O que fizeram com a saúde dos brasileiros? Entrevista com Jairnilson Paim
Por Ricardo Guerra/ Estadão
Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC
O Dr. Jairnilson Silva Paim, pesquisador com graduação e mestrado em medicina, bem como doutorado em saúde pública, é Professor Titular do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Bahia. Seus estudos analisando a situação, a eficiência e as iniquidades do sistema de saúde brasileiro já foram publicados em diversas revistas científicas. Alguns de seus livros, como, por exemplo, O que é o SUS, Reforma Sanitária Brasileira e, mais recentemente, Saúde Coletiva, são notoriamente conhecidos na área da saúde. Essas publicações deram ao médico brasileiro reconhecimento internacional como uma das maiores autoridades no estudo da política e estrutura do sistema de saúde público brasileiro, mais particularmente, o Sistema Único de Saúde (SUS). Recentemente, seu artigo sobre a existência e os desafios do SUS foi publicado na revista científica LANCET, uma das publicações mais respeitadas do mundo na área da medicina. Ele é uma referência dentro da Saúde Coletiva e um crítico ferrenho dos diversos abusos sofridos pelo SUS, que, segundo o pesquisador, tem sido minado e enfraquecido pelo capitalismo desmedido e por interesses alheios que, desde o início, tentaram sabotar sua implementação. Nesta entrevista, o Dr. Paim fala em detalhe sobre muitas destas questões, incluindo as desigualdades dentro do sistema de saúde brasileiro, a quantidade desnecessária de partos cesarianos e o legado de diversos governos em relação ao êxito da proposta para a saúde originária da constituição de 1988.
Pergunta Blog: Hoje em dia, há nos meios de comunicação relatos frequentes de pacientes que estão sendo submetidos a procedimentos desnecessários em diversas áreas médicas nos EUA. Quais especializações cometem os maiores abusos no Brasil?
Um aspeto que chama atenção no Brasil é a quantidade desnecessária de partos cesarianos, que ocorreram muito em nosso país nas décadas de 70 e 80. Naquela época, no Brasil, chamávamos tal ocorrência de “epidemia das cesárias”, em que o parto normal recebia do INAMPS uma remuneração inferior a do parto cesariano, e isso estimulava os médicos a fazerem uma cirurgia, em vez de deixarem a natureza funcionar normalmente. Essa epidemia de cesarianas no Brasil foi muito debatida nos anos 70 e 80. No entanto, atualmente, embora não se possa falar de epidemia, nós temos uma endemia de cesarianas. Enfim, nós temos uma maior proporção de partos cesarianos em relação aos partos normais. De fato, de acordo com a recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde), aproximadamente 15% dos partos deveriam ser cesarianos. No caso do SUS, mais de 30% dos partos são cesáreas, e a situação é ainda mais alarmante no caso do setor privado, que faz muito mais partos por cesariana do que o SUS.
Pergunta Blog: E essa quantidade excessiva de partos cesarianos ainda é atualmente um grande problema no Brasil?
Sim, esse ainda é um grande problema no Brasil. Por isso eu falei que, ao invés de ser uma epidemia, hoje já é uma endemia. Endemia é aquilo que permanece. Então, essa situação hoje tem repercussões muito sérias na saúde da criança, sendo uma das explicações para a alta mortalidade neonatal, e especialmente perinatal no Brasil. Nós conseguimos reduzir muito a mortalidade infantil, principalmente no componente pós-neonatal, ou seja, a partir dos 28 dias. No entanto, no primeiro mês de vida, e até na primeira semana e perto do parto, ainda temos muita dificuldade em reduzir essa mortalidade em função não só da falta das UTI´s neonatais, mas, sobretudo, devido à excessiva quantidade de partos que não são normais. Quando comparamos as taxas do Brasil com as da Inglaterra, nós temos uma proporção de partos cesarianos muito maiores do que naquele país.
Pergunta Blog: Um estudo recentemente publicado (Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y la Justicia Penal) apontou que existem 16 cidades brasileiras entre as 50 cidades mais violentas do mundo. O nosso país também tem uma série de outros problemas, como a pobreza, a desigualdade e outras questões relacionadas com a seguridade social (saúde, educação, previdência, transporte, etc.). O SUS tem condições de se tornar realmente eficiente e obter êxito dentro deste quadro social?
O conceito de intersetorialidade, de ação intersetorial, é muito importante para entender o papel do SUS nessa questão. A questão da violência é multicausal. Portanto, ela tem vários determinantes sociais. De fato, o SUS sozinho não pode fazer muita coisa contra a violência. No entanto, o SUS, além de atender emergências em domicílio ou nas ruas com o SAMU, também contribui através da vigilância epidemiológica. Esta vigilância é vital para poder entender a ocorrência e distribuição de atos de violência na sociedade e, portanto, tentar orientar um conjunto de iniciativas de controle. Contudo, o SUS somente pode trabalhar ou auxiliar no combate contra a violência de uma forma intersetorial juntamente com outros segmentos, como a educação, a segurança pública, a justiça, etc. Assim sendo, essa é a possibilidade de que uma política global de controle de violência venha a ter a participação da saúde. E com isso, eu acho que a questão da violência é exatamente uma das questões para as quais o SUS pode contribuir, mas insisto que somente dentro da perspectiva intersetorial.
Pergunta Blog: Você observa em um de seus artigos que a estabilização ou o ancoramento do conceito e da estrutura de seguridade social no Brasil foi estabelecido tardiamente em relação a varios países da Europa ocidental e a muitos outros. Quanto tempo depois começamos a trilhar por esse caminho?
Aconteceu quase 50 anos depois.
Pergunta Blog: E quais foram as consequências disso para o desenvolvimento do capital humano em nosso país?
Obviamente, este atraso teve consequências significativas, e de certa forma nós pagamos por isso até hoje. Certamente, unido a outros fatores sociais, o atraso que tivemos dentro da área da saúde contribui de certa forma para as sérias desigualdades sociais existentes em nosso país. Desde a época de Getúlio Vargas, nós temos tido uma política econômica que alguns economistas chamam de “fuga para frente.” Portanto, os gargalos estruturais da sociedade brasileira nunca foram enfrentados. Em algum instante você havia mencionado a política social do presidente Roosevelt, o New Deal. Aqui no Brasil, a gente não teve nada parecido com isso, nem sequer chegamos perto de tal proposta. De fato, as raízes da nossa dependência e as causas das nossas desigualdades nunca foram enfrentadas de forma arrojada por nenhum governo brasileiro. Nunca nenhum governo trabalhou com estas questões. O governo do João Goulart, somente pelo fato de acenar para algumas mudanças consideradas reformas de base, foi suficiente para dar espaço ao que aconteceu há 50 anos. Eu acho que o conceito de revolução passiva, explicado pelo autor italiano Antonio Gramsci, é muito interessante para poder entender a história do Brasil. Segundo esta perspectiva, entende-se por “revolução passiva” o ato de fazer mudanças e conservações simultaneamente, ou seja, é conservar mudando e mudando para conservar. Essa é uma ideia muito interessante. Não é somente o governo que age dessa maneira, a nossa sociedade também é assim. Alguns cientistas políticos brasileiros, como Luiz Werneck Vianna, aprofundam o assunto e falam que isso tem a ver com a nossa cultura ibérica. O Brasil precisa ser mais estudado. A maioria dos países europeus se desenvolveu através da revolução passiva e não da revolução do tipo jacobino, e isso é muito próximo da situação brasileira. Nós somos diferentes da Argentina, de Cuba e do próprio Haiti. Este último foi um dos primeiros países a fazer uma revolução mais significativa e depois entrou em desgraça. Vou terminar com uma divagação peculiar. Imagine que “quem vai fazer a independência do Brasil”, com o grito do Ipiranga, é o neto de Dona Maria, a mesma que manda enforcar Tiradentes. Você pode imaginar isso? A Dona Maria era mãe de Dom João VI, e diziam que ela era louca.
Pergunta Blog: Então, a estratégia de governo do presidente Getúlio Vargas tinha um pouco desse conceito de revolução passiva, imbuída dentro do sistema?
Esse é um grande exemplo de um governo utilizando o conceito de revolução passiva. Eu acabei de ler os dois primeiros volumes da biografia do Getúlio, cujo autor é Lira Neto. Ele era incrível. Ele circulava entre os interesses do capital e do trabalho com uma desenvoltura e com uma habilidade genial. Ao mesmo tempo, que ele se colocava como “pai dos pobres”, ou como defensor dos trabalhadores, ele estava viabilizando um determinado tipo de desenvolvimento capitalista no Brasil, dependente do Estado. No entanto, eu não vou afirmar que ele tinha isso tudo na cabeça, mas quando você vai vendo os atos dele e os movimentos que ele vai realizando na história do Brasil, você percebe que isso foi sempre no sentido de conciliar os interesses divergentes. Por exemplo, se existia o Partido Comunista no Brasil, tentando se aproximar dos sindicatos, ele criava o PTB para não dar espaço aos comunistas. Ao mesmo tempo, ele criava o PSD para apoiar os grandes latifundiários brasileiros e não fazia reforma agrária. Sua desenvoltura e articulação dentro do aparelho de Estado eram incríveis.
Pergunta Blog: Em relação a alguns indicadores como a mortalidade infantil, o saneamento básico entre outros, qual foi o legado da ditadura militar?
No início, especialmente no período da ditadura que vai de 1964 até 1973, os indicadores de saúde, de modo geral (a mortalidade infantil, as mortalidades diversas, a morbidade, etc.), apontam para um agravamento da situação sanitária no Brasil. Também aumentaram os acidentes de trabalho, a prevalência da doença de chagas, a esquistossomose, a incidência da tuberculose, etc. Além disso, várias epidemias surgiram, como a meningite. Somente com a chegada de Ernesto Geisel é que observamos uma reversão parcial de alguns destes indicadores. No entanto, somente obtivemos ganhos e progressos indiscutíveis em termos epidemiológicos e sanitários com a chegada do SUS. De fato, temos muitas evidências disso.
Pergunta Blog: Durante o período da ditadura militar, qual foi a porcentagem do orçamento da união destinada à saúde?
Em 1964, no ano em que João Goulart foi deposto, a saúde pegava mais ou menos 3,5% do orçamento da união. Na chegada de Geisel, em 1974, somente 0,9% do orçamento da união era destinado à saúde.
Pergunta Blog: No último ano do regime militar (1985), o gasto social realizado no Brasil representava apenas 13,3% do PIB. Depois de a constituição ter sido promulgada em 1988, ele cresceu para 19%, permanecendo estacionário durante a década neoliberal. A partir do ano 2000, o gasto social retomou uma trajetória crescente. No entanto, atualmente o percentual do gasto social no Brasil, em relação ao PIB, ainda é significativamente inferior quando comparado com outros países da Europa, como a França (32,8), a Dinamarca (30,8%), a Suécia (28,4%), a Bélgica (30,6%), entre muitos outros (relatório Society at a Glance 2014 da OCDE). Vale a pena mencionar que todos esses países oferecem serviços dentro de um planejamento mais amplo de seguridade social (saúde, educação, previdência transporte, etc.), muito mais avançado e mais eficiente do que o nosso. Isto significa que o dispêndio do governo brasileiro deveria ser percentualmente maior do que o investimento atual para suprir todas as necessidades sociais existentes em nosso território?
Agora, com essa pergunta, eu vou ter que botar o dedo na ferida, porque mais de 42% do orçamento da união é para pagar os bancos. Então você não tem mais de onde tirar para poder pôr mais recursos no social e, portanto, o orçamento social é gasto especialmente com programas de transferência de renda. Esses 42% são para amortizar a dívida com os bancos, e essa dívida não foi criada para fazer estradas, escolas ou hospitais. Essa dívida tem a ver com uma lógica que não dá para entender, em que o próprio governo toma o dinheiro emprestado dos bancos e é ele mesmo quem aumenta a taxa de juros.
Pergunta Blog: O Brasil ainda é o quarto país mais desigual da América Latina. De fato, o coeficiente GINI melhorou, mas ainda assim é criticado por alguns economistas em sua incapacidade de revelar a desigualdade de rendimento entre o capital e o trabalho. Em relação a muitos indicadores, como a mortalidade infantil, o Brasil ainda se encontra em uma posição muito baixa nos rankings, atrás até mesmo da Botsuana, da Albânia e de muitos outros países da América Latina, como o México, o Panamá, a Colômbia, a Argentina, o Chile e o Uruguai. Diante dessa situação, qual é a sua opinião sobre o direcionamento de tantos recursos destinados aos estádios e a outros empreendimentos vinculados a eventos esportivos?
O Brasil foi colocado no centro desses megaeventos esportivos e não houve debate com a sociedade sobre o que deveria ser tratado com prioridade. Por que não perguntaram à população brasileira se ela queria ou não sediar a Copa do Mundo ou as Olimpíadas? É claro que poderíamos não ter construído os estádios e continuado na mesma situação, mas também poderíamos entender que a saúde das pessoas e a comida na mesa são mais importantes do que o gasto com o circo. De tal forma, eu acredito que os movimentos de junho e julho do ano passado não foram somente contra os gastos com os estádios, etc., mas estavam relacionados com a necessidade de outras melhorias referentes às questões sociais (o transporte público, a mobilidade urbana, etc.). Na verdade, eu acredito que esses movimentos estão indicando que o atual modelo de democracia, um cheque em branco ao presidente da república, não é mais suficiente como modelo de governo. As pessoas querem maior representação por parte de seus governantes e querem poder influenciar as decisões desses indivíduos. Creio que essa insatisfação e esse desejo são uma tendência global.
Pergunta Blog: Examinando especificamente indicadores básicos no setor da saúde (a mortalidade infantil, o saneamento básico, a expectativa de vida, entre outros), qual o balanço que você faria do que foi e do que não foi alcançado no Brasil? Em outras palavras, quais indicadores houve maior progresso e onde deixamos de progredir no Brasil?
Além da mortalidade infantil, nós tivemos grandes avanços na redução das doenças transmissíveis, como a poliomielite e a varíola, que foram erradicadas, e a rubéola, que foi praticamente eliminada; no caso do sarampo houve uma redução significativa. De fato, no tempo em que eu estudava medicina, nós víamos casos de difteria, e hoje em dia não vemos mais, nem coqueluche e nem tétano. Naquela época, o tétano no período neonatal era muito frequente. No entanto, hoje praticamente não existe tétano no Brasil. Então, do ponto de vista das doenças transmissíveis, nós conseguimos avançar muito, especialmente com a implantação do SUS. Também estamos tendo uma redução na mortalidade por doenças do coração. Todavia, aumentamos a mortalidade por causas exteriores, de morte violenta. Além disso, a mortalidade materna é um dos indicadores em que nós temos ainda muita dificuldade para alcançar a meta do milênio que o Brasil acordou com a ONU. Portanto, eu acho que esse é um dos grandes desafios. Seria importante acrescentar um ponto polêmico: uma das razões pelas quais não conseguimos avançar de forma contundente em relação à mortalidade materna tem a ver com o aborto. Como o aborto é uma questão complexa dentro da sociedade brasileira, coberta de preconceitos, inclusive religiosos, nós não conseguimos encará-la de uma forma mais objetiva e científica. Aqui encontramos uma das razões da permanência da mortalidade materna no Brasil. Além disso, este não é o único motivo, pois a questão da assistência ao parto é outro problema. Existem vários estudos apontando para uma proporção significativa da mortalidade materna relacionada ao aborto e às condições em que as mulheres são atendidas ou rejeitadas nos hospitais nessas circunstâncias.
Pergunta Blog: Você poderia fazer uma análise comparativa do desempenho do Brasil nesses indicadores com outros países da América Latina?
Apesar do nosso progresso, da nossa luta e do nosso esforço, nós ainda temos muitos indicadores, como a expectativa de vida ou a mortalidade infantil, em piores condições que a Argentina, Cuba, Chile e Uruguai.
Pergunta Blog: Você falou sobre a mortalidade infantil e o sucesso em diminuí-la. No entanto, o componente neonatal ainda é preocupante?
Eu comecei a minha vida acadêmica estudando a mortalidade infantil. Naquela época, nos anos 60, quando eu estudava a mortalidade infantil em Salvador, nós tínhamos uma mortalidade infantil em torno de 160 óbitos por 1000 nascidos vivos. Vale a pena mencionar que a quantificação dos indicadores não era perfeita. No entanto, quando nós observamos os mesmos indicadores hoje, nos deparamos com uma situação completamente diferente. Atualmente, naquela cidade temos 20 óbitos por 1000 nascidos vivos, aproximadamente, o que é de fato um grande avanço. Porém, é sempre importante fazer uma comparação no tempo e também no espaço. Quando você examina Cuba, cuja mortalidade é menor do que 6 por 1000, sendo muito mais pobre do que Salvador e do que o Brasil, você chega à conclusão de que era possível ter tido um avanço maior em nosso país. De fato, nós avançamos muito na mortalidade infantil. Apesar de também termos avançado no componente neonatal, hoje em dia esse elemento nos preocupa muito mais do que o pós-neonatal. Em outras palavras, as mortes de crianças por diarreias ou por infecções respiratórias agudas reduziram muito expressivamente. Para concluir a questão, gostaria de dizer que devemos também prestar séria atenção às diversas iniciativas que outros países seguiram para reduzir a mortalidade infantil em todos os seus componentes.
Pergunta Blog: Um recente estudo publicado por uma pesquisadora brasileira apontou que existem nítidas iniquidades raciais na saúde bucal no Brasil, em todos os indicadores analisados (cárie, perda dentária, dor e necessidade de prótese), sendo a população negra (pretos e pardos) a mais vulnerável, em comparação à branca. Em quais outras áreas da saúde também encontramos tais iniquidades raciais?
Você vai encontrar tais iniquidades também em relação à mortalidade infantil, em relação à mortalidade materna e ao uso ou não de anestésicos durante o parto. É terrível, mais é preciso dizer isso, e existem estudos mostrando também que as mulheres negras perambulam muito mais antes de chegar à maternidade do que as brancas, e são cuidadas de forma diferente em relação ao seu parto. Nos últimos dez ou quinze anos, vários estudos epidemiológicos têm mostrado as diferenças de morbidade e de mortalidade da população negra em relação à população branca. Há uma situação que eu gostaria de destacar, por isso eu vou me referir a essas iniquidades do ponto de vista racial e étnico. Porque, quando você compara a mortalidade infantil entre brancos, negros e índios, a população indígena é a que tem a pior taxa quando essa comparação é feita. Portanto, se os negros no Brasil têm sido excluídos e têm sido sacrificados em um conjunto de questões sociais, os nossos índios estão numa situação ainda pior.
Pergunta Blog: Muitos especialistas têm criticado modelos de saúde excessivamente baseados nas leis do mercado, que têm sido sistematicamente incapazes de se corrigir ou de corresponder às expectativas. A saúde é um mercado comum ou trata-se de um área diferenciada, com peculiaridades e necessidades distintas de outros setores, e que por isso precisa ser regulada e o paciente protegido?
Economistas de diversas correntes, às vezes até mesmo os mais ortodoxos do ponto de vista neoliberal, têm chamado atenção para a ideia de que o mercado da saúde é imperfeito. Como existem imperfeições neste setor, é necessário que alguma instância superior possa ter o poder de regulá-lo, como o que acontece nas instituições do poder público. Um dos indicadores da imperfeição do mercado é que o consumidor em geral, não detém do conjunto de informações necessárias para tomar certas decisões referentes a uma devida situação clínica. O indivíduo pode ter um conjunto de informações disponíveis para comprar um carro importado ao invés de um carro popular. No entanto, um paciente muitas vezes fragilizado, com medo de morrer ou com medo de sofrer, mesmo usando o Google, não detém as informações ou o conhecimento técnico e científico adequado para tomar certo tipo de decisões, como a de fazer ou não uma ressonância magnética ou uma tomografia computadorizada. Da mesma forma, em um caso mais extremo, na maioria das vezes ele pode não estar em condições de decidir se irá fazer uma determinada cirurgia ou não. Quem dispõe dessa informação é o médico ou o gestor que controla os custos. Trata-se então, de um mercado que não permite a livre escolha dos serviços e dos procedimentos que uma pessoa precisa. Além disso, quando a questão do lucro se torna o objetivo primordial de um sistema de saúde, existe sempre a possibilidade de que os pacientes possam ser submetidos a procedimentos desnecessários. Por essas e por outras razões é que a área da saúde precisa, ainda mais do que outras, ter mecanismos de regulação e de averiguação. Assim sendo, o paciente não pode ficar à mercê do mercado.
Pergunta Blog: Outra crítica gira em torno da ideia de que o modelo excessivamente pró-mercado não tem, muitas vezes, qualquer incentivo para prestar serviços em certas áreas do sistema de saúde. Há especializações no Brasil, dentro da área médica, que você acredite serem negligenciadas, em decorrência do nosso sistema de saúde ainda possuir características significativamente caracterizadas pelas leis do mercado livre?
Observações sobre o desenvolvimento do SUS (Sistema Único de Saúde), estão hoje indicando que possuímos um conjunto de especialidades que se encontram numa posição insuficiente para suprir as demandas decorrentes do próprio crescimento de atendimento do SUS. Por exemplo, devido o crescimento do CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), eu diria que a psiquiatria não tem profissionais suficientes para suprir a demanda resultante desse crescimento. Nós também temos uma quantidade de pediatras insuficientes para o crescimento do SUS, apesar da redução da natalidade no Brasil. Isso também ocorre com algumas outras especialidades em que há mudança do perfil epidemiológico no país. Estas mudanças estão criando uma determinada demanda, como por exemplo, no número maior de ortopedistas, em decorrência das questões dos traumas relacionados com os acidentes de trânsito.
De fato, é possível localizar algumas dessas insuficiências, em função do próprio crescimento do SUS e da mudança do chamado perfil epidemiológico. No entanto, o problema que eu gostaria de destacar é que não existem estudos mais sistemáticos sobre a futura necessidade dessas especialidades. Ou seja, não há estudos que estimem o que vamos precisar nos próximos 5, 10 ou 30 anos. Portanto, não existem estudos prospectivos para você poder entender as tendências dentro do sistema de saúde, nem dentro do setor privado, porque há certa competição entre esses recursos humanos. Também é importante examinar o conteúdo dos cursos das faculdades de medicina, principalmente dos cursos de especialização, sobretudo, os de residência médica.
Pergunta Blog: A questão que ilustra a falta de planejamento de que você fala pode ser exemplificada pelo programa “Mais Médicos”, que, segundo alguns especialistas, demorou a ser implantada com o intuito de suprir a falta de profissionais em diversas regiões e setores?
De fato, o planejamento da força de trabalho na saúde, e particularmente do trabalho médico, não tem sido realizado no Brasil. Esse exemplo para a qual você chamou atenção ilustra o que ocorre. O SUS já tem 25 anos e só agora o governo se deu conta de que estavam faltando médicos e tomou a iniciativa do projeto. Aí fica esse conjunto de iniciativas, que eu poderia chamar de improvisadas, para poder dar conta disso. De certa forma, o Brasil tem uma política de omissão em relação aos trabalhadores de saúde em geral, incluindo o profissional médico.
Pergunta Blog: Muitos consideram o SUS um sistema híbrido, caracterizado tanto por elementos originários da tradição dos sistemas públicos, como por outros do pró-mercado. Consequentemente, especialistas do assunto muitas vezes argumentam que existe uma tensão permanente entre estes dois elementos e, por isso, o aspecto privado pode na verdade enfraquecer ou minar o sistema como um todo. Qual é a sua opinião sobre esta questão?
O mercado está consumindo o SUS tanto por dentro como por fora. Em outras palavras, quando os interesses privados penetram o SUS através de formas de gestão que não têm um caráter público e sim uma lógica privada, você muda a prática e a concepção de quem está atuando diante da população, como também da própria população, que chega lá como consumidora e não como cidadã. Isso dentro do SUS. Então, quando se desenvolvem organizações sociais, parcerias público-privadas, fundações de direito privadas, etc., com o discurso de que se está tornando o setor público mais eficiente, você está na verdade dando prioridade às ideologias preponderantes que preconizam o individualismo, ao invés de encorajar interesses ou ações mais coletivas, como deveriam ser as ações de saúde pública ou a própria natureza do SUS.
O SUS também tem sido privatizado exteriormente, na medida em que o governo, tanto no âmbito federal, estadual, como municipal, possui recursos que são públicos, que são da sociedade como um todo, e que estão sendo utilizados para estimular o setor de planos privados de saúde. Quando os governos estaduais, municipais e federais incentivam que os seus funcionários tenham planos de saúde que são em parte financiados pelo governo, dizendo que o governo não tem dinheiro, você está dando um subsídio para a expansão dos planos privados de saúde. Da mesma maneira, quando o Estado brasileiro realiza uma renúncia fiscal, desonerando os usuários e as empresas de outros impostos que tinham como destino suprir fins sociais e necessidades do SUS, você também dá de mão beijada um subsídio para o setor privado dos planos de saúde.
No entanto, isso não significa ser contra o setor privado dos planos de saúde. Se uma pessoa tem condições financeiras para pagar pelo seu plano, tudo bem. Por outro lado, um governo que prefere promover renúncia fiscal aos planos de saúde, em vez de estar financiando o setor público, financiando o SUS, que já é subfinanciado, deixa claro que o setor público de saúde não é a sua prioridade. Esta incoerência fica ainda mais evidente quando o governo estimula os seus próprios servidores a terem planos privados ao invés de utilizarem o SUS.
Pergunta Blog: A hibridez do sistema de saúde dá margem ou estimula a ineficiência na administração de diversos recursos?
Exatamente. Ela vem com todas as consequências nefastas. A corrupção não é somente dentro do setor público. É justamente essa relação promíscua entre o público e o privado que é um ponto muito sério. Assim sendo, o nosso sistema híbrido tem sérias interconexões, que têm sido objeto de pesquisas e de teses de doutorado, que apontam geralmente para o fato de que esse tipo de relação é deletério e prejudicial aos interesses do setor público da saúde. Portanto, quem mais ganha com esse tipo de relacionamento mesclado, são os interesses privados.
Pergunta Blog: Um dos objetivos da constituição de 1988 era combinar elementos originários da tradição dos sistemas públicos de saúde com outros baseados nas leis do mercado dentro do que viria a ser o SUS?
Ali houve uma luta política. Você sabe que o presidente Sarney queria ficar seis anos no governo, apesar do Tancredo Neves ter se comprometido com a nação em fazer as eleições diretas, e, portanto, só poderia ficar quatro anos no governo. E, desse modo, foi criado um centrão. As forças mais conservadoras da constituição se aliaram ao Sarney. Ele argumentava que aquela constituição iria deixar o país ingovernável, convencendo grupos de constituintes e ganhando, em vez de quatro, os cinco anos de governo, embora também não tivesse sido os seis que ele queria desde o começo. Ao mesmo tempo, estas forças, articuladas com o presidente, mudaram as regras do jogo durante o próprio jogo, ou seja, eles mudaram o regimento enquanto estava ocorrendo o processo constituinte. Eles praticamente zeraram tudo o que já tinha sido definido nas comissões específicas da ordem social e na própria comissão de sistematização. Portanto, quando houve esse tumulto, as forças que estavam apostando em um sistema de saúde de maior amplitude, com base no chamado estado de bem-estar social, ou wellfare state (seguridade social), ficaram de alguma maneira encurraladas. Assim sendo, a maneira como saiu o capítulo foi de uma forma negociada. Em outras palavras, de um lado conseguiram dizer que a saúde é um direito de todos, um dever do Estado, e do outro, disseram que é da livre iniciativa privada. Mesmo assim, ainda se conseguiu algo desse confronto, como o argumento que a saúde é um tema de relevância pública, abrindo a possibilidade para que o ministério público pudesse eventualmente defendê-la. Então, como constatamos, para não se perder tudo, aqueles constituintes que eram a favor da ideia de uma seguridade social mais ampla tiveram que “ceder uma parte dos dedos”. Portanto, a origem dessa complexidade da relação público/privado no Brasil teve continuidade devido ao que foi articulado durante esse período e no que veio a ser o SUS. De fato, essa relação complicada e mesclada entre o setor privado e o público já fazia parte de nossa história. Ela foi radicalizada dentro da ditadura, mas para fazer justiça à nossa história, é importante frisar que já era originária da década de 20, com a criação das caixas de aposentadorias e das pensões que sempre faziam convênios com o setor privado, e depois com os institutos de aposentadoria (o IAPI, o IAPB, o IAPC, etc.). Logo, essa relação meio promíscua entre o público e o privado faz parte da história das políticas de saúde no Brasil.
Pergunta Blog: Na América Latina, a privatização dos sistemas de saúde não se mostrou efetiva, e no caso colombiano apontado por você, o sistema beira a insolvência. Quais são as razões da falta de efetividade desses sistemas? E o que realmente aconteceu com o exemplo colombiano?
O sistema de saúde da Colômbia se encontra numa situação muito pior do que a do SUS. Na Colômbia, eles segmentaram a população entre as opções de planos de saúde com fortes elementos do mercado privado. Assim sendo, a opção dos planos privados está em constante disputa com os planos subsidiados pelo governo, que também possuem características do setor privado. No entanto, a opção governamental não tem respaldo suficiente do aparelho do Estado e, consequentemente, é menosprezada pelas leis que regem o mercado, levando muitos colombianos de menor poder aquisitivo, que optaram pelo plano governamental, a não terem disponibilidade de tratamento quando necessitam. Portanto, a infraestrutura hospitalar predominantemente controlada pelo sistema privado favorece o atendimento aos que possuem os planos exclusivamente vinculados a este setor. Além disso, em decorrência de boa parte dos recursos direcionados para a saúde serem destinados à assistência médica, as ações de interesse coletivo, como a de controle de doenças, vêm sendo sacrificadas. Desse modo, o modelo colombiano, apesar de ter sido tão elogiado pelo Banco Mundial e de ter sido considerado um dos melhores do mundo em 2000, se encontra com sérias dificuldades. Os gastos de saúde quase triplicaram sem universalidade de acesso, integralidade e melhoria nos indicadores de saúde.
Pergunta Blog: Qual é o impacto que as empresas de convênio médico têm dentro do nosso sistema de saúde?
Do ponto de vista da cobertura populacional, hoje um quarto da população brasileira, em média, está vinculada aos planos de saúde. Muitos dos nossos profissionais têm dupla militância, ou seja, trabalham no público e no privado. Portanto, uma parte dos hospitais no Brasil atende tanto os pacientes do SUS como dos planos privados, e aí acontece o que eu estava tentando ilustrar com o caso da Colômbia. Assim sendo, o mesmo fenômeno ocorre nos dois países. Aqui no Brasil, o hospital faz o cálculo entre o que o SUS paga para determinados procedimentos e o que os planos privados pagam. Como na maioria das situações os planos privados pagam mais do que o SUS, os hospitais preferem internar os pacientes dos planos privados. No entanto, em situações muito especiais em que o SUS paga melhor do que os privados, como no caso dos transplantes, do atendimento oncológico e das cirurgias cardíacas, eles optam pelos pacientes do SUS. Isso acontece do ponto de vista da assistência e cria sérios problemas, que geram desigualdades e desequilíbrios dentro do sistema de saúde. Há ainda outro impacto muito sério que certos segmentos da sociedade brasileira começam a perceber: infelizmente elementos e interesses dos planos privados conseguiram colonizar certos espaços governamentais no Brasil na área da saúde. Na verdade, esses espaços, que deveriam estar regulados, supervisionados e coordenados, estão sendo ocupados por representantes das próprias empresas privadas dos planos de saúde, resultando numa relação mais complexa entre o público e o privado dentro do aparelho do Estado. De fato, muitos dos atuais dirigentes da ANS (Agência Nacional de Saúde), são pessoas que estão ou estiveram vinculadas às empresas de planos de saúde. É a raposa tomando conta do galinheiro.
Pergunta Blog: Você mencionou a necessidade de mecanismos ou instâncias que defendam os interesses da população no sistema de saúde. Como nos encontramos no Brasil em relação a esta questão? Temos organizações robustas e independentes que permitam uma vigilância eficiente do nosso sistema de saúde, constantemente pressionado por interesses alheios?
Nós não nos encontramos numa situação ideal em termos de vigilância sanitária. No entanto, depois que se constituiu a ANVISA, mesmo com problemas, nos encontramos numa posição muito mais razoável do que a em que estávamos há 20 ou 30 anos atrás. Mesmo que a ANVISA circule entre os interesses estatais, das indústrias de medicamentos, dos equipamentos e até dos próprios médicos ou corporações de especialidades, ela tende a buscar o melhor dentro do mercado, do Estado, e do interesse público. Entretanto, precisamos que agências deste tipo tenham maior independência. Na verdade, precisamos criar um muro em volta dessas instâncias reguladoras para que não sejam eventualmente inundadas por lobistas nem por elementos que visam outros benefícios. Até mesmo países que defendem o mercado ferrenhamente, como os Estados Unidos, possuem mecanismos que estão além dos interesses imediatos dos empresários. Isso nós precisamos fortalecer aqui no Brasil, tanto no âmbito da questão do Estado e de suas agências, como também na conscientização do cidadão.
Pergunta Blog: O que falta ao SUS para torná-lo um projeto que honre o que a constituição de 1988 visionava?
Eu acredito que faltam muitos ingredientes. No entanto, acho que poderíamos inicialmente destacar quatro pontos importantes:
1. A questão da falta de financiamento adequado do SUS é um grande problema. Esse financiamento precisa ser capaz de sustentar um sistema de saúde universal, de caráter público, que defenda a integralidade da atenção e do cuidado. Assim sendo, o financiamento é atualmente insuficiente, e uma parte dele é consumido e desviado por mecanismos dentro dos planos privados de saúde e por outros interesses vinculados ao mercado.
2. Um segundo ponto muito importante diz respeito à necessidade de termos no SUS profissionais e trabalhadores da saúde qualificados tecnicamente, de acordo com os princípios do próprio sistema de saúde brasileiro. Precisamos de profissionais trabalhando com a saúde brasileira que tenham formação profissional, técnica e acadêmica dentro das disciplinas relacionadas com a área da saúde. E, com isso, todos os profissionais do setor que almejam trabalhar no SUS, inclusive na parte administrativa do sistema, teriam a obrigação de passar por uma seleção pública, ou por um concurso público.
3. O SUS ainda não conseguiu adquirir uma gerência contínua, sem interrupções, e composta por profissionais que não estejam vinculados aos interesses partidários e que fiquem sujeitos a serem substituídos assim que um novo partido venha ao poder. Portanto, a descontinuidade administrativa representa um problema sério para a conformação do trabalho coletivo na saúde. Além disso, muitas agências, como a ANVISA e a ANS, que foram pensadas no sentido de garantir uma autonomia do setor, passaram a ser objeto de barganha político-partidária, comprometendo a eficiência de seu funcionamento.
4. Precisamos dar maior ênfase à medicina preventiva, à promoção da saúde e à prevenção de doenças e riscos. Portanto, apesar de nossa constituição apontar para a integralidade do cuidado, nós temos um modelo focado na medicalização e prestamos um atendimento muito segmentado e muito mais centrado no médico do que no usuário.
Pergunta Blog: Em um de seus artigos, você fala sobre os desafios e potenciais problemas que surgem quando a política social passa a ser foco de controle internacional. Você poderia esclarecer sua visão a respeito do assunto?
Somente com a constituição de 1988 o Brasil concebeu uma política social definida por um caráter mais amplo e democrático, partindo da ideia de que seguridade social é um conceito vinculado à condição de cidadania, e não uma questão de renda ou de inserção do mercado de trabalho. Então, essa concepção da política social com base na seguridade social, na qual se articula a previdência, a assistência, a saúde, etc., é uma ideia muito avançada. Eu diria que os países europeus, ou parte dos países europeus, conseguiram desenvolver ou implantar essa concepção a partir do relatório Beveridge nos anos 40 pós-guerra. No entanto, o Brasil somente conseguiu trazer isso para a nossa constituição em 1988. Assim sendo, enquanto o Brasil tentava, por bem ou às vezes com atrasos, implantar essa ideia de seguridade social, no âmbito internacional o Banco Mundial passava a ser um agente muito mais importante do que a própria Organização Mundial de Saúde. Em decorrência de seu maior poderio econômico em relação a OMS, ele passou a pautar as diretrizes das políticas sociais nos países da América Latina, inclusive as do Brasil. Dessa maneira, o que nós vamos observar desde 1988 é uma dissociação entre o esforço brasileiro de ter uma política social abrangente e uma orientação política focalizada principalmente na ideologia norte-americana. A influência desta ideologia foi reforçada através dos financiamentos do Banco Mundial, que impunham certas condições e faziam com que o Brasil reduzisse cada vez mais a ideia das políticas sociais presentes na constituição de 1988. Uma das polêmicas em relação a esta questão é a do Bolsa Família.
Pergunta Blog: Então o Bolsa Família se enquadra nessa política internacional de transferência de recursos com os condicionantes que o Banco Mundial promove?
Claro que sim. Como disse antes, o que observamos desde 1988 é que houve uma dissociação entre o esforço brasileiro de termos uma política social abrangente e uma orientação política herdada, sobretudo, da ideologia norte-americana, devido aos financiamentos que tinham certos condicionantes por parte do Banco Mundial. Isto, fez com que o Brasil restringisse significativamente políticas sociais mais amplas.
Deste modo, isso faz parte de uma ideologia norte-americana que vem ganhando espaço até mesmo nos países europeus. Consequentemente, e ainda mais depois da crise de 2008, essa concepção mais abrangente de cidadania tem sido sacrificada por um conceito de assistência mais específica a grupos que estão com maiores dificuldades. No entanto, este é um cuidado mais tênue, que não possui uma proteção constitucional mais duradoura e de maior amplitude
Pergunta Blog: Em sua opinião, o Bolsa Família enfraquece o conceito de cidadania?
De certa forma, ele faz exatamente isso. Não é que o Bolsa Família não seja necessário para reduzir, durante certo período, as dificuldades de uma boa parte da sociedade brasileira. O Bolsa Família não é uma concepção de seguridade social tal como a nossa constituição ancorava como direito para todos os brasileiros. De fato, o Bolsa Família é de alguma forma meramente um programa de governo, que pode ou não ficar. Então, aquela ideia de constitucionalização de direitos definida pelo conceito de seguridade social, como política ampla vinculada à cidadania e não à condição de pobreza, foi sendo afogada. Especialmente desde a época do governo Lula que a ideia de cidadania vem se enfraquecendo e adquirindo um contorno de que ela é uma proteção dada somente aos pobres. O Bolsa Família estimula e passa essa ideia. De certa forma, com o Bolsa Família, o cidadão abre mão de maiores direitos e deixa de cobrar dos seus governantes propostas sociais de maior porte, e que pela constituição de 1988 já deveriam estar em pleno curso. O que é garantido pela nossa constituição é muito mais do que um mero programa de transferência de rendas.
Pergunta Blog: Mas os programas de transferência condicionada de renda são eficientes? Um estudo recente, publicado pela respeitada revista científica LANCET, concluiu que um programa condicional de transferência de recursos (como o Bolsa Família) foi capaz de contribuir para uma queda na mortalidade infantil em nosso país. Afinal, qual foi o impacto que o Bolsa Família, lançado em 2003, teve na área da saúde?
Os programas são eficientes e eficazes. Eles conseguem inclusive ter impacto na área da saúde e na expectativa de vida das pessoas, e existem pesquisas aqui no nosso centro que apontam para isso. Inclusive, o estudo do LANCET que você se refere foi um trabalho feito aqui na Bahia. Do ponto de vista metodológico, o trabalho foi muito bem feito e é um estudo confiável. No entanto, faltou uma discussão maior sobre o impacto que esses programas têm na inviabilização das políticas sociais mais duradouras e com uma influência mais abrangente. Na verdade, o Bolsa Família é insuficiente para um país que se encontra entre as dez maiores economias do mundo. Portanto, viver ainda através de programas de combate à pobreza e à miséria sem ter um desenvolvimento de renda e um avanço na cidadania é uma pena. O Brasil poderia estar em outro patamar.
Pergunta Blog: O que teríamos de fazer para alcançar isso?
Eu vou falar como cidadão e não como pesquisador. Como cidadão, a gente tem mais liberdade. Temos que construir um novo projeto para o nosso país. Um projeto de nação. A sociedade brasileira perdeu a perspectiva de pensar no país. Em algum momento na nossa conversa você havia citado o Celso Furtado e seu planejamento minucioso. No tempo do Celso Furtado se pensava no país. Conhecíamos a história da nossa pátria. Dizia-se para onde o país queria ir. Hoje nós vivemos na base do improviso. Atualmente, nós não temos um projeto de nação para atender todas as camadas sociais, com suas diversas necessidades. Durante os anos 80, enquanto se combatia a ditadura, e também no seu final, nós tivemos dois grandes projetos: um era o projeto democrático-popular, vinculado ao PT e a alguns partidos de esquerda, entre outros; o outro era um projeto democrático construído no PMDB, depois no PSDB, etc. De fato, eram dois grandes projetos, sendo que um era mais liberal-democrático e outro mais democrático-popular. Esses dois projetos foram traídos quando esses mesmos grupos chegaram ao poder. Consequentemente, ficamos sem projeto. Nós devemos pensar no nosso país. Eu não estou falando isso na perspectiva de patriota não, mas sim na perspectiva de cidadão que tem filhos e netos.
Pergunta Blog: Quando o senhor fala de projeto de país, o senhor está falando em algo no patamar das políticas sociais do New Deal, encorajadas pelo presidente Franklin Delano Roosevelt. É correto isso?
Isso. Perfeitamente.
Pergunta Blog: O senhor refere-se a uma ideia ou planejamento que apoie uma política de bem- estar social vasta, que ancore direitos relacionados com a seguridade em múltiplas áreas (saúde, educação, previdência transporte, etc.), de forma definitiva, e para todos os segmentos da população brasileira?
Isso. Não como fazemos aqui, somente na base do improviso ou como um mero “tapa buraco”, como no caso do Bolsa Família, que do mesmo jeito que veio pode ir embora a qualquer momento. A ideia de planejamento sistemático se perdeu no Brasil. Só se fala em orçamento, e em cobrir a questão do déficit.
Pergunta Blog: Em um de seus artigos, você critica as políticas do governo no período de 1990-2002, referentes à seguridade social num sentido mais amplo (saúde, educação, previdência transporte, etc.). Por quê?
Eu diria que critiquei a de 1990 até 2002 e também de 2003 a 2012.
Pergunta Blog: Ok. Mas por agora, vamos nos focalizar no período de 1990 até 2002. Como esse período se comportou em relação à saúde?
Em suma, todos os presidentes durante esse período praticamente sabotaram as políticas sociais que foram concebidas pela constituição. Prevalecia a ideia de que gasto social não deveria ser uma questão de prioridade dentro do governo e que, o orçamento fiscal deveria ser dedicado a investimentos e não à questão dos gastos sociais. De fato, o que nós vamos observar é que neste período são várias as iniciativas que contrariam a proposta da construção do SUS, tal como foi pensado pela reforma sanitária brasileira. Trabalhos e estudos realizados pelo economista Eduardo Fagnani, da UNICAMP, constatam muitas destas observações. O período pode ser dividido em três fases:
1. Em um primeiro momento, no governo Collor, foi desenvolvido um conjunto de ações, sobretudo, no chamado programa de agentes comunitários de saúde, que não tinha nada a ver com a possibilidade de você ter um programa de saúde universal, como era a proposta do SUS. Portanto, o governo Collor descentralizou as ações de saúde, através da chamada municipalização, de uma forma pouco planejada (com um impulso voluntarista muito grande, quando os municípios brasileiros são diversos). A maior parte dos municípios brasileiros tem menos de 20.000 habitantes. Então, nesse governo você tem uma política de descentralização desde a cidade de São Paulo (uma megacidade), até um município com 5000 habitantes, sem uma diferenciação das características de intervenção. Assim sendo, foi uma política um tanto quanto desastrada. Inclusive, havia algumas interpretações na época que consideravam essa política uma estratégia de desresponsabilização do Governo Federal em relação à questão da saúde. E quando examinamos mais de perto as propostas do Banco Mundial em termos de descentralização e o que o governo começou a fazer, concluímos que as agendas dos dois eram muito parecidas. De fato, foi uma questão contraditória, porque muitos dos militantes das propostas de reformas defendiam também a descentralização, mas não necessariamente uma descentralização pela via da municipalização. Ainda no governo do Itamar se tentou fazer a desconstitucionalização do direito à saúde. Portanto, foi uma luta muito grande para evitar que tirasse da constituição a concepção de saúde como um direito de todos e um dever do Estado. O objetivo era minar o conceito dentro do documento em troca de uma lei ordinária, ou seja, uma lei comum. Isso ocorria na passagem do governo Itamar ao governo FHC.
2. No governo FHC, a reforma do Estado que ele propunha era uma reforma que tirava a responsabilidade do setor público com o SUS. Hoje em dia, até o próprio Bresser Pereira faz restrições às reformas de que ele mesmo foi um dos autores. Então, o governo FHC não deu nenhuma prioridade para a questão da saúde. Durante esse período, o ministro Jatene, médico renomado, que foi convidado a ser o ministro da Saúde, construiu a proposta da CPMF questionada por FHC e pelo próprio Malan. Portanto, houve uma iniciativa de um ministro contra o próprio Presidente da República e o ministro da Fazenda. No entanto, o ministro Jatene lutou em vão para poder obter recursos suficientes para administrar. Mesmo assim, conseguiu ampliar o programa de saúde da família, mas encontrou outras dificuldades e acabou deixando o cargo.
3. Já na administração seguinte, do José Serra, um ministro mais forte, ele conseguiu maiores recursos com a Emenda Constitucional 29, e consequentemente, conseguiu avançar com um conjunto de iniciativas no final do governo FHC. Por exemplo, a própria ANVISA foi criada na gestão do Serra. Também a ampliação do PSF aconteceu durante sua gestão, na qual se encontravam menos de 2.000 equipes, e que ele deixou com quase 18.000 de saúde da família. Portanto, no final do governo FHC, observamos algumas ações específicas com certo desdobramento. No entanto, nada perto de um planejamento maior, avançando o conceito de cidadania em relação ao que foi determinado pela nossa constituição. Isso não foi priorizado durante o período de 1990 até 2002. É por isso que se criava uma expectativa muito grande de que o governo Lula pudesse finalmente priorizar o setor da saúde.
Pergunta Blog: Existe alguma diferença significativa em relação às políticas sociais (especificamente na área da saúde) dos governos Lula e Dilma, quando comparadas com as de FHC? Os governos do Lula e da Dilma fizeram mais pela saúde do que os governos anteriores?
Sinceramente não. A administração do Lula deu continuidade, e isso pode até ser considerado um mérito, pois muitos governos tentam interromper iniciativas anteriores. A gestão de Lula teve algumas iniciativas distintas, como, por exemplo, o próprio SAMU 192. No entanto, esse programa já vinha sendo negociado pelo governo FHC através do José Serra. O que a administração seguinte fez foi implantar o projeto, mas as negociações já estavam sendo feitas antes. O programa chamado Brasil Sorridente, que envolve toda a parte de odontologia de saúde bucal, também avançou no governo Lula, especialmente na parte das especialidades odontológicas. Porém, mais uma vez o governo FHC havia iniciado a inclusão da saúde bucal no programa de atenção básica da saúde da família. Os elementos fundamentais de tal programa já tinham sido iniciados antes da chegada do governo Lula. Por outro lado, a gestão Lula implantou de uma forma muito mais significativa, os CAPS, mas foi no governo FHC que se aprovou a lei da reforma psiquiátrica. Quando ele veio pela segunda vez em 2006, o programa dele foi apenas o “mais do mesmo”. Todavia, durante a era Lula houve mais continuidades que rupturas ou grandes modificações. Mas, para uma situação tão urgente como a do Brasil, nós merecíamos decisões mais ousadas. O Lula não enfrentou a questão do financiamento da saúde. Ele surfou na Emenda Constitucional 29 e foi empurrando com a barriga até 2007, imaginando que iria conseguir mais tempo com a renovação da CPMF. Até que ele foi derrotado em dezembro de 2007, com a CPMF, e praticamente não teve como avançar em relação à saúde no Brasil. Este é um ponto que eu acredito que seja central. Apesar de deputados e senadores do PT terem enfatizado a necessidade de garantir que 10% da receita da união fosse para a saúde, inclusive com projetos para regulamentar a Emenda Constitucional 29, vinha a contrapartida do Palácio do Planalto para isso não ser aprovado. Como pode isso acontecer com um projeto do partido de sustentação do próprio governo? Portanto, essa foi uma das grandes dívidas do governo Lula, assim como do governo Dilma, já que durante o mandato da presidente também saiu do Planalto uma ordem para que os deputados não aceitassem a emenda que garantiria 10% da receita bruta da união para a saúde. Assim sendo, a questão central do financiamento não foi resolvida nem pelo FHC, apesar de algumas iniciativas, nem pelos governos Lula e Dilma.
Pergunta Blog: Você afirmou que nenhum governo nos últimos 25 anos, nem o da Dilma nem o do Lula, incorporou a reforma sanitária brasileira como projeto prioritário, nem demonstrou um compromisso efetivo com o SUS, nos termos estabelecidos pela constituição de 1988. Poderia esclarecer aos nossos leitores a sua opinião?
Pode escrever que eu assino em baixo. Em nenhum dos governos, desde o Sarney à Dilma, houve compromisso com a reforma sanitária brasileira. Porque tal reforma era um projeto muito mais amplo. Eu tenho um livro sobre isso. No limite, eles implantaram por vias tortuosas o Sistema Único de Saúde, que era apenas um dos aspectos da reforma.
Pergunta Blog: Mas os governos supostamente de esquerda não abraçaram mais esse compromisso com a saúde pública?
Pois, essa sim foi uma grande decepção. No entanto, nenhuma das pessoas mais sensatas esperava que o governo Lula fosse fazer uma revolução nesse país e nem que fosse romper com os compromissos internacionais da nação. Mas esperavam sim que pelo menos o governo dele fizesse aquilo que prometeu durante a campanha, ou que tivesse alguma identidade com as lutas históricas do próprio PT. Isso não ocorreu de jeito nenhum.
Pergunta Blog: Então, em sua opinião, quais as razões que incapacitaram o governo, nos últimos 12 anos, de realmente implantar uma política de planejamento no setor médico que pudesse transformar o SUS nos termos estabelecidos pela constituição de 1988?
Um ministro da saúde é apenas um auxiliar do presidente, como um secretário de saúde é apenas um auxiliar do governador. Nós temos dentro do executivo brasileiro uma espécie de cultura imperial. O presidente, ou o governador, se comportam em alguns momentos como pequenos imperadores, e até mesmo os prefeitos podem ter essa atitude. Então, a possibilidade de um ministro, digamos assim, influir em determinadas decisões do presidente, é uma situação muito rara. Tem que ser um ministro muito especial para conseguir fazer isso. E, geralmente, quem consegue são os ministros da área da economia. Mesmo os ministros que tinham sua história vinculada à reforma sanitária ou à defesa do SUS, não tiveram condições dentro do governo para fazer a cabeça do presidente ou para influenciar a política da saúde com uma questão mais ampla.