Vítimas são escravizadas em área embargada pelo Ibama

Grupo de 13 pessoas era mantido em condições análogas à escravidão na Fazenda Agrinbó, em Vista Alegre do Abunã (RO). Embargada por infrações ambientais, área pertence a pecuarista que é dono do frigorífico Frigomard

Por Bianca Pyl

Um grupo de 13 pessoas era submetido a condições de trabalho análogas à escravidão na Fazenda Agrinbó, localizada em Vista Alegre do Abunã (RO). A fazenda fiscalizada está entre as áreas embargadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) desde 2007 e pertence ao pecuarista Osvaldo Alves Ribeiro.

Osvaldo aparece em 8º lugar, levando-se em conta apenas as pessoas físicas, na lista dos 100 maiores desmatadores do país divulgada pelo Ibama, que faz parte do Ministério do Meio Ambiente (MMA), em 2008. Ao todo, o fazendeiro – que também é proprietário do frigorífico Frigomard, localizado em Senador Guiomard (AC) – pôs abaixo 5,1 mil hectares e recebeu multa do órgão ambiental federal de mais de R$ 7 milhões.

A situação foi classificada pela auditora do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Diana Rocha, como “um quadro clássico que caracteriza a escravidão contemporânea, com todas as irregularidades”. Os 13 empregados não tinham carteira assinada ou qualquer registro trabalhista, nem direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

A ação do grupo móvel interinstitucional de fiscalização – composto por integrantes do MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF) – ocorreu entre 13 e 23 de julho. Um adolescente de 15 anos, duas mulheres e um boliviano, que não tinha documentação, estavam entre os libertados.

A área averiguada destina-se à pecuária extensiva, tem 17 mil hectares declarados e abriga mais de 18 mil cabeças de gado. Osvaldo tem outras fazendas em Rondônia e no Acre. De acordo com a fiscalização, há indícios de ligação comercial (ainda não comprovados), entre o Frigomard, do mesmo dono, e grandes redes de supermercados.

O esquema de aliciamento para o trabalho escravo começava numa pensão próxima à Fazenda Agrinbó. O proprietário do estabelecimento “concedia” hospedagem aos trabalhadores rurais em situação de vulnerabilidade e embusca de empreitadas para que, logo na sequência, o aliciador pudesse cobrir as contas pendentes junto à pensão dos futuros empregados.

Dessa forma, os “ex-hóspedes” da pensão já iniciavam o trabalho devendo para o “gato” (aliciador de mão de obra). “Nesta pensão, eles comiam e dormiam sem pagar, com a conivência do proprietário, que tinha esquema com o aliciador. As diárias variavam entre R$ 30 a R$ 40, só que as vítimas não tinham controle nenhum do que seria cobrado”, relata Ailton Vieira dos Santos, da Procuradoria Regional do Trabalho da 14ª Região (PRT-14).

As vítimas, que vivem em municípios próximos à fazenda, trabalhavam no local desde março e ainda não tinham recebido nenhum salário. De acordo com Diana, o aliciador só efetuaria o pagamento no final do trabalho. “Eles eram contratados para limpar um determinado número de hectares [para formação de pasto] e só receberiam quando o serviço fosse finalizado”.

Os alojamentos oferecidos pelo empregador eram barracas de lona no meio da floresta, sem nenhuma proteção (foto acima). Na época da fiscalização, fazia um frio intenso na região e os trabalhadores não tinham como se proteger das baixas temperaturas. Não havia cobertas e roupas adequadas.

No local, havia animais peçonhentos e até mesmo onças. “Quando chegamos, os empregados estavam comendo uma carne de bezerro (veja ao lado) que encontraram na floresta. Possivelmente, o animal foi abatido por uma onça e os trabalhadores estavam comendo o que sobrou “, conta o procurador Ailton.

Uma cantina, na qual alimentos eram revendidos com preços superiores ao de mercado, era mantida pelo “gato”. Até as ferramentas eram contabilizadas como dívidas.

Nenhum Equipamento de Proteção Individual (EPI) era fornecido, mesmo para a aplicação de agrotóxicos, o que fazia com que o risco de contaminação fosse alto. Todos os funcionários, inclusive o adolescente, trabalhavam com manuseio de substâncias altamente tóxicas, usadas para a limpeza do pasto. Um dos trabalhadores estava com as mãos roxas pelo contato com os produtos.

O “gato”, que trabalhava há mais de cinco anos para o fazendeiro, foi preso em flagrante pelo aliciamento e pela manutenção dos trabalhadores no local. Ele tinha uma arma de fogo sem registro. “A denúncia já foi apresentada porque ele está preso e o prazo é mais curto. Quanto ao proprietário, ainda estou preparando a denúncia, que deve sair em breve”, explica Ercias Rodrigues de Souza, procurador da República que participou da ação.

Esta foi a primeira vez que Ercias acompanhou uma fiscalização de trabalho escravo. “Eu não tenho dúvidas que estar presente durante a ação agiliza a elaboração da denúncia para a Justiça. Posso produzir uma denúncia com muito mais propriedade”, relatou. Para a auditora Diana, a participação do MPF é um “atalho para que o caso chegue à Justiça”.

Durante a fiscalização, o filho do empregador e mais um advogado da família assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) perante o MPT em nome do fazendeiro e realizaram os pagamentos das verbas rescisórias e indenizações aos trabalhadores.

No total, o fazendeiro teve que desembolsar R$ 100 mil por dano moral coletivo. O valor será investidos em projetos sociais na região, em até 90 dias. As verbas rescisórias totalizaram R$ 30 mil. A somatória das indenizações por dano moral individual e do adicional de insalubridade pelo tempo de serviço chegou a R$ 70 mil. “Só o adolescente recebeu mais de R$ 12 mil, que foi depositado em uma conta bancária. Quando ele completar 18 anos, poderá sacar. Ou até antes, por motivo de doença ou para adquirir uma casa própria”, explica o procurador Ailton. Foram lavrados 33 autos de infração.

Mais libertações

Em meados de junho, uma outra incursão do grupo móvel libertou um conjunto de 15 pessoas em situação de trabalho escravo contemporâneo. O primeiro contingente de trabalhadores estava na Fazenda Biriba´s I, que tem Ana Salete Miotto Lorenzetti como proprietária, na mesma Vista Alegre do Abunã (RO). A fiscalização lavrou 13 autos de infração na área.

Na Fazenda Rebeca, que pertence à Marcos Santos da Silva, os fiscais encontraram outras 11 pessoas em regime de escravidão. A propriedade está localizada em Lábrea (AM). Foram lavrados 11 autos de infração.

De acordo com Klinger Moreira, auditor fiscal do trabalho do MTE que coordenou a ação, as vítimas dormiam em galpões que eram usados para armazenar agrotóxicos e suprimento para o gado nas duas fazendas flagradas. “O fogão ficava neste mesmo ambiente. Os empregados não tinham acesso a instalações sanitárias e nem à água potável”, detalha Klinger.

Os trabalhadores eram moradores de regiões próximas às fazendas e estavam, em média, há dois meses nas fazendas, trabalhando no chamado “roço de juquira” (limpeza de terreno para a formação de pasto). Apesar da dificuldade inicial na negociação, os empregadores pagaram as verbas rescisórias e assinaram TAC com o MPT. A PF também participou da ação.

A Repórter Brasil tentou entrar em contato com os fazendeiros envolvidos, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria.

Fonte: REPÓRTER BRASIL