O desmonte do SUS em tempos de Bolsonaro
A Rede Social de Justiça e Direitos Humanos lançou hoje na UFRJ, no Rio de Janeiro o seu 20º relatório: “Direitos Humanos no Brasil 2019” para comemorar os 20 anos de atuação da entidade. Com prefácio de Chico Alencar, o documento analisa avanços e retrocessos durante duas décadas em temas como meio ambiente, direito financeiro, questão agrária e indígena, agrotóxicos, dentre outro. Em São Paulo, o relatório foi lançado no início do mês. Segue abaixo o artigo de José Alexandre Buso Weiller publicado no documento. No final, o arquivo está disponível para download.
O desmonte do SUS é um processo de longo prazo, mas que se tornou mais intenso com o governo Bolsonaro. Para além do SUS, o que ocorre no governo em vigência são políticas voltadas à precarização das condições de vida e saúde da população, ou seja, políticas para a morte.
por José Alexandre Buso Weiller, presidente da Associação Paulista de Saúde Pública e membro do Grito dos Excluídos/as Continental.
Desde a aprovação da Emenda Constitucional 95 (EC 95/2016), todo o Sistema Único de Saúde tem sido afetado não mais pelo cenário de subfinanciamento, ou seja, de gastos públicos em saúde, e em especial os gastos federais que ficam muito abaixo dos gastos realizados por outros países que possuem sistemas universais (Canadá, Inglaterra, França, entre outros). Enquanto tais países dedicam aproximadamente 8% do Produto Interno Bruto (PIB) de gastos públicos em saúde, no Brasil esse valor não chega a 4%, segundo dados do Banco Mundial. Outra forma de medir o quão subfinanciado o SUS é, considerando o ano de 2017, contava-se com R$ 3,50 per capita/dia para financiar o acesso dos brasileiros à saúde, sendo que o gasto público (45%) foi menor do que o gasto privado, muito diferente de outros países com sistemas universais em que o gasto público é equivalente, em média, a 70% dos gastos totais com saúde.
Assim, se antes tínhamos um cenário de subfinanciamento, com a aprovação da EC 95/2016 passamos a ter um cenário de desfinanciamento, ou seja, queda nos valores gastos pelo governo federal. No cenário de congelamento do piso de aplicação em saúde, o SUS já perdeu R$ 8,5 bilhões em 2019, como resultado da diferença entre R$ 127 bilhões – 15% da RCL (receita corrente líquida) prevista para 2019 (mínimo obrigatório caso não vigorasse a EC 95) – e o valor orçamentário disponível para 2019, de R$ 118,5 bilhões (dotação da LOA, Lei Orçamentária Anual, subtraindo-se os valores contingenciados). Se a situação prevista para 2019 já é precária, é importante considerar que do total do orçamento para as Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) empenhado em 2018 (R$ 117,5 bilhões), R$ 11,7 bilhões não foram pagos, dos quais apenas R$ 1,0 bilhão foi referente às emendas impositivas e R$ 10,7 bilhões foram de ações programáticas. Assim, o valor para pagamento das ASPS para 2019 também será reduzido para caber parcela desse adicional dos valores empenhados e não pagos em 2018.
Para termos uma noção mais exata do que significa a vigência da EC 95/2016, simulamos, entre 2000 e 2017, o valor aplicado por todos os entes em saúde como se tivessem sido corrigidos somente pela inflação, sem o efeito da vinculação instituído pela EC 29/00. Como resultado, o valor total gasto em saúde em 2017 teria sido de R$ 104,6 bilhões, equivalente a apenas 39% do que foi gasto (R$ 266 bilhões), o que resultaria numa rede do SUS menor em todo o território nacional, com o equivalente a quase
1/3 do que foi investido em 2017, ou seja, o gasto federal de saúde neste período de 2000 a 2017 teria sido 1,2 trilhão menor do que o observado. Como parte deste cenário, obviamente, as forças políticas que garantiram e têm garantido a continuidade de políticas de austeridade têm recebido, indiretamente, apoio do atual governo mediante o silêncio do Ministro da Saúde e dos demais dirigentes do Ministério da Saúde nesses primeiros oito meses de governo Bolsonaro.
Para fazer coro a esta nova ordem política, o atual ministro Henrique Mandetta tem defendido publicamente que o orçamento da saúde é suficiente, falando sobre a necessidade de se otimizar os recursos “melhorando a gestão” do Ministério da Saúde. Ainda, em atividades ligadas ao Setor Privado da Saúde no Brasil, Mandetta tem indicado que não há problema nas instituições que queiram lucrar com a saúde e que a gestão pública tem muito a aprender com as instituições privadas no Brasil. Este
alinhamento de discurso revela o caráter privatista e de austeridade em que todo o quadro de direção do Ministério da Saúde está, vinculando-se, sem questionamentos ou posições de defesa do que deve ser 100% público e universal, o SUS.
Ao analisarmos uma das maiores políticas realizadas pelo Ministério da Saúde nos últimos anos no Brasil – o Programa Mais Médicos – reconhecemos que com o novo governo aquele programa foi substituído pelo Programa Médicos pelo Brasil. De forma controversa, este último vem para reforçar alguns dos principais inimigos no campo da saúde coletiva: hegemonia da categoria médica, introdução de elementos privatizantes na assistência e na gestão, apagamento da participação social, agencialização da administração pública e flexibilização das leis trabalhistas. Sob o discurso de “avanço, desenvolvimento e modernização”, o programa se configura como mais uma medida que visa a transferência de recursos públicos para o setor privado, principalmente através da criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), mercantilizando desde a concepção de saúde, até a CLTização dos contratos e planejamento das ações e serviços. Se valendo do princípio da equidade, a proposta falha mais uma vez, assim como no Mais Médicos, ao pressupor que apenas a garantia salarial, com teto muito acima das demais categorias de profissionais da saúde, é suficiente para fixar médicos em regiões afastadas das grandes metrópoles. Vale ressaltar que, em quatro anos, o pagamento dos médicos contratados via Médicos pelo Brasil representará, aproximadamente, 4% do total do financiamento em saúde.
A Atenção Básica é, sempre foi e deverá sempre ser mais do que a coordenadora do cuidado dentro das redes – um ponto estratégico de luta e resistência por um Sistema de Saúde Público, Universal, Estatal e Multiprofissional –, não podendo ficar nas mãos do mercado e somente da assistência médica. Ao caminharmos para o campo da Política de Saúde Mental em vigência, é importante lembrar que, desde 2001, foi instituída a Reforma Psiquiátrica e os direitos das pessoas com transtorno mental, proporcionando a construção de novos paradigmas para uma política nacional de saúde mental. Ainda, em 2003 garantiu-se os auxílios-reabilitação psicossocial para pacientes/moradores com transtornos mentais egressos de internações psiquiátrica, conhecido como o Programa de Volta para Casa.
Neste cenário foram construídos processos de des-hospitalização, com fechamento gradativo de leitos em hospitais psiquiátricos. Todo o reordenamento do modelo de atenção com a instituição das Redes de Atenção Psicossocial (Raps) nas diversas regiões e municípios do Brasil, com o fortalecimento da rede ambulatorial como alternativa à internação, com a criação de mais de 2 mil Caps; início de quase 500 Residências Terapêuticos (RTs) para ex-moradores de hospitais psiquiátricos; habilitação de mais de 1,1 mil leitos de saúde mental em hospitais gerais; e por fim, cadastro de mais de 4 mil beneficiários no Programa de Volta Para Casa. Se este cenário nos causa orgulho em avançarmos com a política de Saúde Mental para cuidar em liberdade e com qualidade, sentimento inverso surge com as ações que o atual governo tem tomado.
Em uma Nota Técnica (11/2019) do Ministério da Saúde: “Nova saúde mental”, o governo defende a retomada da ampliação de leitos em hospitais psiquiátricos e passa a considerar as comunidades terapêuticas como dispositivos das redes de atenção psicossocial a serem financiadas pelos SUS. Ainda, houve uma transferência da condução da Política Nacional de Álcool de Drogas do Ministério da Saúde para o então ministro Osmar Terra, que tem conduzido a política a partir do proibicionismo, priorizando as internações, em detrimento do cuidado na Raps e dos princípios antimanicomiais. Se considerarmos o cenário já descrito de desfinanciamento, as Raps hoje construídas em todo o território nacional passarão por um processo de sucateamento, impossibilitando a expansão dos seus diversos serviços e ações. Ainda, o processo que se desenvolve tem caminho inverso: privilégios para o financiamento de hospitais psiquiátricos (manicômios) e serviços privados (comunidades terapêuticas). Reconhecemos e denunciamos que o atual governo tem agido na contramão de tudo que foi até então construído na lógica da Reforma Psiquiátrica Brasileira e que tem garantido o cuidado em saúde em liberdade, dignidade e, principalmente, com respeito aos direitos humanos.
Se no campo da Saúde Mental há retrocessos, na Saúde Indígena a situação não é diferente. No primeiro mês do novo mandato, o governo Bolsonaro, representado pelo ministro Mandetta, alegou no Conselho Nacional de Saúde (CNS) que era necessário combater a corrupção do subsistema de saúde indígena, anunciando uma proposta de municipalização das ações de atenção básica à saúde e de saneamento básico em aldeias indígenas. Para quem conhece e já trabalhou na gestão do SUS municipal, é claro que há muito tempo os municípios estão sobrecarregados com gastos em saúde superando em muito o piso do gasto. Ainda, com a fala do ministro, não se reconhece que há especificidades da saúde indígena que levaram à execução desse modelo centralizado no Ministério da Saúde. Porém, o governo federal atribui mais uma função aos municípios em vez de se responsabilizar por uma de suas competências constitucionais.
Neste sentido, uma nova estrutura foi anunciada em vários foros, que extinguia a Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde. Com uma grande mobilização das comunidades indígenas e reações dos outros gestores do SUS, o governo federal teve que voltar atrás. Obviamente, ao considerar a necessidade de redução dos gastos em saúde (EC-95), o Ministério da Saúde está tentando, a qualquer custo, reduzir seu papel na Saúde Indígena, onerando ainda mais os Estados e municípios e tornando inviável a execução das ações pelo ministério, que já estão reduzidas com o congelamento e transformação do Programa Mais Médicos.
Ao considerarmos as políticas já anunciadas pelo governo, que afetam diretamente as condições de vida e saúde da população brasileira, observamos como ponto inicial a proposta de ampliação do porte de armas. Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, uma criança ou adolescente morre por arma de fogo a cada hora no Brasil (levantamento de 1997 a 2016 a partir de dados do Ministério da Saúde). Foram ao todo mais de 145 mil mortes de pessoas com até 19 anos. E o número total de mortes vem crescendo com o tempo: em 2016, foram 9.517, o dobro das registradas em 1997 (4.846 casos). Quando considerados os dados das internações relacionadas às armas de fogo, a maior parte (67%) foi por tentativa de homicídio, sendo que, das mortes, 94% foram por homicídio, embora tenha havido “intenções indeterminadas” (4%), suicídios (2%) e acidentes (1%). Apesar dos números alarmantes, após 2003, com a vigência do Estatuto do Desarmamento, houve desaceleração tanto no total de mortes como no de internações relacionadas a ferimentos por armas de fogo.
Novamente, no sentido inverso das políticas até então realizadas, o governo Bolsonaro decretou, em janeiro de 2019, ampliação do prazo para a renovação do registro de armas passando de cinco para dez anos. Além disso, pessoas que já têm armas legalizadas ficaram com os registros renovados por 10 anos. Ainda, houve a autorização para a compra de até quatro armas de fogo, obedecidos os parâmetros já previstos, considerando que esse número poderá ser maior a depender do número de propriedades, das circunstâncias e da comprovação da “efetiva necessidade”.
Outra preocupante medida tomada pelo governo Bolsonaro foi a composição, por iniciativa do ministro Sérgio Moro, de um grupo de trabalho para avaliar “a conveniência e oportunidade da redução tributária de cigarros fabricados no Brasil”. Considerando a experiência brasileira, reconhecida pela OMS e premiada internacionalmente, demonstra-se que o aumento de preços e impostos é uma medida eficaz para prevenção e redução de consumo de cigarros. Entre 2011 e 2016, foi adotado um aumento progressivo de impostos que resultou em uma queda significativa da prevalência de fumantes, passando de 14,8% em 2011, para 10,1%, em 2017. Assim, com a redução de impostos não se reduzirá o contrabando, mas aumentará o consumo, considerando que são ações policiais fiscalizatórias efetivas que reduzem os contrabandos. O ministro indicou a necessidade de se verificar a redução da tributação dos cigarros fabricados no Brasil e a relação com o consumo de cigarros estrangeiros de baixa qualidade, para que se passe a aceitar a ideia de que existe “cigarro ruim” e “cigarro bom”, que não causa graves prejuízos para a saúde.
Outro aspecto que causa e causará, a médio e longo prazo, grandes efeitos sobre as condições de vida e saúde da população brasileira é a liberação de agrotóxicos. Já no início do governo, através do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), houve a autorização do registro de 121 novos agrotóxicos (média de 1,3 registro por dia), sem que houvesse acompanhamento e controle sobre o impacto dessas substâncias na saúde dos consumidores, trabalhadores rurais e no meio ambiente. Dados da Anvisa indicam que 23,1% dos produtos registrados em 2019 foram classificados como extremamente tóxicos, 18,2% como altamente tóxicos, 44,6% como medianamente tóxicos e 14% como pouco tóxicos. Já a classificação do Ministério do Meio Ambiente verificou que 53,7% dos produtos são muito perigosos ao meio ambiente, 37,2% são perigosos ao meio ambiente e 8,3% são pouco perigosos ao meio ambiente e um produto foi classificado como altamente perigoso ao meio ambiente.
Internacionalmente, o Brasil já é líder mundial em consumo de agrotóxicos, considerando ainda que 1/3 dos ingredientes liberados no Brasil está proibido na União Europeia. Este cenário se torna mais grave quando, em julho de 2019, publica-se uma nova classificação de agrotóxicos adotada pela Anvisa que prevê a existência de quatro categorias segundo o nível de perigo oferecido pelos pesticidas, e agora a sistematização dos produtos passou a ter cinco divisões: extremamente tóxico, altamente tóxico, moderadamente tóxico, pouco tóxico e improvável de causar dano agudo. Com essa nova classificação houve mudança de 800 agrotóxicos, em média, que pertenciam à categoria “extremamente tóxicos”, em um universo de cerca de 2.300 – aproximadamente 34,7% – para uma nova que classifica apenas 43 como “extremamente tóxicos”, o que equivale a 2,2% dos 1.924 produtos analisados.
Interessa-nos, então, reconhecer que as políticas do governo Bolsonaro têm se voltado para os diferentes negócios que podem ser “fechados” com o mercado: planos/serviços privados de saúde, hospitais psiquiátricos, comunidades terapêuticas, indústria das armas e do tabaco, além de todo o setor do agronegócio, de fazendeiros às multinacionais dos agrotóxicos. O que se pode concluir, de fato, é que o desmonte do SUS já é um processo de longo prazo, mas que se tornou mais intenso com o governo Bolsonaro. Para além de analisar o SUS, o que se apresenta pelo governo são políticas voltadas à precarização das condições de vida e saúde da população, ou seja, políticas para a morte.