Medicina Social e Saúde Coletiva: Nelson Ibañez entrevista Hésio Cordeiro
Fotos: ENSP/Fiocruz
No dia 23 de julho de 2010, duas das principais referências da Saúde Coletiva brasileira reuniram-se no Rio do Janeiro para uma histórica conversa. Naquele dia, o médico e professor Nelson Ibañez encontrou o seu amigo, parceiro e também médico Hésio Cordeiro com o intuito de entrevistá-lo. Mais de dois anos depois, a entrevista foi publicada nos Cadernos de História da Ciência, do Instituto Butantan. Com o intuito de resgatar este importante bate-papo, o Cebes replica abaixo o importante bate-papo.
Mineiro de Juiz de Fora, Hésio de Alburque Cordeiro graduou-se em Ciências Médicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 1965. Treze anos depois, tornou-se mestre em Saúde Coletiva na mesma instituição e, 1981, concluiu o doutorado em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP). Na tese, fez a crítica das Empresas Médicas e analisou a relação destas com as transformações das prática médicas no capitalism brasileiro. Foi também presidente do INAMPS/MPAS no período 1985 a 1988 e Reitor da UERJ entre 1992 a 1995. Entre 1966 e 1967, presidiu o Conselho Nacional de Educação e permanceu conselheiro até 1968. De 2002 a 2006, foi diretor do curso de Medicina da Universidade Estácio de Sá. Atualmente é coordenador do Mestrado Profissional desta Universidade, professor visitante do Instituto de Medicina Social da UERJ e consultor na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Gestão em Saúde Coletiva. Em 2007, foi nomeado diretor da Agência Nacional de Saúde (ANS) onde permaneceu até outubro de 2010.
Na conversa com o professor Ibañez, Hésio Cordeiro falou sobre sua vida estudantil na UERJ, da militância política no período da ditadura e dos seus vínculos com o “partidão” (PCB), da vida acadêmica e profissional, marcada pela passagem na presidência do Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social (INAMPS/MPAS) e, mais recentemente na ANS. Em um dos pontos marcantes da entrevista, Hésio lembra a articulação política para cria o SUS e destaca os importantes papéis assumidos pelo Cebes e pela Abrasco neste processo. Veja a seguir.
Nelson Ibañez – Hésio você poderia fazer uma síntese da sua experiência de vida e profissional até aqui? Primeiro a sua trajetória, família, a influências que o levaram para a Medicina e depois para a Saúde Coletiva.
Hésio Cordeiro – Bom, eu nasci em Juiz de Fora (MG). Meu pai era militar e veterinário, mas decidiu estudar Medicina, o que na época era proibido (acumular medicina e veterinária). Então ele fez de uma forma subterrânea – começou Me- dicina na Faculdade de Ciências Médicas, que era particular, e hoje é da UERJ, mas manteve o trabalho na Veterinária. Ele era clínico geral, trabalhava num con- sultório de subúrbio, no bairro do Méier. Aí eu vim acompanhando a trajetória dele. Quando eu fiz o Científico, no Colégio Militar (RJ), as pessoas sempre me identificavam como sendo o “Dr Jivago”, porque eu tinha um interesse grande pela História Natural e pela Medicina. Já estava definido que eu faria Medicina e eu passei no primeiro vestibular que eu fiz para a Faculdade de Ciências Médicas.
Em que ano você entrou em Medicina?
Em 1960 foi o meu primeiro ano na Faculdade de Medicina. Em 1959 foi quando eu saí do Colégio Militar. Eu sempre me interessei pela Clínica Médica e pela prática ambulatorial no Hospital Universitário, no Hospital Pedro Ernesto. Embora também me dedicasse a doenças do colágeno e doenças autoimunes, porque o professor titular na época tinha uma enorme influência sobre todos nós, era o Piquet Carneiro3. Piquet Carneiro era um médico com uma visão muito humanista da Medicina e sempre estimulando a abordagem da saúde não apenas como fenômeno biológico, mas como fenômeno social, econômico. Na época, o Piquet Carneiro iniciou um programa de saúde comunitária (não tinha esse nome), mas que era baseado na visita a pacientes hospitalizados da enfermaria do Pedro Ernesto. Ele estimulava que realizássemos visitas domiciliares, para ver como estava a relação social, a organização familiar daquele paciente. Isso foi muito interessante porque, tanto pelo lado da Epidemiologia – dado que os pacientes que o Piquet via e que o Serviço atendia, eram fundamentalmente pacientes com doenças imunológicas – quanto da Genética e da relação familiar dessas doen- ças. Então a gente organizava as visitas domiciliares para saber as condições de vida concretas daquelas famílias e as repercussões que a enfermidade trazia para a vida da família e da pessoa. Eu me lembro que, com muitos pacientes de febre reumática, a gente ia fazer o inquérito domiciliar e fazia o “SWAB” dos irmãos do paciente para detectar o que era portador, que, eventualmente estava perpe- tuando um foco de infecção estafilocóxia na família. O Piquet Carneiro sempre chamou muito a atenção para esse componente social, junto com o componente médico-biológico da Medicina. Além disso, ele tinha uma visão muito ampla e estabeleceu uma reforma curricular onde havia um curso de Conhecimentos Ge- rais no primeiro ano de Medicina. Isso eu não vivenciei como aluno, mas como residente do Serviço. Ele também estimulava que os residentes fizessem, desde o início do curso, alguma atividade docente. Então eu, como residente, já tinha tido experiência com Semiologia, trabalhando com alunos do 3o ano de Medicina. O pessoal vem fazer a Propedêutica no Serviço e eu, como aluno do 6o ano ou iniciando a Residência, isso estimulou muito tanto essa questão do ensino mé- dico, como da abordagem familiar e da abordagem social e da vinculação com os conhecimentos gerais, que seria uma abertura mais humanista da Medicina e da Saúde. O Piquet Carneiro orientou o Moysés Szklo – que era uma pessoa de muito boa formação clínica, mas estava fazendo o terceiro ano de Residência – a fazer uma visita de observação em Ribeirão Preto com pessoal da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – o (Romero) Teruel e o Pedreira de Freitas, que era pesquisador de Doenças de Chagas e tinha estabelecido também todo um traba- lho comunitário na região. O Moysés foi à região e depois nós organizamos – eu e mais outros residentes – alguns meses de estágio de Residência Médica, para estabelecer um certo intercâmbio com o Departamento de Medicina Preventiva de Ribeirão Preto. Foi aí que começou a minha formação, o meu interesse, a for- mação mais orientada para a Saúde Coletiva, como, mais adiante, a gente viria a denominar. Foi muito marcante a experiência de Ribeirão Preto. Alguns anos depois, em 1968, com o cerco da Polícia Militar ao Hospital Pedro Ernesto, houve um acidente brutal, onde um aluno foi assassinado pela polícia, tomou um tiro na cabeça. Ele não estava fazendo absolutamente nada, estava na porta do hospital, quando alguém atirou em direção ao Centro Cirúrgico, com risco fazer explodir até os balões de oxigênio. Foi uma coisa brutal e esse rapaz, Luiz Paulo, estava no 1o ano de Medicina. E era o primeiro ano que eu ensinava. Ele era um bom aluno, uma pessoa muito dedicada e também tricolor como eu – a gente frequentemente ia aos jogos do Maracanã. Essa morte do Luiz Paulo impactou muito a minha formação e impactou o Piquet Carneiro, porque a polícia continuou cercando o hospital e dizendo que os estudantes estavam armados. O Piquet rebatia dizendo: “Eu quero que vocês provem onde é que estão as armas! Podem entrar aqui e re- vistar que não vão encontrar arma nenhuma. Arma aqui só tem as da polícia que estão fazendo essas arbitrariedades”. O próprio Piquet Carneiro foi arrolado num Inquérito Policial Militar e teve que depor durante várias sessões. O Piquet era um católico progressista – um católico liberal, conservador, mas progressista dentro dessa visão – e os militares, consideravam, que ele era o grande inspirador do Mo- vimento Comunista na Faculdade de Ciências Médicas. Eu próprio fui convocado para um depoimento na Aeronáutica, que era um dos setores mais violentos aqui do Rio, ali no Galeão; e eles queriam saber quem é que tinha estimulado o Dire- tório Acadêmico e se o Diretório tinha armas ou não. Eu disse: não tem arma, não tem nada, o presidente do Diretório é um rapaz correto, que tem um ideal social. Esse rapaz tinha sido vinculado à Polícia da Aeronáutica e quando teve um assalto ao Hospital da Aeronáutica, imputaram a ele, ao (João Lopes) Salgado, a elabo- ração mental, tática e estratégica (rindo) do assalto ao Hospital da Aeronáutica, o que não aconteceu. Esse rapaz, depois, foi perseguidíssimo, foi cassado, foi para o exterior – ele quis sair do país. Interrompeu o curso de Medicina e se tornou en- fermeiro. E hoje é um enfermeiro que tem uma larga experiência em Hemodiálise.
E ainda está no Pedro Ernesto?
Não, ele foi para a área privada, se tornou sócio de uma das grandes empre- sas de Hemodiálise do Rio de Janeiro.
Você teve alguma atividade política durante a formação? Diretoria de Centro Acadêmico?
Tive. Eu fui diretor cultural do Centro Acadêmico e depois me elegeram presidente do Centro Acadêmico4. Fui clandestinamente vinculado ao Partidão (Partido Comunista Brasileiro). E nos idos de 1964, a gente teve alguma ação nas manifestações de rua contra o Golpe Militar.
Quer dizer que você já tinha uma inserção política na esquerda?
Fundamentalmente era a “base” da Ciência Médica do PCB. Na época eram cerca de 30 militantes, era considerada a base maior do Rio de Janeiro, (rindo) e numa Faculdade de Medicina!
Alguns foram para a luta armada.
Das vezes em que essa questão de Contra a Ditadura vinha à tona nas As- sembleias Gerais no Hospital de Clínicas, eu sempre me manifestava contra a questão da guerra de guerrilhas, contra a luta armada. Eu era mais da linha Par- tidão mesmo (risada). Até muitas vezes entrando em choque com alguns líderes estudantis. Eu já tinha feito a Residência Médica e estava no meu primeiro ano como Docente, enquanto Auxiliar de Ensino. Interessante que os estudantes que estavam mais radicais se opunham ao Piquet Carneiro, porque achavam que ele era frouxo demais em relação às reformas curriculares – chamavam alguns as- sistentes do Piquet Carneiro, de “pelegos subjetivos”. Eram “pelegos subjetivos” porque não era por dinheiro, era por prestígio, por ideologia. “Pelegos subjeti- vos!” (risada) Isso era das coisas mais comuns à minha formação, à minha história política e até acadêmica e universitária. Depois eles revisaram isso, reviram essa questão toda; mas isso marcou muito.
Você fez a Residência e se encaminhou para Auxiliar. Você teve alguma prática liberal? Consultório?
Tive. Logo no início, depois da Residência, eu fui contratado pelo Hospital de Clínicas, como médico da Clínica Médica. E meu pai tinha um consultório no Méier; quando ele não podia ir, eu cobria e fazia alguma prática privada no con- sultório dele. Mas era muito esporádico, muito errático, não uma prática contínua. Outra coisa era com o Piquet, com os assistentes do Piquet, foi que eles chama- vam para cuidar de alguns pacientes graves internados em algum hospital privado.
Você fazia parte dessa equipe e fazia evolução…
É. Eu ia dar plantões, acompanhando pacientes graves. Na época, não era a Hemodiálise, que estava iniciando, era Diálise Peritoneal, que era mais com- plicada ainda. Fazia aqueles banhos todos com a Diálise Peritoneal, retornando, revisando os banhos que eram na cavidade peritoneal. A gente passava a noite acordado fazendo esse cuidado com os pacientes, para não dar complicações nos banhos. Então, eu tive uma prática privada errática no consultório de meu pai, um acompanhamento de pacientes graves dos assistentes do Piquet Carneiro e uma prática ambulatorial no Hospital Universitário, lá no Pedro Ernesto. Foram essas três frentes de trabalho.
Isso em 1969, 1970?
É início de 1970… E 1968 também, foi um período complicado, com essa invasão da universidade e a morte do rapaz. Em 1968 para 1969, Piquet Carneiro visitou os Estados Unidos e esteve em Kentucky, junto com o Aloísio de Paula, que era professor titular de tuberculose, de Tisiologia. O Aloísio de Paula também era muito conhecido aqui no Rio de Janeiro. Além de bom médico, ele era ligado às artes – ele foi um dos fundadores do Museu de Arte Moderna. O Aloísio de Paula e o Piquet foram aos Estados Unidos e visitaram Universidade de Kentucky, que es- tava iniciando um Programa de Ciências da Conduta Humana, Ciências do Com- portamento Humano, dentro do Departamento de Medicina Preventiva. Era um programa de Medicina Preventiva e, anexado ao departamento, a área de Ciências da Conduta que, para os Estados Unidos, era uma experiência pioneira. Isso era na Faculdade de Medicina, mas também na Odontologia, para onde eles estavam estendendo essa abordagem behaviorista, comportamentalista. O Aloísio de Paula ficou muito estimulado com essa experiência e propôs ao Piquet que conseguisse uma bolsa da CAPES para que eu fizesse um ano em Kentucky. Moysés Szklo esta- va fazendo Saúde Pública na Johns Hopkins University e eu em Kentucky.
Fazendo um parêntese. A área de Medicina Preventiva ou Medicina Social, já havia na UERJ ou não?
Não, era a antiga cadeira de Higiene. O Instituto de Higiene era dirigido pelo Dr Bandeira de Melo. Os alunos detestavam o curso: só água, esgoto e tal, mas dado de uma forma muito tradicional. Era um dos cursos mais detestados do curso de Medicina, dado no quinto ano, ao final da tarde. Tinha um pouquinho de Medicina do Trabalho também e que era colocado como uma tintura quase, de conhecimentos gerais, essa Medicina do Trabalho.
E você foi para Kentucky.
Aí fui para Kentucky e fiquei um ano. Tive uma bolsa da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) e da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes- soal de Nível Superior): uma bolsa de visitas a departamentos de Medicina Pre- ventiva, para verificar questões ligadas à situação com a Educação Médica. Isso, na época, estava sendo liderado na OPAS pelo Juan César Garcia, em relação às Ciências Sociais aplicadas à Medicina. E o José Roberto Ferreira era a pessoa de Recursos Humanos, o chefe do Setor. Então eu fiz uma viagem a Minnesota, ao Canadá, a Toronto, a várias outras universidades americanas, especialmente. Em Saint Louis estavam desenvolvendo alguma experiência de educação mé- dica, até em termos de superar um pouco a compartimentalização do ensino médico. A questão da educação baseada em programas estava começando nos Estados Unidos e, também em Toronto. Michigan também e algumas universida- des que eu nem me lembro direito. Então houve uma coisa conjunta de Ciências de Comportamento e Medicina Preventiva e a Educação Médica – experiências inovadoras em educação médica e o ensino, baseado em programas. Essas duas coisas caminharam juntas. Quando eu retornei ao Brasil, já tinha sido criado o Instituto de Medicina Social, que foi uma proposta do Piquet Carneiro, levando para dirigir o Instituto o Nelson Morais, que tinha sido diretor do SESP (Serviço Especial de Saúde Pública) do Ministério da Saúde e tinha uma larga experiência em Epidemiologia. Era um autodidata e também um liberal.
Carioca, fundador do SESP. Ele tinha alguns problemas com o Piquet Carnei- ro porque o Nelson era muito favorável ao controle de natalidade. Por isso até, ele trazia aportes financeiros da Fundação Ford, da Fundação Kellogg, algumas instituições internacionais que queriam estimular o controle da natalidade. Mas nunca houve, assim, uma coisa deliberada de… Nem no ensino, nem na ação, no Hospital Universitário. Era uma coisa que havia certo radicalismo em termos de se opor à questão do controle da natalidade, embora ele dissesse que não era “controlista”, mas que era a favor de uma paternidade responsável, uma política de planejamento familiar. O Nelson Morais foi o diretor nesse período e o insti- tuto nunca teve ações vinculadas abertamente ao controle de natalidade. Nesse ponto ele era muito democrático, porque permitia que as pessoas discutissem e se manifestassem a favor ou contra o planejamento familiar.
Só um parêntese. O instituto é criado como um apêndice da Faculdade de Medicina ou não?
O Instituto, ele tem uma inserção diferente do Departamento de Clínica Médica? É. Tinha sido criado um Centro Biomédico. E o Centro Biomédico era cons- tituído pela Faculdade de Medicina com seus Departamentos, pela Faculdade de Enfermagem, pela Nutrição, a Odontologia, e por institutos: o Instituto de Biologia, que atendia às áreas básicas das Ciências Médicas, ministrava as aulas básicas das Ciências Médicas e desenvolvia também atividades de Pós-Graduação de mestra- do em Biologia, e na área profissional e o Instituto de Higiene, transformado em Instituto de Medicina Social. E a Medicina Social tinha por finalidade ministrar cur- sos da Graduação, de Epidemiologia, de Planejamento de Saúde, Administração de Saúde, a tal disciplina de Conhecimentos Gerais, que logo em seguida trans- formamos em Ciência do Comportamento Humano – CCH – a introdução das Ci- ências Sociais, com outro nome, no curso de Medicina. Não é um Departamento.
Uma coisa já com visão de Instituto, com identidade diferente.
E o Instituto foi logo se dedicando muito a capacitar seus professores, for- mar em mestrado e doutorado e implantar um mestrado em Saúde Coletiva. Foi um dos primeiros. Até, na época, tinha-se a visão de contrapor ao curso tradi- cional da Escola de Saúde Pública, era uma alternativa à ENSP também. Um Instituto de Medicina Social que teria que formular, introduzir conteúdos de Ciências Sociais, visando a crítica das políticas de saúde. Daí a inserção muito forte, do ponto de vista acadêmico e político, sob o ponto de vista de buscar alternativas em termos de políticas de saúde.
Que era a tal da Saúde Pública tradicional, né?
É, contra a Saúde Pública tradicional. Aí foi se formando um grupo, com o apoio da PUC do Rio de Janeiro, da parte de Sociologia, trazendo professores para ministrarem aulas e para começar a implantar uma espécie de pré-projeto do curso de Mestrado em Saúde. Não era Medicina Social. Era Saúde Coletiva! Já chamavam de Saúde Coletiva.
Mas o instituto se chama Instituto de Medicina Social, né?
É, mas o mestrado era Saúde Coletiva. Foi quando nós trouxemos a Madel Luz, como socióloga; tinha uma pessoa que trabalhava com Filosofia da Ciên- cia, que nós introduzimos também no próprio mestrado; o (José Luiz) Fiori veio como economista e cientista político. Ele tinha vindo do Chile. Tinha saído do Rio Grande do Sul para o Chile na época mais pesada. Passou um tempo no Chile, trabalhou com Maria da Conceição Tavares e retornou ao Brasil. E aí, sem vinculação acadêmica nenhuma, nós chamamos para fazer parte do corpo da Medicina Social. Não havia concurso nessa época; então havia, foi um (finan- ciamento?) da Fundação Kellogg de US$ 50 mil, que foi side money, o recurso inicial que permitiu formar esse grupo.
Trazer essas lideranças e formar um grupo constante nessa área.
É interessante como a Fundação Kellogg, que teria sido vista como contro- lista, propiciou a criação de um grupo de Medicina Social e do mestrado em Saúde Coletiva. E, lógico, uma coisa que foi muito interessante, foi a presença do Juan César Garcia. Porque, junto com o dinheiro da Kellogg, tinha o apoio técnico da OPAS, vinha Recursos Humanos e esse grupo de Ciências Sociais. O Garcia tinha feito um seminário em Campinas, do qual o Arouca e a Ana Bahia participaram. Foi a primeira vez que eu tive contato com ele. Depois ele veio ao Rio e nós discutimos a proposta do Mestrado. O Garcia deu apoio total, teve até um apoio financeiro da OPAS, em termos de bolsas de estudo e o compromisso de aceitar no curso bolsistas internacionais, da América Central – que ele estava investindo muito em formação de pessoal – e que nós aceitaríamos já no primeiro ano do curso, ainda que o curso não estivesse nem reconhecimento pela CAPES. Mas com esse apoio, recebi uns três ou quatro alunos da América Latina: um salvadorenho, um nicaragüense, e um da Guatemala.
Vocês da Clínica Médica formando um time, trazendo essas novas linhas, em função dessas visitas ao exterior. E a área do Moysés? Ele volta a se fixar aqui?
Aí é que complicou. Porque o Moysés fez o curso de Saúde Pública como mestre e depois o (Abraham) Lilienfeld e o pessoal da Hopkins, entusiasmados com capacidade dele, convidaram-no para fazer o doutorado. Ele prorrogou a bolsa, que também era da OPAS, para fazer o doutorado. E quando veio ao Bra- sil, num interregno daqueles, ele já estava casado e o filhinho dele, Luiz Ernesto, chegou no Rio de Janeiro. O Moysés levou o menino ao Nelson Morais que tinha uma clínica de imunização, já que no Rio tinha uma epidemia de meningite. E o Nelson Morais disse assim; “ah, essa vacina está ainda testando, não se conhece bem a eficácia da vacina”. Resultado: não deu a vacina e o Luiz Ernesto teve uma meningite meningocócica fulminante e morreu em 24 horas. Aí o Moysés ficou desesperado, ele e a mulher voltaram para a Hopkins onde foi contratado como professor e não voltou mais ao Brasil. Voltou recentemente, foi aprovado num concurso da Federal do Rio de Janeiro com sessenta e poucos anos. Mas agora, já completando 70, ele cai na compulsória. Ele está entre a Johns Hopkins e o Rio de Janeiro – consultor da UFRJ e ainda vinculado à Hopkins.
O Instituto traz a inovação das áreas humanas, sociais e economia e constitui esse grupo. A Epidemiologia ainda fica um pouco com a Clínica? Não tem um grupo de Epidemiologia, dado que o Moysés foi, não voltou…
É… Apesar disso, a Epidemiologia… O Nelson… É epidemiólogo de forma- ção e é administrador. Mas a Epidemiologia se ressentiu muito do não retorno do Moysés. O Nelson dava cursos básicos de Epidemiologia no Instituto.
O seu mestrado foi feito no Instituto?
Eu fiz no Instituto. Isso tudo acabou resultando num certo afastamento nosso da Clínica Médica. Nessa altura do campeonato eu já não estava fazendo mais clínica e, com isso, nos distanciando um pouco da própria Faculdade de Medici- na. O João Regazzi que é oriundo da formação clínica, mas também vinculado à Medicina Social, fez uma proposta de um internato rural, baseado na experiência de Minas Gerais, da UFMG. Daí, propusemos desenvolver um Internato Rural no Rio de Janeiro, partindo, principalmente, de Resende (RJ). O prefeito de Resende na época deu um apoio muito intenso ao internato. Os alunos do 6o ano médico tinham um período eletivo, em que eles poderiam ir trabalhar em Resende em Atenção Primária à Saúde e desenvolver trabalhos com a comunidade e participa- ção social, educação em saúde. Isso trouxe frutos interessantes; foi se aprofundan- do esse projeto do Internato Rural e, mais tarde, quando eu fui Reitor da UERJ e o Regazzi era um dos mentores da Faculdade de Ciências Médicas, nós propusemos uma reforma curricular, de tal forma que se implantassem os conteúdos de Saúde da Família, dentro do currículo das Ciências Médicas, mas os outros médicos do curso não aceitaram. Aí tivemos outra proposta, de ter um segundo Curso Médi- co, ainda vinculado à Universidade, em Resende, que não teria laboratórios das cadeiras básicas, teria, fundamentalmente Atenção Primária à Saúde e os alunos numa extensão dentro do sistema de saúde local. Chegamos até a anunciar isso, o prefeito anunciou essa proposta do curso. E, outra vez, a Congregação das Ci- ências Médicas negou, porque temia repartir recursos entre os dois cursos de Me- dicina. Então, com isso, ficou para as calendas a proposta de Médico de Família. E a Faculdade também se negou a apoiar. Dessa história toda, ainda da Medicina Social, dois professores propuseram um documento com umas coisas iniciais da Reforma Sanitária. Foi o documento que o José Luiz Fiori, o Reinaldo Guimarães e eu escrevemos sobre a questão da saúde na democracia: “Gestão Democrática da Saúde”, artigo que foi publicado na revista do CEBES e apresentado, pelo CEBES – no caso foi o próprio Arouca que apresentou – naquele primeiro Congresso de Política de Saúde, realizado pela Câmara dos Deputados. Era a primeira vez em se estava elaborando o conceito de Sistema Único de Saúde.
Você, nesse ínterim, faz o doutorado? Qual é o seu doutorado?
Não, o doutorado, eu fui para São Paulo com a Cecília Donângelo e lá fiz As Empresas Médicas, baseado numa pesquisa que ia ser desenvolvida pelo Fiori e por mim, apoiada pela FINEP (Agência Brasileira de Inovação), que apoiava o Instituto e a ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública), com o projeto do Arouca. E o nosso projeto era da incorporação das Ciências Sociais. A nossa proposta, nosso projeto, foi sobre as Empresas Médicas. Parte dessa experiência e o relatório já pronto da pesquisa sobre Empresas Médicas, eu levei à Cecília Donângelo e a Cecília disse: “Hésio, você deve transformar isso numa tese e a sua tese já está pronta.” Aí eu cumpri alguns créditos em São Paulo e alguns créditos que ela e o Guilherme Rodrigues da Silva deram na ENSP. “Faça al- guns créditos em São Paulo e alguns créditos na ENSP e a gente valida a sua experiência e você já está com a sua tese pronta”. Foi isso: em 1983 eu estava já fazendo o doutorado; tinha feito o mestrado em 1971, 1972 e em 1973. Me inscrevi no doutorado e um ano depois defendi a tese.
Nesse momento em que você está discutindo já a questão democrática e o CEBES, já há uma vinculação da questão da Previdência. Como é que o Instituto, ou a sua atividade acadêmica, chega aos serviços com essa discussão; e, você vai entrar na área de serviço como dirigente, como administrador, como gestor e formulador?
Bom, a figura mais importante foi o Carlos Gentile de Mello com as críticas que ele fazia às unidades de serviço, com o fato da corrupção, e a privatização dos serviços de saúde. A gente teve que convidar o Gentile para fazer parte de al- guns seminários, de algumas atividades do Curso de Mestrado. A partir daí o tema da crítica à privatização foi se tornando central dentro do objeto do próprio curso de Mestrado e dentro dessa idéia – desse documento que foi escrito pelo Fiori, pelo Reinaldo e por mim. E a partir daí, mais a questão do doutorado em São Paulo sobre as Empresas Médicas, ficou bem configurado um objeto de trabalho da Medicina Social: a crítica às empresas médicas e ao modelo privatista. Com isso tudo, no momento em que vem a Nova República, o Waldir Pires foi con- vidado para Ministro da Previdência. Há um movimento no grupo do PMDB do Rio de Janeiro, e no PMDB em São Paulo, com o Guilherme Rodrigues da Silva, eu, o Fiori, o Reinaldo no PMDB do Rio de Janeiro, para indicar um presidente do INAMPS ao Waldir Pires. Aí houve uma coisa desastrosa, que foi aquele acidente do Tancredo Neves e o Tancredo ficou internado nos Hospital das Clínicas. E o Guilherme Rodrigues da Silva era, na época, o diretor Superintendente do HC. Então ele mandou dizer “Hésio, eu, com essa situação de Superintendente, é an- tiético eu pleitear…” Aquela coisa do Guilherme… “Eu vou usar o meu cargo para ficar próximo ao Presidente e ser indicado para presidente do INAMPS? Então, você tem que assumir”. Aí eu fui a São Paulo, o (José da Silva) Guedes e o (Edmur Flávio) Pastorello fizeram lá uma reunião como Grupo de Saúde do PMDB. Na época, antes do Guilherme mencionar isso, eles tinham me indicado para diretor da CEME (Central de Medicamentos), então eu estava indo para a questão dos medicamentos – a tese do mestrado tinha sido medicamentos e eu tinha partici- pado muito do trabalho com a CEME. Em São Paulo, da reunião com o Grupo de Saúde do PMDB de São Paulo, o Guedes, o Pastorello e uma série de pessoas, a CEME era o meu objetivo e o Guilherme iria para o INAMPS. Com doença do Tancredo mudou tudo. E o Gilvan Chaves, eu acho, já havia sido indicado, en- tão eles disseram “não Hésio, você vai para o INAMPS”. Aí houve um consenso no sentido da minha indicação para o INAMPS e aí o Luiz Humberto, que era deputado federal pela Bahia, também já vinha articulando como Movimento Sa- nitário e tal, então levou meu nome ao Waldir Pires. Eu nem conhecia o Waldir Pires, era muito distante. Aí o Waldir recebeu meu currículo, levou ao Sarney e o Sarney nada de nomear. Não era só eu não. Não nomeava o do INPS, que era o pai do líder o PSDB… Arthur Virgílio! O Arthur Virgílio Filho (pai do atual Arthur Virgílio, que é Neto), é que foi nomeado para o INPS. E o Paulo Baccarini para o IAPAS (Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social). O Paulo Baccarini e o Arthur Virgílio tinham sido cassados em 1964 e o Waldir levou a indicação deles e a minha – que não tinha sido cassado em nada ainda – mas o Sarney não nomeava. Ficaram três meses as indicações lá e então o Waldir Pires, um belo dia, pressionou: “Ou o senhor nomeia estas três indicações do PMDB para a Previdência, ou eu é que me demito agora!” Aí o Sarney acabou nomeando, em 20 de maio de 1985.
A Previdência também tinha uma estrutura mais orgânica, com o Murilo, o …
É com a presença do Murilo Villela Bastos…
Tinha uma estrutura da burocracia, que não era ligada à universidade…
É, mas que era de muita competência…
E como foi a experiência de dirigir um dos maiores orçamentos do…
Eu com 40 anos de idade, presidindo o INAMPS… Aí foi quando eu passei a conviver com o Temporão – que eu já conhecia – como Secretário do Planejamen- to, por indicação do Arouca. O Temporão foi indicação do Arouca. O Henri Jouval para a Medicina Social, que tinha experiência da máquina, porque ele tinha par- ticipado das Ações Integradas de Saúde lá na administração do INAMPS. Como é que o Jouval foi para lá? Por que ele foi para lá? Foi com o presidente do INAMPS, prévio, que foi o Aloísio Salles. O Aloísio conhecia muito o pai do Jouval e acabou levando-o para lá. E foi decisão do próprio Waldir Pires, que já conhecia o Jouval também. Então era Secretário de Medicina Social, o Jouval; Secretário de Plane- jamento, o Temporão; e o Secretário de Administração que era uma pessoa ligada ao que seria hoje o DEM – o representante do PFL era um gordão, enorme, que eu não lembro o nome. O que era central ali era a pessoa de Recursos Humanos, a Elisa (de Souza Almeida), que é uma pessoa excelente, com muita experiência na Previdência Social e que foi mantida. A própria pessoa do PFL não teve condi- ção de retirá-la. E com isso, a dificuldade toda era que as empresas médicas e os hospitais privados se opunham à minha nomeação; tinham ido até ao Gabinete Militar do Sarney para bloquear a minha nomeação e isso tinha atrasado muito…
E você pensava que eram os dois ex-cassados!
É… E aí a FBH (Federação Brasileira de Hospitais) foi violentamente contrá- ria. E São Paulo, que era a concentração maior das empresas médicas também se opunha violentamente e, frequentemente, faziam movimentos de paralisação, de lockout em relação a medidas banais, de simples racionalização da adminis- tração pública como, por exemplo, informatizar as Unidades de Atendimento. Colocar um computador na porta de cada Unidade, para eles era inaceitável, porque isso significaria que eles não podiam fazer como eles faziam: listas de uma determinada rua e lançar como pacientes atendidos na Unidade e faturar em cima disso. Então, aí, fizeram uma paralisação – isso foi já no segundo ano de governo, já foi em 1986 – e lógico que eles também se valiam de uma coisa mais radical – que o nosso amigo, que tinha sido Superintendente em São Paulo, o Herval Pina Ribeiro, que era o Secretário de Medicina Social, por indicação do Waldir Pires que também era baiano. O Herval, frequentemente, radicaliza- va com os hospitais privados. Eu dizia: Herval, vamos tentar apaziguar isso aí. Aí concedia lá o reajuste, o Waldir Pires concordava em fazer o reajuste, mas apertava na finalização e no controle e avaliação. O Herval, às vezes, fazia umas coisas mais radicais ainda. Nessa época, decidiram fazer um lockout e paralisar o atendimento em São Paulo. O Herval ligou para ele e nós fomos fazer uma reunião com os empresários todos. Aí combinamos, num sábado à tarde, uma reunião na Superintendência de Saúde em São Paulo. Na ida para lá me ocorreu que, precisávamos ter algum aliado de peso do outro lado, que foi o Antonio Ermírio de Moraes. Eu telefonei para ele: Dr Antonio, estou precisando da sua ajuda; se o senhor vier aqui, nós temos uma reunião com os empresários da saú- de de São Paulo, que paralisaram o atendimento, sem sentido, só porque a gente vai melhorar o controle do faturamento, vai acelerar o processamento para pagar com maior rapidez e o pessoal está contra, os empresários estão contra. Vai ser às tantas horas, na Superintendência de Saúde em São Paulo. Aí o Antonio Ermírio foi. Quando eu cheguei a São Paulo já estava ele lá, posto na salinha da Supe- rintendência, com anotações que ele tinha feito dos valores pagos pelo INAMPS.
Ele estava no Conselho da Beneficência, né?
É, da Beneficência Portuguesa. Aí ele, como o maior empresário do país na época – acho que ele ainda é – me apresentou aqueles dados com a letrinha dele e disse: “olhe, eu sugiro que os senhores retomem o atendimento e vão para casa, porque não tem sentido essa paralisação. O doutor Hésio e o ministro Waldir Pires estão fazendo o que podem, tendo reajustado os valores e tal; e, ser contra a informatização é jogar contra a tendência natural da modernização. Vão para casa, retomem o atendimento e tudo bem”. Aí não teve um que se opusesse ao Antonio Ermírio de Moraes.
Engraçado que ele depois vira um certo aliado do SUS, da maneira como ele está vendo a coisa do Sistema Único. Quer dizer que a oposição era forte! E era aquela questão da corrupção mesmo. Essa entrada de uma ala, com certa articu- lação, mais séria em relação à saúde, já com as críticas ao modelo, como é que isso vai caminhar para a Reforma Sanitária? Quer dizer, a academia assumir os órgãos de gestão no sentido de trazer mais próxima essa realidade da adminis- tração pública, da gestão do sistema…
Aí, eu acho que foi por ação do CEBES e também da ABRASCO (Associa- ção Brasileira de Saúde Coletiva) que estava recém-fundada. E a experiência das oposições ganhando os governos estaduais e municipais: Campinas, Londrina e Niterói, dando mais ênfase à Atenção Primária à Saúde. Então, a partir dessas três experiências municipais: Londrina, Niterói e Campinas, foi se formando, junto com os Departamentos de Medicina Preventiva e Social, um movimento de crí- tica ao sistema de saúde e amadurecendo alguns postulados para a constituição da proposta da Reforma Sanitária. Acho que tem uma participação dos partidos de oposição, do PMDB, dessas prefeituras vitoriosas e da ação das Medicinas Preventivas e Sociais desenvolvendo os conteúdos novos.
Mas incorporando a Assistência Médica, né? As AIS (Ações Integradas de Saúde) e o SUDS (XXXX) são dentro da sua gestão?
Exatamente. As AIS foram antes. A questão das denúncias em relação às frau- des, das internações não pagas, ou pagamento de pacientes inexistentes, ou de procedimentos inadequados, tipo cirurgias de cesárea em homens, ou amigdalec- tomia em dois tempos, que eram as críticas tradicionais que o Gentile já vinha fa- zendo. Aí houve uma paralisação na Previdência Social, especialmente no Hospi- tal dos Servidores do Estado, que era um hospital, assim, de ponta da Previdência Social. E o Aloísio Salles como presidente do INAMPS, nomeado pelo Figueiredo, ele nomeou o Aloísio Salles para a presidência do INAMPS e o Aloísio, para fazer uma proposta mais inteligente para a crise da Previdência Social, propôs as Ações Integradas de Saúde (AIS). A racionalização do atendimento começou no Paraná e também testou, pela primeira vez, as AIS dentro do formato que nascia para con- trabalançar e combater a corrupção na assistência médica nas unidades baseadas em unidades de serviço. As AIS foi testada, foi implantada no Paraná e a DATA- PREV (XXXX) é que escolhia a sistemática toda de informática, para processar as AIS. E junto com isso, a racionalização ambulatorial e a humanização do aten- dimento, nasce a ideia das AIS, em que municípios e estados se associariam na questão tanto do Ministério da Saúde, quanto da Previdência, para desenvolver as políticas de saúde e o atendimento à saúde. Na verdade, quando a gente assumiu, verificou que nas AIS, o Ministério da Saúde, praticamente, não entrava em nada; não se abria o jogo do que era de competência do Ministério da Saúde. E as AIS, no fundo, no fundo, foram movidas com recursos da Previdência Social. O Rapha- el (de Almeida Magalhães), depois de uma greve que paralisou a Previdência um tempão, cobrou de nós: “o que vocês propõem?”. “Vocês” éramos eu e o Noronha (rindo) o presidente e o secretário de Medicina Social – o Jouval já tinha saído, ele tinha ido para o Uruguai como consultor da OPAS. Para o Uruguai, não, para a Argentina ou Chile. Aí a gente propôs duas coisas: uma era a integração – era uma AIS expandida – entregando todos os estabelecimentos hospitalares e ambu- latoriais federais, que se vinculariam aos estados ou às administrações municipais. O que era hospital do INPS, Federal, se transformaria em hospital estadual ou, o que era PAM (Posto de Assistência Médica), cairia na administração municipal; isso foi a base das Ações Integradas de Saúde, foi uma questão de racionalização assistencial, mas num passo mais adiantado do que as Ações Integradas, porque o orçamento seria um só, manejado pela Secretaria Estadual ou Municipal de Saúde e com a supervisão da CIPLAN – era o Saraiva (Felipe) que estava na CIPLAN5, como assessor do Ministério da Previdência. Então o Saraiva foi a figura central disso, da transformação das Ações Integradas que passam para o SUDS. Isso a gente colocava como uma proposta, uma estratégia, uma ponte até que um dia, com a Constituinte, conseguisse modificar o sistema todo, com a criação do SUS. Muita gente via nisso, uma manobra protelatória nossa, do INAMPS, que queria preservar a burocracia do INAMPS. O pessoal da ENSP tinha muito essa visão. A nossa opinião era o contrário. Outros também… O pessoal do Ministério da Saú- de, o Santana, que tinha sido ministro, o marido da Fabíola… Carlos Santana, da Bahia também! E o Carlos Santana tinha certo problema com o Waldir Pires, eles tinham certa competição ali, certo conflito político local. O Carlos Santana queria a transferência imediata do INAMPS para o Ministério da Saúde. E nós dizíamos: “essa transferência virá, um dia…
O que o Ministério não tinha condições de assumir…
É, não tinha condições. Mas depois que o SUDS estivesse implantado, con- solidado; a questão do controle da avaliação se transformasse numa coisa mais manejável para as Secretarias Estaduais e Municipais; aí, sim, valeria a pena uni- ficar, colocar tudo num Sistema de Saúde, sob o comando do Ministério. Não co- meçar por aí! Esse era o ponto de chegada, não de partida. Era uma divergência estratégica fundamental. Mas aí veio a Constituição…
Não é tão simples assim, né?
Lógico. A própria Lei Orgânica de Saúde foi refeita no (governo) Collor. De- pois ele vetou uma série de coisas que envolviam participação comunitária, par- ticipação social e depois voltou atrás e aprovou uma nova proposta, pelo menos introduzindo alguns elementos que estavam presentes nessa idéia da participação e do controle da comunidade.
Hésio, esse momento foi um momento mágico do Movimento Sanitário, em rela- ções políticas, contato com toda a área… O SUS foi aprovado por unanimidade, quer dizer, ninguém falou nada contra. Teve uma preparação na VIII Conferência (Nacional de Saúde). Como é essa transição de Presidente do INAMPS, Reforma Sanitária? O que isso muda na sua trajetória, tanto acadêmica como profissional?
Bom, bem antes da Constituinte há um encontro aí… O outro ministro da Previdência, que já era o Renato Archer, que substitui o Raphael numa crise em que o Raphael não conseguiu explicar bem como é que houve a aquisição de algumas unidades (?) em Brasília; e acabou pedindo demissão. E o Renato Archer, muito ligado ao dr Ulisses (Guimarães), então assume o Ministério da Previdên- cia e mantém todo mundo. O Saraiva, ele mantém no INAMPS; o Aloísio Teixei- ra, que era Secretário Geral. Mas aí, nos vários despachos que eu tinha com o Raphael, ele me disse: “olha, o presidente não consegue entender esse negócio do SUDS do Maranhão; ele quer saber porque você não faz o SUDS, não através da secretaria de saúde, mas, sim, através da Superintendência do INAMPS”. Eu disse: olha, ministro, é exatamente o oposto; a gente está querendo fazer um processo de unificação pelas secretarias estaduais porque o objetivo, a meta é ter o modelo pela saúde, pelo Ministério da Saúde. Então, isso seria uma coisa meio enviesada: provocar a unificação via Previdência Social, que é onde se encon- tram as maiores dificuldades. Tinha havido greves em vários estados do Nordeste, greves contra o SUDS. E o Sarney não aceitava isso. Até que, num belo dia, num despacho, o Sarney cobrou do Renato: que ele tinha um compromisso com o médico de dona Magali, o (José Ribamar) Serrão de nomeá-lo para a presidência do INAMPS. Ele queria que eu me demitisse, para ele nomear o Serrão. Aí eu dis- se: olhe, Renato, o Serrão é uma boa pessoa, mas não entende nada de Sistema Único de Saúde, vai ser um desastre. Porque o senhor não leva três nomes para o presidente escolher? Um deles era o Seigo Suzuki do Incor, de São Paulo, outro era o deputado da banda de música da UDN (União Democrática Nacional) de Minas Gerais, muito amigo do Sarney e tal; e o terceiro era o Geraldo Mello, irmão do Pedro Mello, governador do Rio Grande do Norte e ferrenho aliado do Sarney. Então eu disse: por que o senhor não leva o Pedro Mello, essa pessoa de Minas e o Seigo Suzuki, como nomes aceitáveis, possíveis para nomeação e aí eu peço demissão do INAMPS? Ele não aceitou, quis nomear o Serrão e o Serrão não fez absolutamente nada… Fez lá as coisas dele do Maranhão e eu pedi de- missão do INAMPS. Eu pedi demissão! Não, eu fui demitido do INAMPS. Aí teve uma grande manifestação no Rio, do pessoal. A Maria José, minha mulher, e eu, viemos para o Rio no jatinho do… Que foi secretário municipal de saúde do Rio de Janeiro… É um deputado tucano, muito rico, então tinha os jatinhos dele e aí me trouxe para Rio de Janeiro no jatinho. E eu vim dando uma entrevista para o Boechat (jornalista Ricardo Boechat) que fez um artigo longo mostrando que o Antonio Carlos Magalhães tinha colocado na mídia que eu estava sendo demi- tido por corrupção, que eu tinha desviado recursos, empenhados a totalidade dos recursos do INAMPS até o final do ano e que isso era um absurdo e tal. Aí eu disse: não foi isso o que aconteceu; foram empenhados os recursos, com os convênios SUDS, que seriam feitos ao longo do ano todo e seriam repassados à medida que os Estados assinassem. E aí o Boechat fez essa matéria, que foi publicada nos jornais. E daí eu voltei para a universidade. E a universidade iniciou um trabalho com a Secretaria Estadual de Saúde, de capacitação e treinamento visando aperfeiçoar os mecanismos gerenciais para o SUS. Então eu voltei ao Instituto, com essa tarefa de implantar essa capacitação em 5 ou 6 municípios do Rio de Janeiro, no sentido de capacitar e melhorar o gerenciamento, em relação ao Sistema Único de Saúde.
No IMS ainda?
No IMS ainda. Aí lançam meu nome para reitor, pela segunda vez. Que na primeira vez tinha sido em 1973, 1974, quando seria a primeira vez que se elegeria um reitor. Aí eu tive 80% dos votos, mas a Faculdade de Direito tinha entrado com um processo no Tribunal Superior de Justiça e essa eleição tinha sido proibida e transformada em consulta. Então, o candidato que tirou quarto lugar, com 4% dos votos, acabou sendo nomeado reitor e, um mês depois brigava com o Brizola, o governador. Um mês depois Fayal (de Lyra), era um dentista, até uma pessoa boa e tal – mas rompeu com o Darci Ribeiro porque o Darci tinha propos- to a ele abrir 100 vagas de Professores Titulares, que viriam reforçar o quadro da universidade. E o Fayal negou e disse que o Conselho Universitário não aceitaria uma ingerência dessa ordem de um poder externo à universidade. Aí o Darci nunca mais foi à UERJ, nem o Brizola, e o Fayal acabou fazendo uma gestão meio pífia. Depois, em 1992, no retorno à universidade, me lançam novamente como candidato a reitor. Aí, novamente uma vitória bastante expressiva – 70% dos vo- tos. O Brizola era de novo o governador. Aí eu pedi ao Waldir Pires: dr Waldir, consulta o Governador Brizola se, caso eu ganhar, ele me nomeia, que da outra vez ele não me nomeou e preferiu o Fayal, que era o pai de um deputado estadual do PDT. Aí ele disse que “o Brizola falou para ir em frente que, se você ganhar, será empossado”. Com 70% dos votos, o Brizola fez questão de vir pessoalmente (ele tinha rompido com o Fayal), com os secretários todos, os deputados federais do PDT, para me dar posse na Capela Ecumênica da UERJ. Durante essa posse, o Brizola me perguntou: “dr Hésio, está aí aquele energúmeno que eu nomeei no seu lugar da outra vez?” (riso) Eu disse: não, não está não. Mas ele é até uma boa pessoa, eu sou até amigo dele, mas ele não está presente, não. Aí ele fez a autocrítica do processo todo. Porque nessa época – é uma coisa curiosa também – o Brizola tinha disputado a eleição com o Miro Teixeira, que era do PMDB e eu era atuante no PMBD.
É ele tinha essa coisa partidária também que não é fácil.
E o Brizola não me nomeou porque eu era “lua preta” do Miro Teixeira! E o Miro Teixeira, depois, acabou se filiando ao PDT e está filiado até hoje.
A questão da política no Rio é complicada, né! É uma coisa de partido…
Era o Chaguismo e o Brizolismo que faziam o divisor de águas nesse momento.
Aí você volta para a universidade já com uma visão de Reitoria, de um projeto. Aí é que você vai encontrar um pouco a dificuldade de mudar coisas, por exem-plo nessa área médica, que você citou no começo da entrevista, né?
Aí, na Reitoria, a gente implanta o Pró-Ciência, que é um programa de apoio aos pesquisadores, de apoio aos pesquisadores dedicados à pesquisa; consegue ampliar, mudar o perfil da UERJ. Porque a UERJ sempre foi muito mais vista como um Escolão: dava aulas, dava aulas e não pesquisava. Não tinha currículo de pes- quisa. E aí, dando mais apoio ao Hospital Universitário e essa idéia do Internato Rural, os campi regionais, seria uma espécie de interiorização da universidade, para estar mais presente no Estado do Rio de Janeiro. E faz-se uma política salarial – aí já foi o Cibilis Viana, que foi Secretário de Fazenda do Brizola – que bancou toda a política de reajuste de tal forma que, com a inflação altíssima, não houvesse…
Não houvesse debandada.
Não houvesse corrosão do salário. Então foi implantada uma política salarial que, até hoje, os funcionários da UERJ dizem (rindo): “aquilo sim que foi reitor! Porque teve salários!” Eles não sabem que foi uma articulação política complica- da, até com o Cibilis Viana. Não com o Brizola, que ele não gostava muito dessa conversa aí, de abrir o orçamento, não! Mas o Cibilis Viana bancou. E ele tinha uma vivência de universidade lá do Rio Grande do Sul.
Então foi possível manter o poder aquisitivo do salário dos professores da UERJ e dos funcionários também. E aí, cumprida a minha gestão, um ano depois, eu me aposento da universidade, sem conseguir implantar o Saúde da Família no curso. Aí, saio da universidade, aposentado, e me chamam, o reitor da Estácio – na época o Gilberto Oliveira Castro – me chama para ajudar a organizar a Saúde da Família na Estácio, que funciona até hoje e o mestrado de Saúde da Família. Então a gente implanta a unidade de Saúde da Família, nos moldes que o Ministé- rio preconiza. Já tinha havido uma experiência em Niterói, que era muito focada no médico. E essa, do Ministério da Saúde, que eu ajudei… Abrindo um parên- tese: eu tinha participado, na época do Adib Jatene, como consultor vinculado a Recursos Humanos, para capacitar as equipes de Saúde da Família. Essa ideia da capacitação, dos Polos de Capacitação de Saúde da Família foi gestada na gestão do Adib, e eu participei com a Heloísa Machado. E a partir disso eu tinha ficado um pouco conhecido, como tendo ajudado esse processo de implantação das Unidades de Saúde da Família. E a Estácio optou por realizar uma reforma. O curso de Medicina, que estava começando naquele momento, tendo como um dos eixos centrais essa ideia da Saúde da Família. Aí eu implantei. No ano seguinte, eles me convidaram para diretor da Faculdade, já cuidando também dos hospitais – do Hospital de Bonsucesso, do Hospital da Lagoa – como campos de práticas dos alunos. Em seguida a isso – um período de um ano e pouco – a direção da Estácio propôs que eu me dedicasse a estruturar o Mestrado em Saúde da Família; que seria assim, um carro-chefe da Pós Graduação da Estácio. Eu saí da Faculdade de Medicina, passei para o Sérgio Cabral que vinha trabalhando também na questão clínica – ele é pediatra – estava na área Clínica da Estácio, e fui coordenar o Saúde da Família no Mestrado. E está funcionando. Está no quinto ano e tem 97 mestres formados com suas dissertações defendidas.
Hésio, eu gostaria de mais dois enfoques: queria saber como é a sua visão hoje dos desafios do SUS e essa área de Política e Planejamento e Gestão. Como você vê a reconstrução dessa área dentro do Departamento de Preventiva e da área como um todo. Na sua visão, quais seriam as questões que estariam obstaculizando ou criando desafios, numa perspectiva do Século XXI.
Eu acho que uma coisa é a questão da qualidade do atendimento, da quali- dade e da resolubilidade do sistema, que isso envolve mais investimentos e ter- mos da capacitação de pessoal. Certamente não depende tanto de equipamento e tecnologia, porque isso já está bastante desenvolvido, bastante incorporado. E creio que faz falta também o processo de Educação Continuada que permita que os profissionais de saúde se mantenham atualizados e informados. E também uma ênfase maior na Promoção e na Prevenção. Promoção e Prevenção não dis- sociáveis das questões de tratamento e curativa, mas sim incorporada dentro da integralidade das ações de saúde. Então eu acho que isso ainda é um desafio não superado. Outra questão, agora vendo mais na ótica da Saúde Suplementar, é uma proximidade maior entre o público e o privado, em relação à Saúde Suplementar: como melhorar a qualidade do atendimento e como fazer uma certa aproximação dos recursos que podem, muitas vezes, ser ociosos na área pública e estão faltando na área privada. Persiste um viés ideológico, é um viés de que o público é ine- ficiente e o privado é eficiente. E a minha impressão atual agora, a partir da Saúde Suplementar, é que os dois têm ineficiências. Tanto o público tem ineficiência e até ociosidade de recursos, como o privado. Então, isso não pode ser reduzido a uma coisa tão simplista assim. Qual a outra coisa que você tinha falado?
Da área de Política, Planejamento e Gestão. Quer dizer, você viveu todo esse processo, inclusive de formulação. Como você vê a área e as perspectivas da área?
Eu acho que houve certa expansão desmesurada da abordagem “quantita- tivista” em termos de Epidemiologia, que suplantou a questão das políticas de saúde. E eu acho que o esforço da ABRASCO, inclusive, é no sentido de manter um certo equilíbrio entre a dimensão epidemiológica e essa outra dimensão, a visão administrativa e a crítica das Ciências Sociais, que não pode ser separa- da e abandonada. Porque durante algum tempo só era visto como científico ou pragmático aquilo que era quantificável. Mas também, é preciso expandir essa abordagem com soluções mais criativas de políticas de saúde. A questão, por exemplo – é política e administrativa – das Fundações, que o Temporão propôs e que não passou em nenhum lugar: não passou no meio acadêmico, não passou nos meios administrativos e políticos dos Tribunais de Contas. Eu vejo que é uma questão importante no sentido de dar mais agilidade, mais capacidade de resol- ver problemas na administração pública, essa idéia das Fundações. E, portanto, é preciso associar de uma forma positiva, mas não subordinada, a Epidemiologia, a Administração e o Planejamento e a formação das Políticas de Saúde.
Agora, se você quiser falar mais alguma coisa. Você acabou não falando que você está na ANS…
Não eu só indico essa questão importante e atual da Saúde Suplementar, que eu estou vivenciando hoje. Na ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) é muito curioso, porque eu comecei pela crítica às empresas médicas e só agora eu vim trabalhar com a Saúde Suplementar. Eu não estou nem na diretoria que cuida dos aspectos essenciais ou socioeconômicos das operadoras, mas sim, em termos da qualidade do cuidado e das práticas de saúde que as operadoras e os prestadores de serviço devem oferecer para os usuários. E que grau de partici- pação esses usuários devem ter, no sentido de aprimorar a qualidade. Então eu considero esse o meu desafio: a qualidade da Saúde Suplementar. E outra, que tem a ver com a Saúde Suplementar e o SUS, é como estabelecer uma convi- vência entre o Sistema Único de Saúde e a proposta de um Sistema Nacional de Saúde; um Sistema Brasileiro de Saúde, que possa compatibilizar tanto a Saúde Suplementar quanto a Saúde Pública. Eu acho que esses são os desafios centrais dos próximos 10 anos. E a ABRASCO, certamente vai, através do seu grupo de Políticas de Saúde, contribuir.
Notas
(1) Américo Piquet Carneiro, criador e fundador do primeiro Centro Biomédico e da Universidade Aberta da Terceira Idade da UERJ.
(2) Hésio de Albuquerque Cordeiro foi presidente na gestão 1964/65 do D. A. Sir Alexander Fleming – CASAF – Faculdade de Ciências Médicas.
(3) José Saraiva Felipe. Secretário de Serviços Médicos do MPAS; Coordenador da Secretaria Técnica da Comissão Interministerial de Planejamento (CIPLAN).