A panaceia de todos os males
Valor Econômico – 03/04/2012
A promulgação da Lei Complementar nº 141 no início deste ano, regulando o 3º parágrafo do art. 198, da Constituição Federal, ilustra com precisão os atuais desafios enfrentados pela administração pública em alcançar níveis elevados de eficiência, especialmente nas áreas mais sensíveis para o bem-estar da população. A lei que definiu o que pode ser considerado como gasto na saúde é um exemplo de perda de foco, reflexo do mau hábito de atribuir à forma legal um peso superior ao próprio ato de gerir. A sua leitura detalhada mostra, em resumo, tratar-se de mera adaptação das atuais regras estabelecidas na educação para a saúde, destacando-se, negativamente, a ausência de qualquer preocupação com a eficiência.
Indiscutivelmente, o propósito do Estado é prover a sociedade de serviços básicos com qualidade, sobretudo de saúde e educação, garantindo que qualquer cidadão, independentemente de suas posses, viva com dignidade. Para este objetivo, a vinculação de recursos tem sido vista como a panaceia de todos os males, embora a própria experiência brasileira na educação demonstre as graves limitações desta estratégia. A Lei Complementar nº 141, porém, mantém a aposta nesse deficiente instrumento.
Lei que regulamentou o gasto na saúde é reflexo do hábito de atribuir à forma legal peso superior ao da gestão
A ideia de “carimbar receitas” é uma prática antiga no país, tendo sido iniciada na Constituição de 34, com interrupções durante a ditadura Vargas e nos primeiros anos do regime militar. A vinculação direcionou o gasto público para a educação, contudo, não foi suficiente para garantir os recursos necessários, especialmente nas áreas mais pobres, em que a arrecadação de impostos é pequena. No intuito de superar este obstáculo, o desenho do modelo de financiamento foi além, estabelecendo um complexo mecanismo de transferência de receitas entre municípios dentro do mesmo Estado no intuito de garantir um piso de despesas por aluno, contando, se necessário, com aportes financeiros da União: criou-se o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef), substituído pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Não obstante, após 23 anos da promulgação da Constituição vigente, a educação brasileira ainda deixa muito a desejar, embora o sistema de direcionamento e distribuição de recursos no ensino seja, de fato, exemplar. Trata-se de uma prova irrefutável da limitação do que atualmente se almeja com aludida lei. Eis uma lição fundamental para o atual debate sobre a saúde.
A aplicação dos recursos na educação é disciplinada pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Por exemplo, segundo a LDB, gastos com merenda escolar, a despeito de sua importância, não são considerados no cômputo do ensino. Despesas com psicólogos, outro caso interessante e de grande relevância no apoio ao aprendizado, também não são computados, pois correspondem a dispêndios típicos de saúde. A lista é longa e diversa, como são inúmeros os casos de desvirtuamento com o uso de receitas em áreas desvinculadas, camufladas como apoio no ensino.
O mecanismo existente, portanto, apesar de sua nobre intenção, não é suficiente para garantir o bom uso dos recursos. Exagerando, comprar diversos computadores e livros sem que sejam efetivamente colocados à disposição dos alunos, por deteriorarem no almoxarifado da Prefeitura, é um gasto aparentemente legal, pois observa a legislação específica do setor, muito embora seja, obviamente, de nenhuma eficácia. Com a Reforma Administrativa de 1998 houve a introdução expressa do Princípio da Eficiência na Constituição Federal, permitindo que práticas como esta pudessem ser punidas, porém, ainda bastante incomum no país.
Infelizmente, a Lei Complementar nº 141 segue a mesma lógica da legislação pertinente à educação, estabelecendo o que deve ser considerado como gasto da saúde e o que é vedado, fixando ao governo federal o montante mínimo a ser investido no setor, regra inexistente até então.
O diagnóstico é evidente: os mecanismos desenhados para a saúde e à educação são eivados de imperfeições. A começar, a administração pública investe menos do que anuncia, sem via de regra um controle eficaz de qualidade. No caso paulista, os dados são confiáveis após a análise do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo que, anualmente, fiscaliza as despesas no setor do governo estadual e dos municípios, com exceção da capital.
Isto ainda é pouco. A atuação do controle externo é importante. Contudo, precisa avançar bastante, buscando coibir o gasto ineficiente, passando a responsabilizar, por exemplo, o gestor que não melhore os indicadores sociais, a despeito de aplicar o mínimo das “receitas carimbadas” nos setores. Por outro lado, a legislação também deve ser aperfeiçoada, estimulando o gestor público a direcionar seus esforços para oferecer saúde e educação de qualidades, rompendo definitivamente os grilhões da desigualdade de oportunidades que assolam historicamente o país. É hora, portanto, de incorporar à legislação metas objetivas de qualidade, municiando os órgãos de controle externo com um arcabouço legal que permita identificar e punir os maus gestores que desperdiçam um enorme vulto de recursos do erário, sem necessariamente descumprir a lei, assim ficando impunes.
A mudança urge. Afinal de contas, é mais relevante minimizar a mortalidade infantil, erradicar o analfabetismo ou simplesmente cumprir metas financeiras sem qualquer preocupação com a qualidade de vida da população? Não há resposta mais óbvia. Para o atual nível de serviços, é importante que se registre, os recursos são mais do que suficientes caso sejam eficientemente utilizados. Assim, a vinculação de recursos não pode ser desassociada de metas objetivas para a saúde e à educação. Sem esta nova mentalidade, corre-se o risco de mudar para permanecer tudo como está. Uma decisão certamente inaceitável.
Marcos Renato Böttcher, advogado especialista em Direito Público e Contador, é assessor técnico procurador e chefe de gabinete do TCE-SP, tendo sido substituto de conselheiro indicado pela Assembleia Legislativa.
Gustavo Andrey Fernandes é assessor técnico do TCE-SP e professor de Administração Pública na FGV-EAESP.