CFM intimida médicos e interrompe assistência a aborto legal
Processos ético-disciplinares e suspeita de devassa de prontuários aterrorizam médicos nos serviços de aborto legal. A derrubada, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), da liminar que suspendia a Resolução 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM), levou à interrupção da assistência a meninas e mulheres estupradas, após o acesso retardado aos serviços de Saúde.
“A Resolução 2.378/2024 está criando uma situação de omissão involuntária de socorro, levando meninas e mulheres que sofreram violência sexual a uma violência – violência institucional – e à busca por condições inseguras para interrupção da gravidez”, afirma a médica Leila Adesse, doutora em Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente (Fiocruz), que liderou equipes de saúde para reduzir a mortalidade por aborto, contribuindo para a edição de norma técnica sobre atendimento.
A resolução 2.378/2024 veta o procedimento de assistolia fetal, recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), após 22 semanas gestacionais. A norma estava suspensa liminarmente em ação civil pública movida pelo Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e Ministério Público Federal (MPF).
Há notícias de processo contra pelo menos nove médicos, incluindo anestesista e dois residentes, somente em São Paulo. Procurados pelo Cebes, os profissionais preferiram não se manifestar, aterrorizados com a perspectiva de cassação.
“É preciso esclarecer como os Conselhos Regionais de Medicina tiveram acesso aos prontuários, que são sigilosos. O acesso sem autorização das pacientes é inadmissível, seria uma barbárie. O acesso expõe as pacientes”, afirma o professor emérito da Faculdade de Medicina da UFMG Dirceu Greco, membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco-Paris e integrante do comitê científico da SBB.
A deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) oficiou o Cremesp cobrando explicações sobre a ofensiva contra os médicos. O documento ressalta que os procedimentos são legais e que causa especial preocupação “o fato de que os prontuários dessas pacientes, ao que parece, foram acessados sem consentimento delas”.
Medida Protelatória – “É um terror. Mesmo que os processos não resultem em punição, porque não são éticos nem legais, cumprem um papel intimidatório”, afirma Greco. Para o especialista em bioética, a resolução CFM “é uma medida protelatória”. “Agora eles têm 22 semanas para retardar e inviabilizar uma assistência que é direito da mulher”, afirma Greco. A legislação brasileira não estabelece prazo para realização do aborto legal, nem exige autorização judicial. Mas há diversos relatos de exigências, sem previsão legal, que postergam o atendimento.
Na decisão que revogou a liminar, o desembargador Cândido Leal Júnior alega que seria “oportuno” debater melhor o tema, “sempre com a possiblidade que os casos concretos tenham tratamento específico e individualizado” na Justiça. Faltam votos decisivos de dois desembargadores.
“É uma violência impor barreira adicional para as mulheres que tiveram acesso tardio aos serviços de Saúde, após violência sexual”, afirma a médica Ana Costa, diretora-executiva do Cebes e doutora em Ciências da Saúde (UnB). “As resoluções dos Conselhos de Medicina são normas infralegais, que não poderiam entrar em choque com a legislação e limitar o exercício de direitos”, ressalta.
Consenso da Saúde – Instância máxima de controle social do SUS, o Conselho Nacional de Saúde emitiu moção de repúdio à resolução CFM 2378/2024. A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrago) e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) também pedem a revogação.
A resolução CFM 2.378/2024 é questionada, ainda, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 989), que demanda providências para assegurar o direito ao aborto nas hipóteses em caso de estupro e risco de vida para a mãe, como prevê a legislação desde 1940, e no caso de gestação de fetos anencéfalos.
Desde a pandemia, há expressivo movimento contra o distanciamento da ciência e da ética por parte do CFM. Indignados, médicos lançaram nesta segunda, 29, Manifesto Muda CFM.
Reportagem: Clara Fagundes/Cebes