Debate: Ricardo Menezes responde a artigo assinado por Armando Raggio e Marcio Almeida sobre o SUS
Texto, publicado no site do Cebes, intitulado “19 de setembro: 20 anos de SUS” comenta que, apesar dos avanços e das conquistas, “a saúde continua sendo um problema crítico para milhões de brasileiros”.
SUS: O Equívoco Político do Mudancismo
Ricardo Menezes*
Registramos os 20 anos da Lei [lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 – Lei Orgânica da Saúde]. Devemos comemorar as conquistas que ela propiciou. Mas precisamos também trabalhar pela sua atualização. Defendemos a revisão da Lei Orgânica da Saúde. Novos modelos de atenção, novos modelos de gestão precisam ser implantados. Desta vez, de baixo para cima. Ou seja, dos municípios para os estados e destes para a União.
(Almeda, M.; Raggio, A. 19 de setembro: 20 anos de SUS. Boletim do CEBES, 17 set. 2010)
O mudancismo e o interdito político das elites econômicas e políticas conservadoras brasileiras, no caso do Sistema Único de Saúde (SUS), até agora vem dando certo na inviabilização da sua consolidação.
Neste sentido, o artigo cujo trecho encontra-se em epigrafe, intitulado 19 de setembro: 20 anos de SUS, a par de não ser rigoroso historicamente por trazer análise ufanista em relação à implantação do SUS, surpreende porque apresenta defensores do SUS adotando o discurso mudancista das elites conservadoras, o que vem a ser um imenso equívoco político.
Falar de “revisão da Lei Orgânica da Saúde” – lei nº 8.080, de 19-09-1990 –, porque, segundo os autores, “novos modelos de atenção, novos modelos de gestão precisam ser implantados. Desta vez, de baixo para cima. Ou seja, dos municípios para os estados e destes para a União”, pode passar as seguintes impressões para um jovem que venha a ler o artigo:
a) a de que a Lei Orgânica da Saúde foi concebida “pelo alto” e não contempla suficientemente as competências e as atribuições da União, dos estados, do Distrito Federal e das municipalidades, o que todos sabemos não ser verdadeiro;
b) a de que o nível de detalhamento da lei é tal que deveria dar conta, então, de supostos “novos modelos de atenção, novos modelos de gestão”, os quais, aliás, os autores não explicitam quais seriam.
Ou seja, a verdadeira revolução da Saúde no Brasil se constituiria, de fato, na implantação do Sistema Único de Saúde, em conformidade com o estabelecido na Constituição Federal de 1988 (CF de 1988) e centralmente disciplinado pela Lei Orgânica da Saúde, porém, por natural, interrompendo-se a atual relação pouquíssimo transparente e anti-SUS existente entre o interesse público e o interesse privado na Saúde e enfrentado-se com desassombro político os reais problemas que estão fazendo do SUS, como regra, um sistema para os pobres e complementar aos interesses privados que operam na Saúde.
Diga-se, por fim, que os autores não enfrentam nenhum dos reais problemas que estão mutilando, a cada ano um pouco mais, o SUS realmente existente, a saber:
1. a não regulamentação do financiamento da Saúde, inscrito na CF de 1988 através da aprovação da Emenda Constitucional nº 29/2000; o insuficientíssimo investimento público na Saúde e a escandalosa renúncia fiscal da União e as desonerações diversas patrocinadas pela União, estados e municipalidades em detrimento do aporte de recursos no SUS;
2. a Saúde – área intensiva em utilização de mão-de-obra – constar na base de cálculo da lei de responsabilidade fiscal;
3. a Saúde ainda estar sob o alcance da DRU;
4. a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, efetivamente não estar cumprindo integralmente a lei que obriga as operadoras de planos e seguros de saúde a realizarem o ressarcimento ao SUS das despesas com o atendimento dos seus afiliados. É pífia a atuação da ANS quanto ao ressarcimento!;
5. a ausência de protagonismo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, no que se refere às suas atribuições precípuas, ou seja, a coordenação nacional, e a execução aonde for necessário em face da impossibilidade do estado e do município fazê-lo, de ações programáticas relativas à vigilância sanitária de serviços de saúde; o reduzido protagonismo quanto à vigilância sanitária de produtos, excetuando-se os medicamentos, e a ausência de protagonismo quanto à vigilância sanitária de ambientes e processos de trabalho;
6. a não discussão da necessidade de criação de uma carreira nacional – referente às atividades gerenciais e às atividades fim do SUS –, em articulação com estados, Distrito Federal e municipalidades, porém constituindo-se em carreira federal com caráter meritocrático a prover o SUS de quadros técnicos muito bem pagos e com permanente perspectiva de ascensão funcional;
7. a “porta de entrada” do SUS, a rede de atenção primária, salvo exceções de praxe, globalmente é pouco resolutiva e, ainda por cima, não se coloca como opção aos trabalhadores de categorias mais organizadas, portanto, com maior poder de pressão política, e às camadas médias;
8. o estrangulamento da prestação de serviços de média complexidade é inegável no SUS, e
9. cabe indagar: quantos milhões de brasileiros e brasileiras ainda não tem acesso à atenção primária? Quantos milhões esperam por período de tempo inaceitável para serem submetidos a procedimentos de média complexidade? A rede de urgência e emergência e o serviço de remoção de pacientes (SAMU) estão implantados em todo o território nacional?
De certo outros problemas existem, mas termino chamando a atenção para o óbvio: preocupações gerenciais e, muito menos ainda, mudancismo no arcabouço jurídico-normativo do SUS, são iniciativas incompreensíveis quando descoladas da urgente necessidade de regulamentação do financiamento da Saúde; do provimento adequado e estável de recursos humanos; da garantia de acesso adequado onde ele é moroso e garantí-lo aonde ele não existe e, finalmente, da didática – do ponto de vista democrático – proibição da “dupla porta” em equipamento públicos de saúde, em especial nos hospitais.
A consolidação do Sistema de Saúde nacional público e universal, o SUS, é uma luta cada vez mais dura!
* Ricardo Menezes é médico sanitarista da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.