravidez, faz parte do projeto de vida daquela pessoa. Muitas mulheres se veem divididas, [pressionadas] a não terem um filho porque não têm condições de sustentar. Faz parte da dignidade das pessoas ter a ter condições econômicas de seguir com seus projetos de vida e, às vezes, o projeto de vida é a maternidade. Não é porque a gente luta pelo direito da mulher de ter um aborto induzido legalmente, que a gente também não luta para que uma mulher tenha direito de prosseguir com segurança uma gravidez, que tenha dignidade para os seus futuros filhos.
Veja aqui a cobertura do Cebes Debate, que também contou com a participação de Olímpio Moraes, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (CISAM-UPE).