Existe esperança para um CFM mais ético e preocupado com a saúde?
Cebes Debate reuniu Margareth Dalcolmo e José Gomes Temporão para uma conversa sobre as eleições do Conselho Federal de Medicina
A uma semana para as eleições do Conselho Federal de Medicina (CFM), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) realizou um novo encontro para debater a importância deste pleito e seus impactos nas políticas públicas em saúde. O Cebes Debate desta segunda, 29/7, recebeu a presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), Margareth Dalcolmo, e o ex-ministro da Saúde e ex-presidente do Cebes, José Gomes Temporão, pesquisadores e integrantes da Academia Nacional de Medicina (ANM).
O programa contou com a participação do presidente do Cebes, Carlos Fidelis, e a mediação da diretora, Ana Tereza da S. Pereira Camargo. O posicionamento político do CFM e seu distanciamento das evidências científicas vem gerado preocupação. A ruptura com parâmetros éticos e clínicos ficou nítida na pandemia de covid-19, quando o órgão, responsável por fiscalizar o exercício profissional da Medicina, tomou uma postura pública de defesa de práticas anticientíficas, como prescrição de cloroquina e ivermectina, em conformidade com a atuação do antigo governo.
Margareth Dalcolmo destacou a importância de manter a esperança. “Nós podemos mudar. Todos os estados têm chapas inscritas, com gente muito boa, que realmente representam o melhor da Medicina”, afirmou a pesquisadora, condecorada por seu papel no combate à covid-19.
Para a pesquisadora, é necessário fazer um recuo e recuperar a história do CFM. Divergências de opiniões, preferências e posicionamentos ideológicos sempre existiram e fazem parte do processo democrático, mas “nunca houve uma politização, no pior sentido do que possa ser a politização, numa eleição para um Conselho Federal de Medicina, e a mesma coisa tem se replicado nos conselhos regionais”.
Este fenômeno passou a ocorrer no último quinquênio, com o início da pandemia, quando o CFM passou a emular um discurso que compunha a retórica governamental. “Há chapas inscritas, em todos os estados, que representam uma linha ideológica, no pior sentido do que seja ideologia, que foi o que o CFM adotou em relação aos últimos anos em relação à negação da ciência”, afirmou Dalcolmo.
O ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão trouxe um panorama sobre a luta das entidades médicas na reconquista da democracia e na luta pelo direito à saúde. Nos anos 1970 e 1980, o CFM teve participação importante na construção de instituições democráticas. “A partir dos anos 2000, principalmente, houve uma guinada, uma reviravolta que compreendeu uma adesão bastante reacionária, na verdade, se aliando a uma máquina política orgânica ao bolsonarismo”, explicou.
Temporão listou acontecimentos que expressaram esta guinada do CFM:
Disseminação de notícias falsas por médicos sem qualquer medida por parte do CFM;
A falsa “autonomia médica” contribuiu para a alta taxa de mortalidade pela covid-19 no Brasil. Não há autonomia de fazer o que não tem evidência científica, sendo dever ético a prescrição do melhor tratamento disponível. No entanto, o CFM liberou médicos para prescreverem drogas sabidamente ineficazes para tratamento da doença (ivermectina, cloroquina e outras).
A falsa autonomia médica também ajudou a fragilizar a vacinação de crianças contra covid-19;
Omissões em questões estruturais do sistema de saúde e do exercício profissional, à medida que o órgão se afastava da ciência e da defesa da Saúde Coletiva para atuar como relações públicas do bolsonarismo
Temporão destacou a necessidade de perceber o fenômeno sob uma perspectiva ampla, no contexto da fragilização da democracia e das políticas sociais, ou seja, quando as corporações médicas passam a apoiar governos de extrema direita. Este processo, que ele classificou como “neopopulismo de extrema direita sanitário” , aconteceu no Brasil a partir de 2019. “Em termos de conteúdo e modo de ação, se caracteriza como uma contra política ao interior do desenvolvimento dos sistemas universais”.
O ex-ministro citou o posicionamento do CFM sobre o aborto, que está na origem do PL 1904/2024, conhecido como PL do estuprador, por punir as mulheres violentadas e os profissionais de Saúde com até 20 anos de prisão, caso interrompam a gravidez após 22 semanas gestacionais. “Você não vê o conselho discutindo a relação médico-paciente, ou seja, a autonomia para o médico vale, mas a autonomia da mulher, não vale”, frisou a diretora do Cebes, Ana Tereza da S. Pereira Camargo.
Para o presidente do Cebes, Carlos Fidelis o posicionamento do CFM durante a pandemia fez emergir um desprestígio diante da sociedade que defende a ciência e os valores da democracia. “O Conselho emprestou seu antigo prestígio para algo que desautorizava a ciência e não tinha preocupação com a saúde da população, apoiando políticas que facilitavam a circulação do vírus”.
Conscientização da classe médica – Ana Tereza lembrou a necessidade de sensibilização da comunidade médica, especialmente, os mais jovens. “Eles precisam estar atentos ao papel do Conselho Federal, não só na definição de uma política médica como se tem hoje, com que currículo, com que formação e como podemos estar protegendo”, apontou. “Com a reforma trabalhista, o médico que hoje trabalha no setor privado é MEI (Micro Empreendedor Individual, é PJ (Pessoa Jurídica). Hoje tem uma série de formas que não garantem direitos ao profissional”.
Para Ana Tereza, é preciso que o CMF atue também no sentido de orientar os profissionais sobre a transformação da prática médica e também dos pacientes que serão atendidos por estes profissionais. “Nosso objetivo final é ter uma boa prática para atender melhor”.
Os fatos – Em 2020, um grupo de cientistas brasileiro denunciou os perigos do uso de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. Com a publicação dos estudos da fase três das pesquisas, o grupo apresentou um documento que tinha como base 71 estudos ou artigos publicados pelos mais renomados institutos e cientistas do mundo.
Margareth Dalcolmo fez parte do grupo que compôs o documento e apontou a decisão irresponsável do então governo federal na promoção do tratamento sem comprovação científica robusta. “Naquele documento apresentamos os fatos, os estudos mostrando e nós sabíamos disso. Então por que o CFM se aliou a uma decisão governamental de distribuir um remédio que não servia, em que as pessoas foram enganadas?”
O documento subsidiou a CPI (Comissão Parlamentar) de Inquérito do Senado e trazia alerta indicado por estudos que o uso de cloroquina no tratamento da covid-19 poderia estar relacionado a um aumento na ocorrência de eventos adversos graves e maior letalidade. Os indícios foram posteriormente comprovados, inclusive levando a morte de 17 mil pessoas em seis países onde os dados foram analisados. Um dos estudos pode ser encontrado aqui. “Se o CMF tivesse se manifestado, talvez não tivesse ocorrido essa tragédia, onde tantas pessoas morreram, digamos, enganadas por isso. Então, acho que o CFM tomou um rumo que não é o que nós esperamos”, apontou Margareth..
Eleições 2024 – Para Margareth é muito importante que os médicos estejam atentos aos candidatos, que priorizem pessoas comprometidas com a ciência e com uma medicina capaz de contribuir com a sociedade. “É momento de sair da inércia e mudar a composição do CFM, e recriamos um coletivo de conselheiros que nos permita ir lá e propor reabrir ou abrir discussões de pontos que são muito importantes para nós”.
Temporão lembrou que o objetivo final do CFM não é a defesa dos interesses dos médicos, mas sim a defesa da saúde e da vida da população. “O CFM deixou de ser um interlocutor confiável da sociedade. É ruim para a democracia que órgãos que representem o exercício ético da profissão tenham esse perfil”. Para ele, a mudança no atual cenário só poderá ser realizada a partir da eleição de chapas realmente comprometidas com a ciência, com ética, a defesa da vida e da saúde pública.
A eleição dos novos conselheiros está marcada para as próximas terça e quarta-feira (6 e 7 de agosto), das 8h às 20h. Assista o programa completo no Canal do Cebes no YouTube.
Reportagem: Fernanda Cunha/Cebes