Por uma carreira SUS para fazer avançar a Reforma Sanitária

Editorial da Saúde em Debate v. 48 n. 142 jul-set (2024) escrito por Ronaldo Teodoro.

  1. Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. ronaldosann@gmail.com
  2. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Instituto de Medicina Social (IMS) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

OS DIREITOS DOS TRABALHADORES NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) constituem um ponto cego na Reforma Sanitária Brasileira. Trabalhar com essa problemática abre o caminho para reflexões em vários sentidos. Em uma frente, ajuda-nos a avançar no balanço mais amplo da época em que estamos vivendo, de invisibilização e rebaixamento estrutural do trabalho enquanto lugar de direitos. Em outro registro, contribui para localizar nesse movimento de época os limites da caminhada na construção do SUS – e, enquanto tal, fazer avançar o ideário e a prática da Reforma Sanitária no século XXI. Como parte dessas entradas reflexivas, a atualização histórica do valor do trabalho exige a localização do programa adversário, que tem na cultura gerencialista da Nova Gestão Púbica o seu ponto máximo de afirmação.

A problematização da construção do SUS a partir da questão laboral nos informa sobre os próprios termos em que se forjou a democracia no Brasil, onde a ampliação inédita de direitos sociais (à educação, à saúde e à assistência social) se associou a um persistente declínio da institucionalidade dos direitos do trabalho. Isso considerado, a área da saúde talvez seja o caso mais emblemático dessa contradição, em que a extraordinária expansão do SUS se apoiou sobre o ‘gelo fino’ de uma agenda gerencialista que provocou a degradação radical dos vínculos de trabalho em todos os serviços e níveis assistenciais1.

Sob os auspícios da cultura gerencial, a curva ascendente da degradação do trabalho no SUS pode ser localizada em três momentos: nos anos 1990, quando as reformas gerenciais ganharam forma constitucional no estado brasileiro; na primeira década dos anos 2000, em que a agenda da carreira perdeu espaço programático na forma de pensar na gestão dentro do próprio campo sanitarista; e após o golpe de 2016, momento no qual, mesmo sob o assombro da pandemia que expôs a profunda deterioração das condições do trabalho terceirizado, as premissas gerencialistas seguiram guiando a imaginação do desenho das políticas de saúde.

A incursão gerencial no nascimento institucional do SUS

Como apontaram Theodoulou e Roy2, a difusão da Nova Gestão Pública é um dos grandes fenômenos políticos que varreram os Estados contemporâneos nas últimas décadas do século passado. De um princípio marginal e obscuro presente nos debates da Mont Pelerin Society nos anos 1950 e 1960, a cultura gerencial, inspirada nas formulações da public choice theory, de James Buchanan e Gordon Tullock, chegou ao centro do Estado de Bem-Estar inglês com Margaret Thatcher (1979-1990), tornando-se orgânico ao programa ultraconservador de Ronald Reagan (1981-1989) nos anos 1980.

A documentada origem liberal reacionária desse ‘novo modelo de gestão’ não evitou, contudo, que ele fosse traduzido, nos anos 1990, como agenda de uma esquerda renovada. Esta, ao abandonar o seu suposto sectarismo ultrapassado, atualizava-se às exigências de uma modernização capitalista que se colocava em franca ascensão no plano internacional3. Seguindo essa linha, Giddens4 formulava que a ‘nova esquerda’ perseguia o equilíbrio entre uma política econômica ortodoxa e políticas sociais progressistas, experimentando uma terceira via entre o puro mercado e as ultrapassadas burocracias dos Estados de Bem-Estar Social.

Sob essa nova roupagem ideológica, o programa gerencialista passou a ser definitivamente divulgado como um ideário das esquerdas nos governos de Bill Clinton (1993-2001) e Tony Blair (1997-2007). A partir daí, bem-posicionada no centro do capitalismo internacional, a Nova Gestão Pública consolidou a sua força política e iniciou um sistemático processo de expansão global. No Brasil, como prefaciou Fernando Henrique Cardoso ao livro de Bresser-Pereira5(7): “a inspiração da reforma gerencial é muito mais republicana do que liberal”. Antes que a privatização do Estado, apontava Cardoso, o que se pretendia era promover a “ação pública por parte dos cidadãos”5(8).

No caminho dessa inédita imbricação de princípios empresariais para dentro da administração pública, dois aspectos das reformas gerenciais são importantes de serem salientados: o combate aos fundamentos do planejamento público, substituído por uma doutrina de gestão orientada pela austeridade e pelos princípios de custo-efetividade; e a promoção de uma silenciosa e profunda reforma trabalhista no interior da administração pública. A partir de uma teoria determinista dos processos históricos, o ethos gerencial tomava como autoridade o argumento da modernização e impunha como receita os princípios da descentralização federativa, da flexibilidade administrativa, da publicização e da transparência (accountabillity), entre outros, sempre equacionados pela tese de um estado austero que deveria ser orientado para resultados.

Ao se juntar as várias pontas desse programa, o ponto de gravidade converge para um ataque frontal aos direitos do trabalho. Estes, tomados como pauta puramente corporativa, são alçados à condição de inimigo número um do interesse público – e, enquanto tal, adversários das demandas da nova cidadania. O estatuto da estabilidade laboral, por suas implicações políticas para luta sindical, torna–se objeto central dessa perseguição. No caso do SUS, essa síntese passou a se expressar na associação entre a realização ampliada do acesso à saúde e as formas terceirizadas de contratação laboral.

Ao colocar o trabalho nessa chave interpretativa, a cultura gerencial promovia uma transformação aguda na forma de conceber a construção de direitos sociais na democracia. Na área da saúde, essa transição programática ao gerencialismo disputou e lateralizou o valor do trabalho na Reforma Sanitária, passando a repor impactos crescentes a cada passo dado na luta pela expansão do SUS.

A centralidade das lutas do trabalho para a garantia do direito público à saúde

Para além de identificar na Nova Gestão Pública a grande tese adversária da relação entre os direitos do trabalho e a ampliação do SUS, outro passo necessário consiste em delimitar como essa condição está na raiz de impasses presentes em ao menos três agendas da saúde: para a estrutura federativa do financiamento; para a relação público-privada de interesses presente na gestão; e, por fim, para a implementação de uma Rede Regionalizada de Assistência no SUS. O esforço de reconstituir esse mosaico de pautas, colocando o trabalho no centro das atenções, deve ser compreendido não apenas como um método teórico-analítico, mas como uma forma de reconstituir o programa e a identidade política da Reforma Sanitária no século XXI.

No caso do financiamento, já se encontra amplamente difundido o crescente impacto que o gasto com pessoal representa para os entes municipais. Em 2023, os municípios com até 20 mil habitantes – que representam mais de 70% dos municípios brasileiros – gastavam, em média, 45,3% do seu orçamento com despesa de pessoal. No mesmo ano, para os municípios acima de 400 mil habitantes, gastavam-se 31,2% com a mesma rubrica6. Sem contar os trabalhadores inativos, foram gastos R$ 110,4 bilhões, sendo crescente a transferência desses recursos públicos para os contratos de gestão terceirizada no setor privado. Como parte dessa tendencia à expansão da privatização do orçamento público, conjuga-se o rebaixamento dos salários e das condições de trabalho.

A ausência de um fundo tripartite, que auxilie a formação de uma carreira, com parâmetros nacionais de contratação, salário e progressão funcional, seria, certamente, uma solução para a pressão que a contratação de pessoal para a saúde faz nos orçamentos dos municípios. Além do mais, na ausência de uma pactuação federal para a carreira no SUS, a regressividade do gasto descentralizado com a contratação do trabalho amplia as desigualdades regionais existentes entre os municípios, afetando diretamente a abrangência e a qualidade da assistência à saúde.

É comum a muitas normativas de políticas nacionais de saúde a definição de diretrizes e parâmetros cujo cumprimento por parte dos municípios é condicionado às transferências de recursos federais. As políticas mais bem–sucedidas da saúde obedecem a esse princípio. No entanto, na área do trabalho, essa estrutura nunca se formou, evidenciando que uma política de valorização do trabalho por meio de uma carreira de estado na saúde aponta para a superação de um déficit importante do pacto federativo brasileiro.

Associada a esse impacto financeiro, a descentralização municipalizada do vínculo de trabalho na gestão do SUS produziu ainda outras externalidades importantes: a redução de trabalhadores concursados e a pulverização das formas de contratação. Como pano de fundo dessa estrutura, consta a tese gerencial de que as novas formas jurídicas de contratação de serviços e realização da gestão comportam mais celeridade na entrega dos serviços e o consequente barateamento das despesas com os servidores.

Ao considerar o período de 2018 a 2023, é possível perceber que todas as regiões do País reduziram o quantitativo de trabalhadores concursados e ampliaram as formas terceirizadas de contratação, tendo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como base do vínculo. Tendo em conta os dados do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde7 para esse período, as regiões Centro-Oeste e Nordeste foram as que mais reduziram o quadro de concursados. Respectivamente, passou-se de 60% para 47% e de 45% para 36%.

O farol para essa transição segue sendo a região Sudeste, que contava com 32% de servidores estatutários em 2023, tendo o estado de São Paulo à frente com apenas 29% desses vínculos na rede SUS. Os novos vínculos concentraram-se especialmente nas contratações intermediadas, em que se encontram as Organizações Sociais de Saúde (OSS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) e as Fundações Públicas de Direito Privado (FPDP). Para termos um panorama ainda mais preciso do drama do trabalho no SUS, seria importante dissecar os contratos por Recibo de Pagamento Autônomo (RPA), por pessoa jurídica – também conhecido como pejotização – e os trabalhadores com vínculo por meio de bolsas, que juntos somam 7% das contratações7.

Sem uma mínima coordenação federal, essa realidade pulverizada se multiplicou de acordo com a realidade econômica e o contexto político dos municípios brasileiros. O número de contratos via OSS na administração pública tem crescido consistentemente a partir de 2008, alcançando um pico em 2015, em que está presente em 20 estados brasileiros além do Distrito Federal. Nesse contexto, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais estão na linha de frente dessa difusão, formando um mercado profundamente concentrado nas mãos de poucas OSS7.

Não é possível compreender e superar a fragmentação dos serviços dentro dos municípios e estados brasileiros sem uma compreensão clara da difusão das contratações terceirizadas. Tornou-se comum que uma mesma categoria profissional tenha mais de um contratante dentro de um mesmo serviço, seja em uma equipe de saúde da família ou na vigilância sanitária, nas unidades de urgência ou de emergência. Em uma FPDP estatal, podem conviver trabalhadores com concursos simplificados celetistas, contratos temporários e trabalhadores como pessoas jurídicas8. Em termos de estrutura sociológica, não é difícil captar como os princípios da terceirização gerencialista sustentam a reprodução das desigualdades raciais e de gênero, tendo por base essa fragilização persistente do trabalho.

Na ausência de uma carreira SUS, essa pulverização dos vínculos e o seu mosaico de parcerias com o setor privado, endemicamente presente tanto nos municípios como nos Estados e na União, vêm interditando a própria agenda que ocupa da construção de uma Rede Regionalizada de saúde. A alta rotatividade e a fragilidade dos incentivos criados para a fixação de profissionais, sobretudo em municípios e localidades mais pobres, vulneráveis ou de difícil acesso, são a antítese da previsibilidade mínima necessária para o planejamento da provisão de serviços em rede.

Na falta de uma carreira estruturada, com estabilidade, progressão horizontal e vertical bem consolidadas, a perda de profissionais para o setor privado mostra-se ainda outra face perversa que atua contra o planejamento de Rede. Mais uma vez, o paradigma gerencial, ao bater frente com o planejamento público, atua contra a implementação da Rede assistencial, que segue sendo boicotada pela agenda das terceirizações presente no interior da administração púbica.

A descontinuidade e a fragmentação dos serviços, as longas filas de espera, a dificuldade pública de fixação profissional e a concorrência com o setor privado são aspectos que evidenciam como a desconstituição dos direitos públicos do trabalho está diretamente ligada a problemas sistêmicos do SUS. O desafio consiste em reconstituir as agendas que tratam desses desafios, colocando o trabalho como princípio de análise.

Os direitos do trabalho e as perspectivas de futuro do SUS

Mais do que uma transformação na estrutura institucional do Estado, a maior vitória da cultura gerencialista na área da saúde consistiu em convencer um segmento de gestores de que a luta por uma carreira de Estado no SUS é uma pauta adversativa aos esforços de expansão e acesso aos serviços de saúde. Assim compreendido, o servidor público estatutário se tornou um obstáculo rígido para a expansão da rede, além disso, sua estabilidade funcional e a constituição de sindicatos representativos formariam um núcleo resistente, uma barreira às exigências de flexibilidade exigidas no cotidiano da gestão.

A incursão desses fundamentos no próprio campo da Reforma Sanitária produziu um fenômeno adaptativo da nova gestão pública aos propósitos do SUS, substituindo progressivamente a cultura do planejamento público, que tinha nas carreiras públicas um pilar de sustentação. Nesse processo, as premissas gerenciais, em princípio exógenas à luta da Reforma Sanitária, deixaram de ser apenas um recurso provisório, dados os constrangimentos fiscais do Estado brasileiro, mas tornaram-se um fim em si mesmas – portanto, não apenas uma forma possível e circunstancial de fazer gestão e expandir o SUS, mas a única e melhor opção.

Na história das ideias políticas, é relativamente comum o movimento de ascenso e submersão de valores, ou mesmo a recombinação de ideias que, opostas em um determinado período, tornam-se uma síncrese em outros contextos. Em formulação gramsciana, esse fenômeno foi descrito como transformismo político ou ‘revolução passiva’. Seu aspecto mais nocivo consiste não apenas em fragmentar a coerência de programas políticos transformadores, mas também em desorganizar a identidade política dos segmentos adversários.

Em 2024, ano da 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde, o debate sobre a carreira do SUS assume uma potência histórica decisiva. São muitos os movimentos sociais que compreendem essa urgência e que estão formulando um programa alternativo ao campo gerencial. Em sincronia com essa temporalidade política, o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) construiu neste ano a sua primeira Conferência Livre do Trabalho. Em sua programação, reafirmou como tese que as várias frentes do programa sanitarista requerem a recomposição do valor do trabalho, e que o rumo do SUS está diretamente associado ao desafio cotidiano enfrentado por seus trabalhadores e trabalhadoras. Este editorial, é uma fração da energia e das esperanças reunidas nesse encontro.

Referências

  1. Teodoro R, Guimarães J. A Frente Pela Vida, as lutas do trabalho e o programa de reconstrução do SUS. In: Franco TB, Bussinguer EC, Silva J, organizadores. Frente pela Vida: em defesa da vida, da democracia e do SUS. Porto Alegre: Ed. Rede Unida; 2023.
  2. Theodoulou SZ, Roy RK. Public administration: a very short introduction. New York: Oxford University Press; 2016.
  3. Hall S. The Neoliberal Revolution. Cult Stud. 2011;25(6):705-728. DOI: https://doi.org/10.1 080/09502386.2011.619886
  4. Giddens A. The Third Way. Cambridge: Polity; 1998.
  5. Cardoso FH. Prefácio. In: Bresser-Pereira LC. Reforma do Estado para a cidadania: a reforma gerencial brasileira na perspectiva internacional. São Paulo: Ed. 34; Brasília, DF: Enap; 1998.
  6. Ministério da Saúde (BR). Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde – SIOPS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2023.
  7. Ministério da Saúde (BR). Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, Datasus; 2023.
  8. Druck G. A Terceirização na saúde pública: formas diversas de precarização do trabalho. Trab Educ Saúde. 2016;14:15-43. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00023