O fiel da balança – latinos sabem lutar por saúde em meio à crise!

Jonathan Filippon*

Aos olhos pouco preparados as próximas linhas são, para dizer o mínimo, incomuns. Explico: ocorreu, no derradeiro mês de Dezembro de 2013, entre os dias 16,17 e 18 na cidade da Antuérpia, Bélgica, a Conferência Anual da International Association of Health Policy of Europe (IAHPE – Associação Internacional de Saúde Pública Européia); entidade que reúne, em sua forma global (IAHP) uma rede de estudiosos em saúde pública, compromissados com a luta do acesso à saúde universal como direito comum a todos seres humanos. O mote da reunião foi Health Care Delivery and Financing, non comercial goods! (Cuidado em Saúde e Financiamento, não bens comerciais!). Até aí, nada de incomum… Porém, quem passasse próximo ao auditório onde se realizava a conferência, estranharia ali, no coração da Europa Central que tal reunião se desse em sua maioria em língua espanhola – e o mais interessante, com um forte sotaque sul-americano e brasileiro (resolvido pela tradução simultânea que, apesar das diferenças de sotaque, transmitiram os ditos dos nossos Hermanos de continente e Mercosul aos ouvidos europeus). Estudiosos e representantes da luta pela saúde de toda América do Sul e de Cuba foram convidados a dar o tom do encontro, baseando as mesas redondas das apresentações na experiência que o continente desenvolveu ao longo das décadas de 60,70, 80 e 90 em lutar por sistemas universais de saúde, mesmo submetidos à intensa pressão internacional – e por que não local, por parte de setores conservadores ligados ao capital que insiste em lucrar com o mercado da doença – Cebes e Alames fizeram-se representados. Pois foi com o intuito de buscar soluções plausíveis e de resistência ao capital privado na saúde que companheiros Europeus pediram o auxílio de latino-americanos para debater, e principalmente, apreender formas de resistência às reformas mercantilistas dos sistemas de saúde.

A crise econômica deflagrada em 2007 foi global, porém os dois epicentros foram divididos entre a União Européia (EU) e os Estados Unidos; os últimos, ao defenderem-se enquanto nação por meio de uma política econômica agressiva que oprime economias menos providas, safou-se mais rapidamente ao remediar a crise capitalizando-se ainda mais. Já os irmãos do velho continente ainda vivenciam, desde 2007,uma crise que vai além da diminuição do poderio econômico; há uma crise da própria identidade da União Européia, que questiona-se enquanto bloco econômico e de solidariedade – já que há alguns anos apenas Alemanha e Reino Unido (em menor grau) mantêm-se em desenvolvimento. A crise acentuou a histórica diferença social dos países da chamada Europa Central dos membros ditos periféricos – como por exemplo Grécia (o caso mais agudo), Irlanda, Espanha e Portugal. Apesar de não estarem em crise, países economicamente mais fortes como Itália, França e Bélgica estão virtualmente estagnados em termos de crescimento econômico real. O encontro pois foi dividido em três dias de debates, concentrando no primeiro dia apresentações sobre a crise europeia e a análise da conjuntura atual da EU; no segundo dia apresentações sobre a América Latina e possíveis mecanismos de resistência (neste dia houve a participação do Cebes, representado pela Presidenta Ana Costa, uma das três pesquisadoras brasileiras convidadas para o evento) e, finalmente o terceiro dia, em que foram apresentadas possíveis alternativas e propostas ações práticas de cooperação entre os movimentos sociais e acadêmicos de saúde europeus.

Tempos de crise são momentos alvissareiros para que projetos neoliberais tomem à frente, justificando o protagonismo de extrema direita como única solução possível – resolvendo a obesidade capitalista com mais um furo na cinta; desta vez repassando parte dos sistemas universalistas de saúde para o capital privado. O caso do National Health System britânico, um dos espelhos em que o SUS foi inspirado, é provavelmente o mais emblemático. Objeto da apresentação da Professora Allyson Pollock, da Queen Mary e Universidade de Londres, o sistema de saúde inglês foi segundo ela gradativamente privatizado a partir da era Tatcher – apesar de não ocorrer uma perda aparente de acesso ao sistema de saúde, mantendo-se inclusive o símbolo – como uma marca ou brand, porém sob nova administração – não necessariamente mais barata ou eficaz. O ano de 2013 marcou a retirada da obrigação, por lei, da responsabilidade do Ministro da Saúde em fornecer o cuidado em saúde à população – algo semelhante ao nosso Direito à Saúde presente na Constituição de 1988. Uma revolução silenciosa e ainda pouco explorada – inclusive por estudiosos britânicos em saúde pública e pouco ou nada entendida pela população inglesa.

Em outra mesa, o Professor Elias Kondilis, também da Queen Mary e Universidade de Londres demonstrou, em dados, a devastação do sistema de saúde na Grécia, seu país de origem – finalizando com uma frase emblemática: “sabemos que os sistemas de saúde precisam constantemente de reformas, é um dos nossos maiores objetos de estudo, a questão aqui não é ‘reformar ou não’, é sim por quem estão sendo propostas estas reformas (na Grécia) e para quem, a serviço de quem”. Por meio dos memorandos de entendimento (Memorandum of Understanding), o governo grego concordou em seguir uma agenda política de austeridade social, cortando gastos públicos para honrar o pagamento apenas dos juros dos empréstimos internacionais – sacrificando serviços públicos essenciais como saúde, educação e assistência social. O Professor português Carlos Artundo mencionou que a crise global proporcionou um assalto ao universalismo dos sistemas de Welfare Europeus, estes colocados no imbróglio da sustentabilidade – financeira e não de direitos. A partir de pouca ou nenhuma evidência científica os sistemas de saúde europeus vêm sendo expostos ao capital privado – justificando-se um maior acesso e eficácia, porém, como afirmou o professor, “o que se vê na prática é apenas o repasse da verba pública para mãos privadas, nem sempre às claras”.

O Doutor Willy Palm, do Observatório Europeu de Sistemas e Políticas de Saúde mostrou que o gasto real em saúde pública vêm gradativamente decrescendo na maioria dos países da União Européia a partir do ano de 2008, logo após o pico da crise econômica. Segundo ele o gasto per capita em saúde caiu de maneira geral pela primeira vez desde a década de 70, revelando uma desprioritarização das áreas sociais de uma forma mais generalizada no bloco econômico, assim como o crescimento da modalidade de seguro de saúde com uma oferta menor na cesta de serviços em vários países. A discussão após as apresentações foi profícua e pode ser resumida nas palavras da Professora Asa Cristina Laurell, do México, afirmando que “o que está ocorrendo na Europa agora, aconteceu na América Latina 30 anos atrás (…) em que um novo modelo de mercado tem um impacto direto no mercado de trabalho, assim como nos sistemas de saúde. É preciso expandir a discussão do impacto deste modelo não apenas na saúde, mas na sociedade como um todo”.
Foi lembrado que a América Latina lutou por 30 anos (no período das ditaduras militares) tendo os sistemas de Welfare europeus como horizonte utópico e que a reação popular, ainda que tímida em países como Grécia e Espanha, é uma resposta social à perda de direitos – como ocorreu em muitos países da América do Sul nas últimas décadas.

A crise vem sendo vista por muitos reformistas políticos de orientação liberal como um momento fértil para impor reestruturações que dificilmente seriam aprovadas em outro contexto econômico. O Professor britânico John Lister ressalta que na Espanha e no Reino Unido estão sendo executados não apenas cortes nos orçamentos da saúde, mas também está mudando-se a orientação de tais sistemas, deixando-os mais alinhados com o modelo americano de venda de serviços, sabidamente mais dispendioso e ineficaz – porém, que concentra o capital na forma de assets para investidores, os shareholders. A saúde torna-se mais uma commoditie, em conjunto com outros bens negociáveis – a diferença, nada sutil, é a porção humana da qual os sistemas de saúde são responsáveis em todos os estágios da vida. Oportunamente o Professor Oscar Feo (Alames) traçou outro paralelo entre a América Latina e a UE: o interesse do capital financeiro em tirar vantagem com a crise, vislumbrando-a como oportunidade de apossar-se do lucrativo negócio da saúde; Prof. Feo afirma que a única maneira de barrar tal processo é através do fortalecimento social, conscientizando movimentos sociais locais do direito à saúde, “construindo planos nacionais e estratégias que tenham como núcleo forte o direito fundamental à saúde”.

A Professora Lígia Giovanella, da Fiocruz apresentou algumas notas de comparação entre os sistemas de saúde europeus e América Latina, demonstrando a fragmentação da Atenção Primária em Saúde como fruto da influência neoliberal de aquisição de serviços selecionados. A universalidade dos sistemas é posta em xeque, assim como ocorre no Brasil, portanto segundo a Professora “estamos juntos nesta luta”; solidarizando-se aos irmãos europeus. O vice-ministro de saúde de El Salvador demonstrou com evidências coletadas e na própria experiência do país da América Central, que “a principal lição que tiramos da nossa ‘crise’, é a de que ela é o momento em que devemos aumentar os direitos sociais, para que a iniquidade social não se acentue, e isto é exatamente o oposto do que a UE vem fazendo em suas políticas de austeridade”. A Professora Celia Almeida, também da Fiocruz, complementou durante as discussões a fala do ministro, afirmando que a “cobertura universal de saúde vem sendo exposta em muitos lugares, porém de uma forma deturpada, que inclusive agrega a privatização de serviços” em nome desta mesma universalidade – ainda que sejam conceitos contrários em termos de execução prática.

Após três dias de apresentações e debates, experiências foram trocadas e laços fortalecidos. A percepção de que há uma distorção do uso da palavra “universalismo” ou Cuidado Universal em Saúde é clara e potente; esvazia-se o direito à saúde de sentido para que este possa ser vendido, comprado, arrendado… Que isto enfim apenas dê algum lucro no final, deixando de lado toda a construção teórica da Saúde Coletiva como direito cidadão. Recebe quem possa pagar. Porém, os sistemas de saúde que baseiam-se na solidariedade e na divisão do risco, preocupando-se não apenas com o processo de adoecimento, mas com o andar a vida como parte e direito da própria existência do indivíduo – e nos quais, fundamentalmente, os cidadãos apropriam-se da coisa pública de maneira coletiva e organizada jamais será transformado em bem vendável.

Página da IAHP na web:
http://www.healthp.org/

Página do Encontro:
http://iahpeconference2013.wordpress.com/
* – Jonathan Filippon é pesquisador da Global Health, Policy and Innovation Unit Centre for Primary Care and Public Health (Blizard Institute/London)