Associação Brasileira de Saúde Mental defende arquivamento do PL 551
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) subscreve nota técnica conjunta contra PL que retoma lógica manicomial
NOTA TÉCNICA
PL 551/24
1. ASSUNTO:
Essa Nota Técnica visa analisar o PL 551/24, apresentado pelo Deputado Federal Carlos Jordy no dia 05/03/2024 na Câmara Federal dos Deputados. O presente Projeto de Lei tem como objetivo alterar a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, para dispor sobre a internação compulsória de pessoas com transtornos mentais em cumprimento de penas e medida de segurança.
O Projeto de Lei do Deputado é uma reação a Resolução CNJ (Conselho Nacional de Justiça) nº 487, de 15 de fevereiro de 2023 que fixa procedimentos e prazos para o cumprimento legal e a realização por consequência do processo de desinstitucionalização. Dessa forma, é parte de uma agenda para a manutenção do status atual dos Hospitais de Custódia, como foi o Projeto de Decreto Legislativo nº 81/2023 (3567445), apresentado pelo deputado Kim Kataguiri (União/SP).
2. REFERÊNCIAS:
Art. 49, inciso I, da Constituição
Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007
Lei 10.216/01
Lei no 13.146/2015
Resolução CNJ nº 113/2010
Recomendação CNJ nº 35/2011
Resolução CNPCP nº 4/2010
3. SUMÁRIO EXECUTIVO
A ABRASME se manifesta pela rejeição do PL 551/2024, do Deputado Federal Carlos Jordy, tanto pelas inconsistências em relação às atribuições das diversas tipologias de internação, não trazendo assim, nenhuma inovação ou melhoria a Lei 10.216/01.
4. ANÁLISE:
Considerando a apresentação do PL 551/2024 (Altera a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001) que tem como intenção alterar a Lei 10.216/21 e dispor sobre a internação compulsória de pessoas com transtornos mentais em cumprimento de penas e medida de segurança;
Considerando que o respectivo Projeto de Lei busca incluir no art. 9º da Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, o acréscimo de três incisos, com o objetivo de garantir a internação compulsória de pessoas que forem condenadas ao cumprimento de pena ou de medida de segurança, bem como, criar alas exclusivas nos equipamentos de saúde (buscando o isolamento dos mesmos), garantindo nenhum contato, dos mesmos, com os demais usuários e usuárias;
Considerando que a Lei 10.216/01 já tipifica três tipos de internação, sendo dois deles construídos com as equipes de saúde, sendo ato médico a sua prescrição, a internação voluntária e a involuntária e um terceiro sendo de prerrogativa exclusiva do sistema de justiça (a internação compulsória);
Considerando o Art. 4º do Estatuto da Pessoa com Deficiência: “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação”, o Art. 11: “A pessoa com deficiência não poderá ser obrigada a se submeter a intervenção clínica ou cirúrgica, a tratamento ou a institucionalização forçada”, o Art. 13: “A pessoa com deficiência somente será atendida sem seu consentimento prévio, livre e esclarecido em casos de risco de morte e de emergência em saúde, resguardado seu superior interesse e adotadas as salvaguardas legais cabíveis” e o Art. 88: “Praticar, induzir ou incitar discriminação de pessoa em razão de sua deficiência”. Importante destacar que o Estatuto da Pessoa está assentado na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo;
Considerando que no PL 551/2024 afirma: “§1º As pessoas que forem condenadas ao cumprimento de pena ou de medida de segurança, acometidas de algum transtorno mental que, a critério médico, represente perigos para terceiros, serão internadas compulsoriamente”. Nesse inciso o deputado imputa a decisão do médico a realização da internação compulsória, no entanto, não especifica quem realizará a internação compulsória, prerrogativa exclusiva da justiça (que já tem isso tipificado na Lei 10.216/01). Importante destacar que a equipe de saúde e o ato médico, está associado, não a internação compulsória, mas sim, a internação involuntária. Nesse sentido, o Projeto de Lei está confuso, em relação às tipologias de internação e quem poderá realizar;
Considerando que no PL afirma: “O disposto no artigo 9º desta Lei não impede à autoridade judiciária competente determinar o cumprimento de medida internação compulsória, de caráter preventivo ou definitivo, em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou outra instituição congênere, sempre que as unidades de atendimento à saúde gerais ou exclusivas ofertadas pelo Poder Público não oferecerem as condições de segurança exigidas à proteção dos demais pacientes, dos profissionais da saúde em atuação no local e da população em geral, especialmente quanto ao risco de fuga”. Nesse trecho o Deputado proponente afirma que a internação compulsória é da autoridade judiciária, algo que não deixa claro no inciso 1 que quer alterar na Lei 10.216/01. Evidenciando a inconsistência do PL em lidar com as tipologias da internação e não trazendo consequentemente nenhuma melhoria a Lei 10.216/01;
Considerando que o PL afirma: “§2º Os estabelecimentos de saúde que forneçam serviços de atenção à saúde mental disporão, obrigatoriamente, de setores e alas que possam individualizar a internação de pacientes de maior periculosidade e daqueles que estejam em cumprimento de penas ou medidas de segurança, com instalações e equipamentos que os mantenham separados dos demais pacientes, e que disponham de estratégias efetivas de contenção, caso necessário”. Neste inciso e no 3 apresentado no PL busca criar nos equipamentos especializados de saúde um tipo de separação dos deficientes psicossociais que sejam oriundos dos Hospitais de Custódia, criando espaços segregadores e que não estão voltados à reabilitação psicossocial e sua estratégia de ressocialização e inclusão social. Importante destacar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência impede essa prática. Dessa forma, uma lei ordinária não pode suplantar dispositivos previstos em uma legislação que foi aprovado com as regras de status constitucional;
Considerando que a Resolução CNJ nº 487/2023 se assenta nas legislações já existentes no país e no sentido ontológico previsto na Lei 10.216/01 e nas diretrizes e recomendações dos organismos internacionais (ONU – Organização das Nações Unidas e OMS) da implementação de processos de desinstitucionalização;
Considerando que a Resolução 487/23 está assentado em resoluções e recomendações do próprio órgão e de conselhos de direitos como:
Resolução CNJ nº 113/2010, que dispõe sobre os procedimentos relativos à execução de pena privativa de liberdade e de medida de segurança, no âmbito dos Tribunais.
Recomendação CNJ nº 35/2011, que estabelece diretrizes para a desinstitucionalização e o redirecionamento do modelo assistencial à saúde mental em serviços substitutivos em meio aberto, indicam a adoção de política antimanicomial na execução das medidas de segurança, nos termos da Lei nº 10.216/2001.
Resolução CNPCP nº 4/2010, indica que no prazo de dez anos, o Poder Executivo, em parceria com o Poder Judiciário, deveria ter implantado e concluído a substituição do modelo manicomial de cumprimento de medida de segurança pelo modelo antimanicomial, através de programa de atenção ao paciente judiciário
Resolução nº 08, de 14 de agosto de 2019, que dispõe sobre soluções preventivas de violação e garantidoras de direitos aos portadores de transtornos mentais e usuários problemáticos de álcool e outras drogas
Considerando que a resolução do CNJ não cria nada, apenas estabelece diretrizes e procedimentos para aplicabilidade das normas nacionais e internacionais vigentes, a exemplo da Constituição Federal, do Código Penal e do Código de Processo Penal, da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216/2001), da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.416/2015) e da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, que foi internalizada pelo país com força de emenda constitucional (Decreto Nº 6.949/2009);
Considerando que a proposta da Política Antimanicomial foi, justamente, fazer com que as regras já existentes (e válidas de longa data) sejam efetivamente cumpridas, ao mesmo tempo oferecendo melhores instrumentos para que o Poder Judiciário possa se adequar a essas normas;
Considerando que a Resolução, foi aprovada em votação plenária pelos conselheiros do CNJ e com força normativa para o Judiciário, parte de extensa base legal traduzida pela Política Antimanicomial do Poder Judiciário e não cria nenhuma ciência, instrumentalizando a aplicação da base legal elencada em seus “considerandos”. Quando as condições de internação em hospitais de custódia violam o cumprimento da lei, torna-se, obrigatoriamente, objeto de atenção do Judiciário.
Considerando que a temática foi discutida amplamente com diferentes atores por quase dois anos no Grupo de Trabalho instituído pelo CNJ no contexto da audiência sobre a condenação do Brasil no caso Ximenes Lopes vs. Brasil, que trata de paciente psiquiátrico que morreu em uma clínica psiquiátrica, o Damião Ximenes Lopes. Esse grupo contou com representantes também da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS);
Considerando que o paciente com transtorno mental em medida de segurança continuará sendo acompanhado pelo Judiciário, inclusive em seu Artigo 13 da Resolução recomenda à autoridade judicial a interlocução constante com a equipe do estabelecimento de saúde que acompanha a pessoa, a EAP ou outra equipe conectora, para que sejam realizadas avaliações biopsicossociais a cada 30 (trinta) dias;
Considerando que o CNJ não muda regras para internações psiquiátricas e não faz avaliações gerais sobre situações específicas de cada pessoa em medidas de segurança – cada caso deve ser analisado pelo juízo competente, dentro das especificidades de cada situação, mas sempre zelando pela aplicação das leis e normas em vigor, que é o que a resolução busca instrumentalizar;
Considerando que o juiz seguirá pautado na opinião de equipes médicas e de saúde, que vão recomendar ou não o seguimento da internação ou indicar a continuidade do atendimento sob outro modelo ou regime quando necessário;
Considerando as diferentes necessidades das pessoas inimputáveis em medida de segurança devem ser observadas no tratamento seguindo o Projeto Terapêutico Singular (PTS) que também consta na resolução;
Considerando que a política não muda o cumprimento de penas. As penas são cumpridas por aqueles que compreendem o crime que praticaram. A resolução só diz respeito a quem não tinha consciência de seus atos, situação atestada após avaliação por equipe de saúde especializada. A lei considera essas pessoas inimputáveis;
Considerando que nem todos os pacientes precisarão de internação e, portanto, leito em Hospital Geral. Segundo determina a resolução, cada pessoa deve ter seu Projeto Terapêutico Singular (PTS) formulado e as respostas para cada necessidade. A RAPS conta com vários serviços, por exemplo:
Na Atenção Básica • Unidade Básica de Saúde; • Núcleo de Apoio a Saúde da Família; • Consultório de Rua; • Apoio aos Serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório; • Centros de Convivência e Cultura. Atenção Psicossocial Estratégica • Centros de Atenção Psicossocial nas suas diferentes modalidades. Atenção de Urgência e Emergência • SAMU 192; • Sala de Estabilização; • UPA 24 horas e portas hospitalares de atenção à urgência /pronto socorro, Unidades Básicas de Saúde. Atenção Residencial de Caráter Transitório • Unidade de Acolhimento; • Serviço de Atenção em Regime Residencial. Atenção Hospitalar • Enfermaria especializada em hospital geral; • Serviço Hospitalar de Referência (SHR) para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas. Estratégia de Desinstitucionalização • Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); • Programa de Volta para Casa (PVC). Estratégias de Reabilitação Psicossocial • Iniciativas de Geração de Trabalho e Renda; • Empreendimentos Solidários e Cooperativas Sociais;
Considerando que a resolução não abole nenhum tipo de avaliação de competência de outras áreas. Inclusive, a resolução fala em vários momentos em respeitar e levar em conta as considerações e avaliações da equipe de saúde, que inclui os profissionais da especialidade médica, no acompanhamento dos pacientes, considerando a noção ampliada de saúde da OMS e seus determinantes sociais e a mudança de paradigma trazida pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), conforme listado em seu Artigo 2º;
Considerando que dentre os que tiverem necessidade de internação, após avaliação por equipe de saúde, ficarão internados nos dispositivos previstos no SUS/RAPS enquanto necessário como parte do tratamento. O fato de terem cometido algum ato definido como crime não os torna mais suscetíveis do que os demais para cometer outros atos. O manejo de situações de risco psiquiátrico segue um protocolo definido pelos profissionais da saúde, aplicável a todas as pessoas em tratamento;
Considerando que a melhor forma de proteger a todos – tanto as pessoas em medidas de segurança, quanto a sociedade em geral –, garantindo a aplicação de normas e leis em vigor definidas segundo melhores práticas observadas no Brasil e no mundo, é que essas pessoas estejam sob cuidados especializados, com profissionais especializados e em locais que ofereçam o tratamento adequado, o que não é o caso de muitos hospitais de custódia em operação no país, conforme apontado pela própria Cremesp em relatório publicado em 2014: https://www.cremesp.org.br/pdfs/Livro_Hospital_de_Custodia.pdf;
Considerando que para além da evidência de própria análise médica sobre a situação dos hospitais de custódia mencionada na questão anterior, é importante destacar que é função precípua do Judiciário garantir o cumprimento de leis, que no caso, apontam para a impossibilidade de operação dos hospitais de custódia no formato que estão no país hoje. A partir dessa premissa, o trabalho pela melhoria das políticas públicas deve ser contínuo;
Considerando que o número de medidas de segurança em unidades prisionais no Brasil está em queda, segundo dados do Poder Executivo – em 2011 eram 3989 pessoas nessa situação no país, número reduzido em 2022 para 1987 pessoas.
Considerando que a responsabilidade pela elaboração dos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), uma vez determinada a medida de segurança pelo Judiciário, é dos profissionais da área de saúde, conforme indicado em diversos momentos da resolução, a exemplo do Artigo 12, parágrafo 1. § 1º O acompanhamento da medida levará em conta o desenvolvimento do PTS e demais elementos trazidos aos autos pela equipe de atenção psicossocial, a existência e as condições de acessibilidade ao serviço, a atuação das equipes de saúde, a vinculação e adesão da pessoa ao tratamento.
Considerando que diversas unidades da federação já se adequaram à legislação vigente e que estados como Rio de Janeiro e Piauí fecharam Hospitais de Custódia, enquanto Goiás nunca teve esse tipo de estabelecimento. Adicionalmente, diversos tribunais desenvolveram fluxos próprios para encaminhamentos, e vimos multiplicar os grupos de trabalho e ações interinstitucionais para a discussão do tema em pelo menos 11 estados;
Dessa forma, diante do exposto o Conselho Nacional de Justiça não “legislou” e nem “extrapolou” seus limites institucionais, ao contrário, reforçou sua missão institucional de “promover o desenvolvimento do Poder Judiciário em benefício da sociedade, por meio de políticas judiciárias e do controle da atuação administrativa e financeira”. Garantindo a efetividade das leis já vigentes no país. Algo, que na justificativa do PL afirma o contrário, tentando assim, justificar uma alteração legal para impedir o cumprimento da resolução do CNJ.
5. CONCLUSÃO:
A partir desses considerandos se faz necessário a rejeição do PL 551/2024, do Deputado Federal Carlos Jordy, tanto pelas inconsistências em relação às atribuições das diversas tipologias de internação, não trazendo assim, nenhuma inovação ou melhoria a Lei 10.216/01, ao contrário, criando confusões e imprecisões em sua aplicação, bem como, por entrar em choque com o Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009, e com status equivalente ao de emenda constitucional (art. 5º, § 3º, CF), logo não pode ser impactado por uma lei ordinária.
São Paulo, 10 de dezembro de 2024
ASSINAM ESTA NOTA:
Associação Brasileira de Saúde Mental – ABRASME
Associação Brasileira de Enfermagem – ABEn
Associação Brasileira de Psicologia Social – ABRAPSO
Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – CEBES
Conselho Federal de Serviço Social – CFESS
Colegiado de Apoiadores da RAPS de SC
Federação Nacional das Psicólogas e dos Psicólogos – FENAPSI
Frente Nacional de Negros e Negras da Saúde Mental
Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e Luta Antimanicomial/RJ
Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e da Luta Antimanicomial/ES
Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial
Movimento Nacional de População de Rua – MNPR
Sindicato das/os Psicólogas/os do Estado de São Paulo – SINPSI-SP
Sindicato das/os Psicólogas/os da Bahia – SINPSI-BA
Sindicato das/os Psicólogas/os do Estado do Rio de Janeiro – SINPSI-RJ