Violência como um problema de saúde pública: da teoria à prática
Por Silvio Fernandes da Silva (*)
O título acima é o da mesa-redonda em que participei no Seminário Nacional do CONASS, Violência uma epidemia silenciosa, ocorrido nos dias 29 e 30 de abril de 2008 em Porto Alegre, representando o Cebes. Para abordar o tema proposto torna-se necessário previamente posicionar-se sobre o conceito de violência e suas causas.
Violência tem sido associada frequentemente ao crescimento da morbi-mortalidade por causas externas. Essa associação é compreensível em virtude do número elevado de mortes no trânsito – situação na qual o Brasil ocupa o segundo lugar no mundo por número de veículos – e especialmente pelos números assustadores de homicídios de jovens nas cidades de grande e médio porte. Esta é uma dimensão importante da violência, mas não me parece aconselhável reduzi-la a esse componente, como frequentemente ocorre com o senso comum, sob risco de associá-la apenas à criminalidade e políticas de segurança pública. O conceito de violência é maior do que o ligado à crime, agressão, homicídio e trânsito. A violência se expressa em todas as formas de exploração e dominação, desde as ligadas a fatores econômicos, que levam à exclusão e desigualdade social, até os inerentes as relações que acontecem no cotidiano, família, trabalho e outras formas de convívio social.
Além da natureza complexa, a violência é multicausal. Seria um equívoco atribuí-la de forma exclusiva à desigualdade social, assim como também o seria supervalorizar unicamente os aspectos culturais ou biológicos ou de convívio social. Considerando as diferentes linhas de pesquisa e publicações de especialistas sobre as causas da violência, penso que três são as mais importantes na explicação do seu crescimento no Brasil e em países da América Latina, nas últimas décadas. A primeira diz respeito à visibilidade que assumiu a desigualdade social em decorrência da globalização e das formas de comunicação contemporânea. A explicitação das diferenças entre os que têm e os que não têm, entre os que podem e os que não podem consumir em um mundo no qual os valores neoliberais predominam, estimulam frustrações e sentimentos de revolta. A segunda tem a ver com a ética vigente na sociedade e à degradação de valores morais relacionados ao respeito aos direitos do outro. Aparentemente cresce a concepção de que não é errado “levar vantagem em tudo”. Cresce a crença de que essa regra faz parte do jogo social, afinal “todos fazem isso”. Diz respeito também à facilidade de, ultrapassando os limites da ética e da moral e entrando no campo da legalidade e honestidade, transgredir em decorrência da sensação da impunidade vigente. A terceira causa situa-se no campo das políticas públicas. Políticas sociais ineficientes e ineficazes na efetivação dos direitos de cidadania e ações inconsistentes e de pouco impacto na área de segurança pública são fatores importantes para o crescimento da violência. Nesta última, não apenas na punição da criminalidade, mas também em sua inibição e na recuperação dos transgressores.
Na América Latina, o crescimento da violência nas últimas décadas guarda relação direta com a incapacidade dos Estados nacionais em reduzir a desigualdade social e implementar políticas sociais de qualidade. As medidas de ajuste fiscal neoliberal obedeceram um padrão muito similar nos países do continente a partir das décadas de 1980 e 1990. Os ajustes macroeconômicos diminuíram a capacidade dos países em desenvolver sistemas de proteção social e levaram, em muitos países, à redução ainda maior dos gastos públicos em saúde, educação, habitação popular, assistência social, incentivos à população trabalhadora de baixa renda, entre outros, e aumentou de forma significativa a drenagem de recursos Sul/Norte. Não foi por outro motivo que a América Latina se consolidou nas últimas décadas como o continente de maior desigualdade social do planeta, fato que contribui para ampliar as bases estruturais da violência social.
Passar da teoria à prática no enfrentamento da violência, conforme propõe o tema dessa mesa-redonda, é não desconsiderar essa dimensão estrutural e também implementar políticas públicas adequadas para reduzir sua incidência e amenizar seus efeitos. Nesse sentido a Reforma Sanitária brasileira constitui um excelente exemplo. A incorporação de saúde como um direito universal de cidadania na Constituição e a luta cotidiana para tornar realidade esse direito, resulta em ações concretas e práticas nas mais diferentes áreas, especialmente se considerarmos saúde da forma abrangente como propõe nossa reforma. Para ilustrar, que ações práticas podem ser consideradas mais efetivas na luta contra a violência do que a reforma psiquiátrica brasileira? Que violência se praticou ? e ainda se pratica, agora felizmente menos ? contra brasileiros em estado de sofrimento psíquico, estigmatizando-os, discriminando-os, institucionalizando-os em manicômios? Que ação concreta pode ser considerada mais adequada do que reinserir esse brasileiros em uma condição mais adequada de cidadania, lutando contra o estigma a que são submetidos, desinstitucionalizando-os e procurando favorecer sua reinserção social?
Entre as políticas públicas de saúde que podem ser desenvolvidas contra a violência, pela necessidade de ser sucinto me refiro neste momento apenas ao desafio das gestões locais. Nos municípios é possível articular as forças sociais para otimizar as ações de prevenção da violência. Estímulo à cultura de paz, articulação intersetorial envolvendo educação, justiça e segurança pública, melhor regulação dos espaços urbanos reduzindo horário de funcionamento de bares e jogos de azar e vigilância e intervenção em áreas e populações de maior risco social constituem exemplos concretos. Nesse último tópico, a criação de equipamentos públicos e políticas específicas que acolham a população mais vulnerável, entre os quais crianças, mulheres, idosos e minorias sociais.