Justiça reprodutiva e democracia: o papel das mulheres nas eleições municipais
Desigualdade étnica social e aumento nas taxas de mortalidade de meninas e mulheres ainda são temas fundamentais na luta contra a opressão de mulheres no Brasil. Cebes Debate discutiu o assunto
As eleições municipais se aproximam e o voto feminino pode ser decisivo. O Cebes Debate desta segunda-feira (29) trouxe um tema prioritário para as mulheres, afetadas pelo cerceamento dos direitos sexuais e reprodutivos. Mais de 66 mil mulheres morrem em decorrência da gravidez e parto no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde. O aborto inseguro está entre as cinco principais causas de mortalidade materna.
O debate foi mediado pela diretora-executiva do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Ana Costa, e contou com a participação Jolúzia Batista, que atua no Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) e milita na Articulação de Mulheres Brasileiras, na Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto e no Levante Feminista contra o Feminicídio do Distrito Federal, e de Leina Peres, secretária-executiva da Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos e Mestra em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Ana Costa lembrou que estamos na Semana Latino-Americana de Luta pela legalização do Aborto com um forte posicionamento em defesa dos direitos reprodutivos, destacando a importância do dia 28 de setembro. “Esta é uma semana crucial para o Brasil e para toda a região”, afirmou. Para Ana Costa, o debate sobre o aborto não é apenas uma questão de saúde pública, mas um pilar dos direitos sexuais e reprodutivos e, mais amplamente, da justiça reprodutiva.
Leina destacou a relevância da luta feminista no Brasil, tanto nas ruas quanto nos conselhos, reforçando que esse movimento, historicamente ativo no país, ganhou ainda mais força a partir de 2018, um período marcado por desafios significativos. Ela mencionou que, diante dessas adversidades, a rede feminista intensificou sua participação, especialmente na Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, além de fortalecer suas frentes estaduais.
Segundo Leina, essa presença nacional tem garantido uma grande incidência nos estados, permitindo a construção de alianças locais e a ampliação da luta pela justiça reprodutiva. Um dos exemplos mais notáveis dessa atuação é a criação dos fóruns de aborto legal. “Conseguimos potencializar uma experiência que reconhecemos como fundamental e que pode ser replicada em outros estados”, explicou. Atualmente, a rede está presente em pelo menos quatro fóruns de aborto legal no Brasil, atuando de maneira estratégica para expandir essa iniciativa e fortalecer a luta por justiça reprodutiva em diferentes regiões do país.
Ela também citou o fato de ser uma das mulheres atingidas pela crise climática no Rio Grande do Sul o quanto é necessário que a luta das mulheres esteja junto com a luta por justiça climática. Inclusive, a atuação do movimento neste momento deve ser para que as mulheres ajudem a eleger candidatos comprometidos com essas causas.
Leina compartilhou uma experiência marcante que mobilizou o movimento feminista a voltar às ruas. “Nós percebemos que não podíamos deixar o PL 1904 passar despercebido. Precisávamos voltar às ruas, e a sociedade nos demandava isso”, recordou. Essa convocação ressoou em meio a um momento desafiador para o movimento, que vinha enfrentando dificuldades de mobilização, especialmente nas ruas.
O enfrentamento ao PL 1904 serviu como um ponto de união. “Foi um momento potente, que nos mostrou que estávamos juntas, que não permitiríamos retrocessos”, afirmou. A Rede Feminista também se aliou à campanha “Criança Não é Mãe”, que vem ganhando força por mobilizar a sociedade em torno da proteção de meninas que engravidam, muitas vezes vítimas de estupro de vulnerável.
Leina destacou o papel da rede na coleta e análise de dados sobre crianças que tiveram filhos no Brasil. Um estudo recente, que abrange um período de 10 anos, revelou dados alarmantes sobre o número de gestações de meninas menores de 14 anos, classificadas como vítimas de estupro de vulnerável. “São meninas que sofreram violência sexual e tiveram o direito ao aborto legal negado”, disse Leina, acrescentando que a rede não só divulga esses dados, mas também propõe políticas públicas para mudar essa realidade.
Entre os dados mais preocupantes, está a alta taxa de mortalidade materna entre meninas menores de 14 anos, que chega a 83,9 mortes por 100 mil nascidos vivos, muito superior à de outras faixas etárias. A mortalidade fetal também é mais alta, com bebês nascendo com peso muito baixo. Além disso, há uma disparidade étnica significativa: a maioria dessas meninas é negra ou indígena, uma desigualdade que aumentou nos últimos anos.
Leina também mencionou que, embora haja uma tendência de diminuição das gestações infantis, as variações regionais são gritantes, com números elevados no Norte e Nordeste. Ela destacou ainda a ausência de acompanhamento pré-natal adequado para essas meninas, que muitas vezes chegam tardiamente aos serviços de saúde e não são informadas sobre o direito ao aborto legal.
“Gravidez forçada é tortura”, afirmou Leina, ressaltando que o que está em jogo são os direitos de meninas e mulheres, direitos garantidos pela Constituição brasileira e por tratados internacionais. “Deveríamos estar celebrando avanços, mas ainda precisamos lutar para garantir aquilo que é nosso por direito”, concluiu.
Para Jolúzia Batista, do CFEMEA, é importante pensarmos na iminência das eleições municipais, especialmente por seu impacto direto nos territórios locais, onde a vida de fato acontece. “As eleições municipais são fundamentais, pois tratam das comunidades, dos bairros, onde a vida pulsa”, comentou, ressaltando que esses espaços são os que lidam diretamente com questões como saúde pública, educação, transporte e iluminação.
Ela também chamou atenção para os desafios políticos que surgem com a atual reforma eleitoral, que ela chamou de “pacotaço eleitoral”, apontando que, cada vez mais, as candidaturas comprometidas com pautas como os direitos das mulheres e da infância enfrentam barreiras para se eleger. “Estamos lidando com uma tentativa de distanciamento da sociedade civil das ações no Parlamento”, criticou, mencionando como a proposta do novo Código Eleitoral dificulta a relação entre as comunidades e seus representantes.
Jolúzia enfatizou que as candidaturas de mulheres, especialmente as que defendem direitos reprodutivos e questões de justiça social, encontram pouca atratividade para o financiamento privado. “Essas são pautas comunitárias, que falam sobre a vida, sobre educação, segurança, transporte, coisas que afetam diretamente as pessoas, mas que não atraem interesses financeiros”, explicou.
Ela também destacou o crescimento do conservadorismo e das forças reacionárias, que têm dificultado o acesso a direitos, especialmente para as mulheres negras e indígenas. “A justiça reprodutiva nos faz olhar para essas desigualdades, para quem realmente tem acesso aos direitos sexuais e reprodutivos”, apontou, referindo-se às barreiras enfrentadas por mulheres que muitas vezes têm procedimentos preventivos ou anticoncepcionais negados na rede pública de saúde.
Jolúzia mencionou também o tabu que ainda existe em relação a métodos contraceptivos como o DIU e a pílula do dia seguinte, que são vistos com desconfiança, especialmente para adolescentes. “Estamos enfrentando muitos desafios em um cenário dominado por candidaturas conservadoras, principalmente ligadas a igrejas e lideranças que promovem o pânico moral”..
Ela lembrou que, apesar dos desafios, o feminismo organizado e as mulheres brasileiras conquistaram muito nos últimos 30 anos, especialmente no que diz respeito à problematização da gravidez infantil e à maternidade precoce. “A maternidade precisa ser uma escolha, e não uma imposição”, afirmou, ressaltando que, mesmo com os retrocessos, o movimento feminista tem se mantido firme na contenção dessas ondas conservadoras. “Estamos aqui para segurar nossas conquistas e impedir que retrocessos avancem”, concluiu.
Acesso aos serviços de aborto legal – Entre as questões apresentadas durante o debate, o acesso das mulheres e meninas aos serviços de aborto legal foi um tema explorado. De acordo com Leina, os esforços para fortalecer e expandir o atendimento ao abortamento legal no Brasil, através do Fórum Intersetorial de Serviços Brasileiros de Aborto Previsto em Lei continuam ocorrendo. A rede envolve profissionais de saúde, ativistas e o Ministério da Saúde, visando ampliar os serviços e garantir a implementação adequada nos estados.
Ela ressaltou a importância de seguir as normas técnicas e evitar que objeções de consciência institucionais impeçam o acesso ao aborto legal, garantindo que hospitais contem com profissionais disponíveis para o atendimento.
Leina também mencionou ações criativas, como o “Carro do Óvulo”, que circulou no Rio Grande do Sul durante a pandemia para informar sobre os serviços de aborto legal, especialmente diante do aumento da violência sexual. O monitoramento é feito em parceria com o movimento de mulheres, cobrando do Estado a garantia de acesso sem barreiras.
Jolúzia Batista abordou a importância das eleições municipais, ressaltando que, apesar de desafios como a corrupção ligada às emendas parlamentares, ainda há esperança de resultados favoráveis. Ela destacou o papel essencial que candidaturas comprometidas com pautas feministas e comunitárias desempenham, apesar das barreiras impostas pela reforma eleitoral. “Estamos enfrentando dificuldades com a entrada de mulheres e candidaturas próprias, o que é problemático”, observou.
Jolúzia apontou que a reforma eleitoral tem tornado ainda mais difícil para mulheres, especialmente as negras, ocuparem cargos políticos de destaque. “É uma batalha de Davi contra Golias, mas existem plataformas em pleno vapor lutando pela eleição de mulheres negras”, disse, referindo-se ao esforço para garantir representatividade e lutar pela paridade política. Ela destacou que, embora outros países da América Latina, como Argentina e Chile, já tenham avançado em termos de paridade de gênero, o Brasil ainda está muito atrás nesse debate.
Jolúzia também criticou o distanciamento entre as lideranças comunitárias e as casas legislativas, dominadas por conservadores e grupos religiosos que promovem um “pânico moral”. “Tudo que diz respeito às liberdades individuais e democráticas vira crime”, alertou, ao discutir como a baixa representatividade feminina e negra impacta diretamente a qualidade das políticas públicas, especialmente na saúde e na educação.
Ela destacou a importância de continuar a luta, organizando mais esforços para ampliar o campo de disputa, especialmente diante dos desafios ambientais e das alianças conservadoras no Congresso. Jolúzia mencionou o recente veto presidencial sobre questões de saúde e educação sexual, que foi amplamente apoiado por uma bancada conservadora, exemplificando as dificuldades enfrentadas para garantir avanços nesses temas.
Ela ainda abordou a questão da autonomia das mulheres em pequenas cidades, sugerindo que a emancipação feminina deve passar pela educação e pela autonomia financeira. Ela destacou que, embora o conservadorismo prevaleça por meio de lideranças patriarcais, pesquisas indicam que o espírito das mulheres não é conservador por natureza.
Portanto, um caminho para promover a autonomia e a emancipação das mulheres seria investir em propostas educacionais que favoreçam sua independência financeira e política.
O Cebes Debate completo está disponível em nosso canal do Youtube
Reportagem: Fernanda Cunha/Cebes