“A saúde privada mais prejudica do que colabora”, afirma pesquisador
Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pós-doutor em Ciência Política pela Universidade de Yale (EUA) e técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o pesquisador Carlos Ocké (foto) está lançando o livro “SUS: o Desafio de Ser Único”, no qual discute as perspectivas, as realidades e os limites da saúde pública brasileira. No seu entender, o Sistema Único de Saúde (SUS) não vai se afirmar enquanto “a pobreza, a desigualdade, a violência e os baixos níveis educacionais e culturais da sociedade brasileira continuarem batendo à porta”.
Nesta entrevista ao ‘Saúde Goiânia’, ele aborda este e outros aspectos da área e faz contudentes críticas ao mercado dos planos de saúde. “Nos parece oportuno defender no terreno da Reforma Sanitária a ideia de que a ‘saúde suplementar’ seja regulada como atividade privada de interesse público, mediante o regime de concessão de serviços públicos”, afirma. Segundo Ocké, o crescimento desses planos foi gritante “porque contou com incentivos governamentais no contexto do desfinanciamento do SUS, da crise fiscal do Estado e da ofensiva neoliberal”. Confira.
-Quais os principais obstáculos para que o SUS se torne realmente um sistema único?
Sem um programa mínimo para fortalecer o Sistema Único de Saúde, uma visão fiscalista, em que o fomento ao mercado de planos aparece como solução pragmática para desonerar as contas públicas, passa a fazer parte do ideário de setores economicistas no Estado e na sociedade. Como o SUS hoje não tem condições substituir o mercado na cobertura dos trabalhadores do núcleo dinâmico da economia e do Estado – ao lado de seu fortalecimento nos parece oportuno defender no terreno da Reforma Sanitária a ideia de que a ‘saúde suplementar’ seja regulada como atividade privada de interesse público, mediante o regime de concessão de serviços públicos. Para tanto, seria necessário mudar no Congresso Nacional as normas que designam a assistência à saúde como livre à iniciativa privada (artigo 199 da Constituição Federal e art. 21 da lei n. 8.080).
-As reflexões que seu livro traz indicam que o sistema único pode vir a ser uma realidade a médio prazo, a longo prazo ou entra no plano da utopia?
Não há espaço para a afirmação do SUS se a pobreza, a desigualdade, a violência e os baixos níveis educacionais e culturais da sociedade brasileira continuarem batendo à sua porta. Sua implementação pressupõe transformações estruturais e um novo modelo de desenvolvimento, onde o Estado democrático, o setor produtivo e o interesse público tenham papel estratégico em nosso futuro. Ao apontar a necessidade de uma regulamentação substantiva do setor privado para garantir a equidade do sistema – vivificada pelo Estado, pelos gestores do SUS e pelos movimentos sociais – esse livro pretende contribuir para o debate setorial, sem fazer com que eventuais diferenças sejam vistas como antagonismos que nos afastem do projeto político em defesa da saúde, da vida e do socialismo democrático.
-Os planos complementares vem crescendo muito no Brasil, mas precisam de um certo subsídio do Estado, na forma de renúncia fiscal, caso do abatimento no imposto de renda. Isso não é contraditório, já tira dinheiro do público e transfere ao privado? O senhor acredita que simplesmente isso não devia existir?
Em essência, é preciso mudar a lógica de atuação do Estado, que, por meio do fundo público, vem favorecendo as condições de rentabilidade dos planos de saúde, resolvendo, em parte, a pressão dos custos e dos preços crescentes. Ou se estatiza o sistema (radicalizando o papel ‘intervencionista’ do Estado) ou se mantém a forma privada de atividades socialmente importantes, aplicando mecanismos de subvenção estatal (incentivos governamentais). Nessa direção, portanto, é legítimo propor que o Estado, considerando seu poder de compra (economia de escala), atue como braço de apoio da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para relativizar o poder dos oligopólios, para sancionar a concorrência regulada e para reduzir os preços (mantidas a cobertura e a qualidade). Foi essa ideia-força, inclusive, que orientou a proposta do ‘Obamacare’ [Nos Estados Unidos], que previa a ampliação da intervenção governamental para resolver a ineficiência do setor privado. Curiosamente, em linha análoga, Sérgio Arouca [ex-secretário de Gestão Participativa do Ministério da Saúde] antes da sua morte, queria discutir com empresários e sindicatos a possibilidade de o SUS substituir os planos de saúde na cobertura dos serviços médicos dos empregados, a qual passaria a receber recursos diretamente dos empregadores. Sem desconhecer os problemas relativos à estratificação de clientela, sua ideia era trazer os trabalhadores e a classe média para o SUS: “Não estamos interessados no dinheiro. Afinal, esses grupos seriam capazes de exercer uma pressão constante para melhorar a qualidade do serviço e a humanização do atendimento do SUS”, disse ele à época.
-Faltam recursos ou gerenciamento adequado ao SUS? Ou ambos?
Em termos econômicos, a indagação correta a ser feita é: a contenção dos custos de maneira indiscriminada não poderia agravar os problemas de gestão do SUS? O incremento da eficiência não deve ser tomado como desculpa para cortar recursos financeiros ou organizacionais do SUS, bem como as filas em um sistema universal de saúde não podem servir para restringir o acesso. Considerando o custo de oportunidade para se alocar recursos para a saúde (vis-à-vis outros setores sociais), a melhor prática potencializa o dinheiro empregado na prestação de serviços médico-hospitalares visando sua efetividade. A qualidade da atenção pode ser, portanto, valorizada a partir da aplicação de um conjunto de práticas gerenciais: otimização de recursos; incentivos contratuais de longo prazo aos profissionais de saúde; ajustes permanentes do meio-ambiente e das tecnologias ao processo de trabalho; incremento da produtividade; corte de desperdícios; combate à corrupção etc. Desse modo, paradoxalmente, a melhoria da eficiência pode, na realidade, exigir o aumento dos gastos e por isso boa parte dos problemas de gestão decorre da crise crônica de financiamento do SUS. Infelizmente, após a extinção da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – que foi capitaneada pela oposição em fins de 2007 –, o Congresso Nacional aprovou a regulamentação da Emenda 29 sem o comprometimento de a União participar com 10% do seu orçamento, ignorando-se os problemas de financiamento e gestão do SUS.
-Nas últimas eleições, o tema da saúde pública foi um dos principais destaques nos debates, nos programas de governo e também nas promessas. Por que não se discute a saúde privada e seus limites e problemas?
Na sociedade brasileira, o bloco histórico democrático e socialista precisa compreender o significado da regulamentação do mercado de planos de saúde. Existe uma contradição entre os pressupostos do nosso modelo de proteção social redistributivo e a ampliação desse mercado. Em particular, desde 1968, essa ampliação se deu com o apoio de incentivos governamentais, entre outros, mediante a renúncia de arrecadação fiscal, como ocorre no sistema liberal estadunidense. Apesar da orientação igualitária do SUS, tendo como base o Estado de bem estar-social europeu, há mecanismos no Brasil que acabam reforçando o modelo privado, uma vez que o mercado depende, em alguma medida, de subvenções estatais – o que está mais em linha com o caso americano do que com os sistemas europeus. Além do mais, embora não desejada pelos sanitaristas, a presença do setor privado acabou também sendo naturalizada no sistema de saúde brasileiro, tirando força da crítica ao mercado de planos. Mas não foram apenas as eventuais fragilidades do SUS que proporcionaram o crescimento dos planos de saúde; ao contrário: esse crescimento foi gritante, porque contou com incentivos governamentais no contexto do desfinanciamento do SUS, da crise fiscal do Estado e da ofensiva neoliberal. Nessa perspectiva, a alegação de que o mercado desafogou financeiramente o SUS serve ademais de apoio ideológico aos interesses liberais e capitalistas, porém, na verdade, esconde o fato histórico de que esse mercado foi uma criação do Estado, favorecendo o modelo de proteção social de matriz liberal em contraposição ao modelo definido na Constituição de 1988.
-Um dos quadros contestados na saúde complementar é que ela só atende a parte mais barata e fácil do tratamento ou serviço, quando fica caro ou complexo o paciente precisa procurar o SUS. Como o senhor avalia esta questão?
Para o senso comum, um sistema duplicado e paralelo dessa natureza é justificado por se imaginar que o mercado reduza a pressão sobre o setor público. Entretanto, defendemos uma tese contrária: o setor privado mais prejudica do que colabora com o setor público, porque o aumento do gasto privado e o fortalecimento do poder econômico corroem a sustentabilidade do financiamento público na arena política, levando a um círculo vicioso, caracterizado por uma queda relativa do custeio e do investimento da saúde pública. Se, além do SUS (Estado), o mercado (capitalismo) fosse pressionado ‘por dentro’ pelo seguro social (associativismo), estariam dadas condições mais realistas para torná-lo, de fato, suplementar. Assim, esse parasitismo, em especial por meio da renúncia de arrecadação fiscal, que permite no fundo tal mercado resolver parte de suas contradições econômicas, seria asfixiado, lançando novo olhar sobre o projeto estratégico de fortalecimento do SUS. Isso poderia abrir as portas para uma nova esfera pública no setor, dando passagem a um projeto radicalmente democrático na saúde (onde o planejamento fosse superior ao mercado). Assim queremos evitar que as inúmeras contradições do mercado (custos e preços crescentes; exclusão de cobertura; seleção de risco; baixa remuneração dos prestadores; prazos indefinidos para atendimento de consultas, exames e cirurgias; dupla militância dos médicos; contratos ineficientes; fraudes etc.) sejam absorvidas passivamente pelo Estado.
-A medicalização crescente transformou a saúde numa questão de mercado, a oferta virou produto e o paciente virou consumidor. De que modo isso interfere na consolidação do SUS?
O protagonismo do artigo 196 da Constituição (saúde é um direito social) sobre o artigo 199 (saúde é livre à iniciativa privada) será fruto da luta política e social dos partidos progressistas, centrais sindicais e movimentos populares. No entanto, na atual correlação de forças, as relações mercantis do setor saúde não serão extintas por decreto. Em que pese a lógica excludente do mercado – encerrada nos lucros extraordinários e na radicalização da seleção de riscos – a sua negação precisa ser mediada na teoria e na prática, no contexto de uma estratégia defensiva de acúmulo de forças, que pressuponha uma agenda de reforma pública do sistema de saúde brasileiro em direção à consolidação do orçamento da seguridade social e à unicidade do SUS. Nessa linha, a regulação do mercado de planos de saúde deve ser polarizada pela lógica do seguro social, sob pena de que a tese correta, aquela contrária à estratificação de clientela, continue impotente, na prática, para barrar o parasitismo desse mercado em relação ao Estado, ao padrão de financiamento público e ao SUS.
-De que forma o sistema de saúde público do Brasil deve lidar com a iniciativa privada, uma vez que ela é grande fornecedora de serviços, insumos, medicamentos e tecnologias?
Em linhas gerais, para promover o crescimento econômico e reduzir as desigualdades sociais, defendemos a estruturação de um certo capitalismo de Estado no setor, onde o governo regule o complexo produtivo, mas atue igualmente como agente econômico. Tendo em mente as mudanças econômicas e tecnológicas operadas na fase da globalização, esse projeto pretende conservar os acertos (industrialização) e superar os erros (excesso de subsídios ao mercado) do processo de substituição de importação visto no século passado. Desse modo, de um lado, o Estado poderia incentivar, a um só tempo, os investimentos e a cadeia produtiva keynesiana na geração de renda, emprego e inovação tecnológica, e de outro, poderia criar uma oferta estatal capaz de atender às exigências de saúde da população em oposição àquelas demandas estritamente mercadológicas do complexo médico-industrial privado.
Por Paulo José via Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia