O equilíbrio entre o individual e o coletivo na busca pela universalidade do SUS
De Danielle da Costa Leite Borges*
A possibilidade de postulação individual de direitos sociais, especialmente do direito à saúde, trazida pela Constituição de 1988, representa um enorme passo na realização de um sistema universal de saúde. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a elevação do direito à saúde à categoria de direito fundamental criaram as bases para o estabelecimento de uma nova relação entre o cidadão/sociedade e o Estado, pois este passou a ter o dever constitucional de garantir aos indivíduos acesso universal aos serviços de saúde contemplados pelo SUS.
No entanto, o aumento expressivo de demandas individuais relacionadas à prestação do direito à saúde no âmbito do SUS, situação vivida pelo Judiciário Brasileiro nos últimos anos, acaba por gerar conflitos entre o aspecto individual e o coletivo, sendo certo que o aspecto coletivo é essencial para o alcance de um sistema público e universal.
Se de um lado é verdade que a efetivação do direito à saúde de um indivíduo se materializa quando este obtém uma medida judicial que garante acesso ao medicamento/tratamento postulado, de outro, também é verdade que essa efetivação pode estar sendo garantida mediante sacrifício de uma política pública estabelecida na busca pela universalidade e igualdade desse acesso a toda coletividade, condições estas indissociáveis do direito fundamental à saúde, nos moldes estabelecidos pela
Constituição. O que está implícito no desenho constitucional desse direito social é o dever do Estado de fazer ponderações que possibilitem que a utilização dos bens e serviços disponíveis se dê de forma a garantir universalidade e igualdade de acesso.
Sem deixar de ressalvar as hipóteses que demandam uma intervenção judicial urgente, seja para cuidar de uma questão com especificidades e excepcionalidades não alcançáveis por uma política fundada na universalidade e integralidade, seja para reparar eventuais descumprimentos da própria política estabelecida, o fato é que, em muitas decisões, a complexidade dessa questão é simplificada e tratada de forma individualizada, sem considerar a necessária gestão equitativa dos recursos públicos destinados à saúde.
Por isso é necessário se redimensionar a questão, lançando argumentos que permitam olhar para o tema com uma “lente de aumento” ou macro visão, ou seja, propõe-se aqui uma breve releitura do tema.
Primeiramente, precisamos entender que a justa distribuição de recursos de saúde na sociedade depende da opção sobre a qual se fundam os ideias de justiça de dada sociedade. No caso brasileiro, apesar da considerável participação do mercado privado na provisão de serviços de saúde, a opção com a criação do SUS foi a de oferecer um sistema público de saúde,de acesso universal e igualitário, ou seja, baseado nos princípios da equidade e da solidariedade.
Nessa linha de raciocínio, precisamos também ter a percepção de que ao se proteger o interesse coletivo também se está protegendo o interesse individual.
Redimensionando-se a questão sob essa ótica, passa-se a entender que a ponderação que cabia ser feita entre o direito individual e o coletivo nessa matéria já foi superada pela Constituição, a qual indicou de forma clara que o interesse público, no caso da garantia do direito à saúde, se confunde com o interesse coletivo, pois o acesso a ser garantido pelo Estado deve se dar a todos os indivíduos de forma igualitária e universal. Ao legislador ordinário e ao aplicador da lei – Executivo ou Judiciário – cumpre dar materialidade à realização desse direito mediante a formulação e implementação de políticas públicas que promovam justiça distributiva no âmbito da saúde.
Nessa ótica, uma exacerbação de direitos individuais – aqui exemplificada através das ações judiciais individuais para obtenção de medicamentos e tratamentos no âmbito do SUS – sem a necessária ponderação dos interesses coletivos em questão, pode representar verdadeira violação aos ideais igualitários do sistema.A busca pela universalidade e equidade do SUS passa necessariamente pela ponderação entre os interesses individuais e os coletivos, sob pena de estarmos nos afastando dos ideais e princípios nos quais se baseiam o sistema.
A nossa Constituição oferece ferramentas para lidar com essa tensão e realizar a necessária ponderação, através dos princípios que orientam a prática da administração pública. O princípio da supremacia do interesse público e o reconhecimento de que este interesse, no âmbito da saúde, enquanto direito social fundamental, se confunde com o interesse coletivo, nos permite indicar que a proteção do direito individual deverá se dar, não pela garantia de seu interesse imediato, e sim pela garantia da existência de políticas públicas que garantam acesso igualitário e universal aos bens e serviços de saúde – revelando a faceta pública e coletiva do interesse individual.
Partindo dessa formulação, a busca pela solução de eventual conflito entre interesses individuais e coletivos deverá se fundar nas ponderações norteadas pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, por razoável entendendo-se aquilo que é conforme à razão, ao Direito e à equidade. Assim, a eleição do princípio da razoabilidade como condicionante do agir do Estado significa dizer que as decisões devem guardar congruência com a norma que se está a aplicar, produzindo um resultado coerente e harmonioso com a finalidade por ela almejada. E por proporcional entendendo-se o atuar dentro dos limites necessários e suficientes à realização da finalidade almejada pela norma.
A realização de direitos fundamentais não será garantida apenas por decisões fundadas na mera invocação de cláusulas abstratas como a de “garantia à saúde” ou de “interesse público”. Impõe-se ao Estado dever de demonstrar a realização da justa distribuição de recursos envolvidos na promoção e efetivação de direitos consagrados como fundamentais pela sociedade.
*Advogada e doutora em Direito pelo Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália)