O SUS na mira da medicina privada: reforma ou descaracterização?
Artigo de Leila Salim publicado originalmente na EPSJV/Fiocruz
Investidas do setor privado ameaçam princípios do Sistema Único de Saúde, enquanto pandemia redefine as disputas e o sentido de sua defesa
“Temos gratidão por todos que integram esse gigante chamado SUS. Sem ele, não teria nada disso”. “É isso: viva o SUS”. O diálogo, ao contrário do que se poderia imaginar, não ocorreu em alguma plenária de profissionais de saúde ou uma reunião dos militantes que historicamente defendem os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Na bancada do Jornal Nacional, da Rede Globo, os dois âncoras do principal telejornal do país encerravam assim a cobertura das vacinações contra a Covid-19 no Brasil no último mês de junho. Para quem, durante anos, acompanhou uma cobertura da mídia comercial brasileira sobre o SUS que enfatizava grandes filas e dificuldades de acesso aos serviços de saúde, pode parecer curioso. Mas, como lembra Alcides Miranda, médico e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), “tinha uma pandemia no meio do caminho”.
Para Miranda, a crise sanitária abriu um novo capítulo das disputas sobre as políticas públicas de saúde e sua efetivação, marcado principalmente pelo aumento da percepção positiva da população sobre o SUS. “Uma política pública se legitima socialmente se tiver valor de uso. O SUS, no atual contexto, é mais legitimado e mais apropriado publicamente. Ao longo das últimas décadas, o sistema tem acumulado um valor importante, mas a imagem dominante do ponto de vista midiático ainda era a do SUS problemático, da fila, da falta de recursos”, analisa, acrescentando que, com a pandemia, “de forma dramática e mesmo trágica”, a importância da existência de um sistema universal tornou-se mais evidente. “As pessoas se vacinam e saem dizendo ‘Viva o SUS’. O diferencial que é a existência de um sistema universal no Brasil precisa ser disputado junto à população e, agora, temos que demonstrar que não é possível privatizar o SUS e torná-lo um acessório do mercado da doença”, diz, referindo-se às investidas do setor privado que, de tempos em tempos, propõem mudanças estruturais no sistema. Por isso, o professor destaca que os sentidos da ‘defesa’ e o reconhecimento da importância do SUS podem ser bastante diversos – e, até mesmo, contraditórios.
Essa disputa se torna mais profunda e complexa se ampliarmos o olhar em direção à organização do mercado privado em saúde no país. É o que explica José Sestelo, pesquisador do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPDES/UFRJ). Ele chama atenção para o fato de que, mesmo possuindo um sistema universal, o Brasil tem o segundo maior mercado de planos de saúde privados do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. E alerta: o segmento é forte, organizado e tem interesses que, nas últimas duas décadas, influenciam crescentemente os rumos das políticas de saúde brasileiras. “Não restam dúvidas de que a existência do SUS e o seu desenvolvimento ao longo dos últimos anos são um fator histórico com enorme significado político, econômico e sanitário. Mas também é preciso que a gente veja em que medida o potencial desse projeto está obstruído e em que direção estamos indo”, diz.
Reforma: para que e para quem?
Não é de hoje: desde que o SUS foi criado, em 1988, e regulamentado pela lei orgânica da saúde, em 1990, as propostas de mudanças, reestruturação e redefinições legais rondam os debates sobre as políticas de saúde. Enquanto o mercado privado se expande – com os investimentos privados em saúde superando os públicos, assevera Sestelo –, sazonalmente iniciativas do Congresso Nacional ou do poder executivo apontam a necessidade de “reformar” o SUS. Em maio, o atual ministro da saúde, Marcelo Queiroga, participou de um evento na sede de Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) onde afirmou que o SUS precisava ser reformado e fortalecido “sobretudo na atenção primária”, ao mesmo tempo em que defendeu o sistema como “um patrimônio de todos os brasileiros”.
Um mês antes, em entrevista ao programa ‘Sem Censura’, da TV Brasil, o ministro já havia pontuado a necessidade de “reformular o sistema de saúde como um todo”. Logo depois, Queiroga reuniu-se com o presidente do conselho de administração da Rede D´Or, Jorge Moll Filho, para “tratar da reforma do sistema de saúde do Brasil”, como registrado em post de seu perfil oficial na rede social Instagram. Ainda entre as iniciativas mais recentes, está a proposta de criação de uma Política Nacional de Saúde Suplementar para o Enfrentamento da Pandemia da Covid-19 (PNSS), colocada sob consulta pública pelo ministério entre maio e junho na plataforma digital Participa + Brasil. “Uma política transversal, integrada e intersetorial visando à atuação conjunta entre o setor público e o privado na saúde”, segundo o documento que apresenta a iniciativa.
Apesar de pouco concretas, as últimas movimentações acenderam alertas entre sanitaristas, pesquisadores e militantes pelo direito à saúde. Chama atenção, por exemplo, a ênfase dada à atenção primária no discurso de Queiroga na Fiesp. Matheus Falcão, integrante do Núcleo de Pesquisa em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP) e assessor jurídico do Programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), observa que raramente as propostas defendidas pelo setor privado e seus representantes apontam para o ‘fim’ do SUS: “O projeto dessas empresas não passa pela extinção do sistema. O maior interesse das operadoras de planos de saúde, que são um dos segmentos defensores de mudanças, é transformar o sistema público em um ‘resseguro’, que entraria quando o sistema privado não conseguisse cobrir alguma necessidade de saúde. Seria o caso de tratamentos de preços mais elevados, de maior complexidade, que ficariam sob responsabilidade do Estado”, explica.
Ana Carolina Navarrete, que também atua no Idec e coordena o programa de saúde da instituição, completa: “O interesse é que o SUS assuma o alto custo e elas, por sua vez, fiquem com o que chamam de ‘atenção primária’, mas que é muito diferente daquilo que o SUS faz nesse sentido”, diz, ressaltando que esse mercado não tem experiência no monitoramento das necessidades de saúde e tampouco capacidade para formular políticas de atenção primária como o sistema público. “O mercado privado parece não saber a que está se propondo. O que eles sabem fazer é previsão de risco [calcular as possibilidades de um indivíduo ou grupo precisarem acessar determinados serviços de saúde]. Seria como se estivéssemos contratando um atuário para fazer políticas de saúde. Os bancos de informação que essas operadoras possuem são fragmentados, baseados, no máximo, em seus usuários, diferentemente do SUS, que pode sistematizar grandes dados capazes de orientar quais são as necessidades de saúde daquela população. Como se faz atenção primária sem fazer monitoramento das necessidades de saúde?”, questiona.
Como se sabe, a Constituição de 1988 definiu a saúde como direito de todos e dever do Estado, ao mesmo tempo em que permitiu a participação da iniciativa privada nas ações e serviços de saúde de forma complementar ao SUS e seguindo os seus princípios. Os serviços prestados pelos planos e seguros de saúde são parte dessa atuação da iniciativa privada no setor, mas se inserem em um segmento específico – o da saúde suplementar – cuja atuação foi regulamentada em 1998, pela lei 9.656. Navarrete lembra que as garantias previstas na lei são baseadas na Constituição: ao autorizar a iniciativa privada a explorar economicamente as ações e serviços de saúde, a carta magna reafirma que esses são objetos de relevância pública e, por isso, estabelece que as ações não podem ter como objetivo somente o lucro, precisando também levar em conta a distribuição dos serviços de saúde à população. “A lei 9.656 teve dois grandes méritos: estabeleceu parâmetros mínimos para as empresas funcionarem no mercado, o que não existia, e evitou assim as quebradeiras constantes de empresas que não tinham a estrutura necessária para atuar; e, além disso, criou um parâmetro mínimo de cobertura, o que foi muito importante”, explica. E completa: “Se não há regulação, é muito fácil que se façam contratos vazios de tal maneira que o usuário nunca consiga acessar o plano quando precise. São esquemas de fraudes. A lei impediu isso, ao estabelecer cláusulas mínimas de cobertura no contrato, sendo a principal delas a que obriga a cobrir todas as condições de saúde previstas na classificação internacional de doenças”.
Segundo Navarrete, esse ‘segundo mérito’ da lei 9.656 é precisamente o que impede que os planos privados utilizem o SUS como um acessório: “Quando se permite a existência de planos com coberturas muito limitadas e muito reduzidas, se coloca o SUS a serviço da rede privada, como resseguro para ações que os planos não conseguem ou não têm interesse de fazer. Um caso clássico foi o dos movimentos de pessoas vivendo com HIV e Aids, que se articularam nos anos 1990 para a regulação dos planos. Não existia previsão de cobertura para HIV/Aids, assim como para alguns tipos de câncer e outras doenças. Com a lei, isso foi descartado”, diz. Ela conclui que aí está uma das principais bases das movimentações do setor privado do fim dos anos 1990 até os dias de hoje: “O mercado nunca aceitou bem essa regulação, que foi entendida como uma derrota. Desde então, a cada dois anos mais ou menos surgem iniciativas que buscam principalmente desfigurar esse marco mínimo estabelecido pela lei 9.656”, sintetiza.
Uma colcha de retalhos e cifrões
David Harvey, pesquisador da dinâmica urbana no capitalismo contemporâneo, costuma dizer que, se “todos gostam do direito à cidade”, também “as empreiteiras, os bilionários e seus representantes políticos” estão nesse bojo. O professor chama a atenção, assim, para o movimento pelo qual uma mesma bandeira política pode ser apropriada por diferentes segmentos sociais com interesses distintos. Com as disputas que rodeiam a política de saúde no Brasil não é diferente. Entre muitas idas e vindas, várias propostas de reconfiguração do SUS reivindicam o ‘fortalecimento’ e mesmo a ‘defesa’ do sistema, mas, como chamam atenção os pesquisadores ouvidos pela Poli, podem atacar a política universal exatamente naquilo que a diferencia e a qualifica. “Não vejo, hoje no Brasil, ninguém falar que quer acabar com o SUS. O que se faz é querer ajustar o SUS aos seus interesses. Fala-se muito em ‘integração’ entre os segmentos público e privado, mas sempre com o viés de favorecer o interesse particular das empresas”, pontua José Sestelo. Um exemplo foi o decreto 10.530, de 2020, que autorizava o repasse das unidades básicas de saúde e da Estratégia de Saúde da Família para a iniciativa privada através de sua inclusão no Programa de Parceria de Investimentos. Essa medida foi derrotada pela pressão popular, mas outras foram adiante: é o caso da Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária em Saúde (Adaps), criada também em 2020 via decreto, que, segundo Matheus Falcão, agora começa a se desenhar e caminhar no sentido de fortalecer empresas privadas de saúde para a venda de seus serviços em ‘atenção primária’ ao SUS.
Ainda no ano passado, o então presidente da câmara Rodrigo Maia anunciou que conduziria uma reforma do SUS como prioridade do fim de seu mandato à frente da casa legislativa. Após reuniões a portas fechadas com empresários, Maia falou em “modernização” e “desburocratização” do sistema, orientações que seriam fruto de análises feitas pelo setor privado sobre a política de saúde. A proposta também não vingou, mas expressa o interesse de importantes setores na agenda da política brasileira. Agora, as atenções se voltam para a PNSS: depois de encerrada a consulta pública sobre a proposta, ela foi encaminhada para discussão no Conselho Nacional de Saúde Suplementar (Consu) e, depois, irá para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Matheus Falcão identifica um primeiro estranhamento: “A política nacional está sendo proposta em termos bastante genéricos, e isso dificulta um entendimento do que ela pretende colocar em prática”, diz.
Para Ana Carolina Navarrete, as movimentações recentes parecem indicar que, mais uma vez, o mercado dos planos de saúde voltou a pressionar por mudanças na lei 9.656. “Considerando as visitas e reuniões com o setor privado feitas pelo ministro Queiroga e a apresentação da PNSS, parece estar claro que o mercado voltou a tensionar pela descaracterização da 9.656, com uma nova tentativa de desregulamentação”, analisa, destacando que o Idec se posicionou contrariamente à política: “Não fica claro se a proposta é uma política específica para o enfrentamento à Covid-19 ou mais geral para a saúde suplementar. O texto mistura muitas coisas, objetivos de longo com os de médio e curto prazo e não define seu propósito. Quando temos algo tão amorfo assim, há o risco muito grande de ser interpretado da forma mais favorável às empresas”.
Navarrete pontua, também, que o mercado dos planos de saúde falhou de diversas formas no enfrentamento à pandemia e que, por isso, preocupam os trechos da PNSS que indicam seu protagonismo na elaboração de respostas à crise sanitária: “Esse setor sequer adotou medidas para evitar a inadimplência, reduzir preços ou renegociar contratos – algo que está se discutindo em todos os mercados, da aviação à construção civil. O mercado de planos está ocupando uma posição privilegiadíssima. Economizou muito em 2020, lucrou e não quer repassar esses ganhos para o consumidor, querendo manter seus preços elevados e reajustar preços. Preocupa que se aposte nesse segmento como protagonista do enfrentamento à pandemia”, critica. Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não respondeu às questões enviadas até o fechamento desta edição.
Essa intricada colcha de retalhos e cifrões é composta ainda por um projeto de lei, o 7.419/06, que em maio voltou à pauta da Câmara dos Deputados. No fim de junho, foi constituída a comissão especial que irá analisá-lo. Criado em 2006 com o objetivo de alterar a lei 9.656, o projeto que agora volta à cena ganhou destaque e fez muito barulho em 2017, época em que Ricardo Barros era ministro da saúde do governo de Michel Temer.
Rogério Marinho (PSDB-RN), relator do PL, propôs naquele ano um substitutivo que apensava ao texto outros 248 projetos destinados a mudar a regulação dos planos de saúde. As modificações apresentadas – sobretudo a que permitia reajustes de mais de 100% no valor das mensalidades quando o beneficiário completasse 59 anos – foram muito criticadas por movimentos pelo direito à saúde, entidades como o Idec e, por motivos diferentes, pelas próprias operadoras de planos de saúde. A repercussão negativa inviabilizou sua aprovação naquele ano. Ainda se tentou uma reconfiguração do texto em 2018, com mudanças nos pontos mais criticados, mas a proposta não foi adiante. Até agora. “O PL volta agora ao congresso, o que nos preocupa bastante”, conta Ana Carolina Navarrete, que reforça que o projeto, em essência, materializa a desconfiguração da lei 9.656: “Temos muito receio que essa discussão seja feita em um momento de crise sanitária e crise econômica sem precedentes, o que dificulta a capacidade de resistência da defesa do consumidor e da sociedade civil”, diz.
Na esteira desse projeto, uma outra iniciativa que pretendia reformar a lei dos planos de saúde surgiu em 2019. Batizada como ‘Mundo Novo’, a proposta ficou conhecida como ‘abominável mundo velho’ entre defensores do SUS. Dessa vez, ela não chegou a ser apresentada no Congresso Nacional: vazou na imprensa antes e, dada a repercussão negativa, também saiu de cena. No entanto, na avaliação dos pesquisadores ouvidos pela Poli, os 89 artigos do projeto ajudam a desvendar por onde passam os principais interesses do setor privado, que voltam ao debate embutidos em outros projetos. É o caso de um dos pontos mais criticados no Mundo Novo: o enfraquecimento da Agência Nacional de Saúde Suplementar e a transferência de muitas de suas atribuições para o Conselho de Saúde Suplementar, discussão que é retomada, agora, no debate sobre a PNSS. Em termos gerais, o Mundo Novo facilitava a aplicação de reajustes por faixa etária pelas operadoras e transferia ainda da ANS para o Consu a prerrogativa de definir quais procedimentos deveriam ser obrigatoriamente oferecidos pelos planos. “De novo, o que se propunha era a fragmentação do cuidado, deixando o alto custo para o SUS”, resume Navarrete.
Matheus Falcão lembra, no entanto, que a compreensão dessas investidas seria incompleta se não levasse em conta duas outras tentativas que, de tempos em tempos, rondam os debates sobre as políticas de saúde. Uma é a proposta de concessão de vouchers para os usuários dos serviços, que ganhou destaque especialmente nas eleições presidenciais de 2018 como uma espécie de ‘marca’ da política econômica de Paulo Guedes. Outra, mais antiga, paira sobre o debate internacional desde a década passada: a cobertura universal em saúde. “A ideia dos vouchers para saúde, ou seja, o Estado fornecer esses ‘passes’ para as pessoas utilizarem diretamente na iniciativa privada, reapareceu recentemente em uma reunião do Consu. Ela tem pouquíssima chance de produzir qualquer resultado positivo, mas mesmo assim reaparece de tempos em tempos”, explica Falcão.
Já a proposta da cobertura universal, que no Brasil começou a ganhar força no governo de Dilma Rousseff, se baseia em formulações defendidas pelo Banco Mundial e mesmo pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Ela se contrapõe à nossa ideia de um sistema de acesso universal à saúde”, explica o pesquisador do Idec. Que completa: “A ideia seria definir um pacote mínimo de serviços e produtos em saúde focado na população mais pobre. Seria um sistema público voltado para essa população, que teria acesso a esse pacote mínimo, enquanto o resto do sistema, principalmente privado, ficaria restrito aos mais ricos. Isso contraria a ideia do SUS, até porque o sistema não é composto apenas pelos serviços de saúde. Ele é também formulação de políticas de saúde pública, de imunização – como estamos vendo agora – e muitas outras coisas”.
Empresariado complexo e organizado
Parte importante desse jogo são as organizações, institutos e movimentos que reúnem representantes da iniciativa privada e, como destaca José Sestelo, são agentes decisivos para os rumos das políticas de saúde no Brasil. Um exemplo é a Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp), que desde 2016 aposta na tese da ‘integração’ entre setores público e privado e defende uma ‘reforma’ do SUS que possa incluir o empresariado também na formulação e planejamento das políticas de saúde. A base das propostas pode ser localizada na publicação, dois anos antes, do chamado ‘Livro Branco da Anahp’, que foi lançado na sede da Fiesp e buscou apresentar as propostas do setor para os candidatos às eleições presidenciais de 2014. Ali se desenhava uma estratégia que só viria a se intensificar nos anos seguintes: a atuação dessas entidades como think tanks das políticas de saúde, ou seja, grupos privados que se dedicam a formular e intervir nos rumos das políticas de suas áreas de atuação, sobretudo apresentando ‘soluções inovadoras’ sob a forma de manuais.
Também em 2014, surgiu sob a forma de ‘movimento’ o Coalizão Saúde, reunindo representantes de empresas como Johnson & Johnson, Qualicorp e Unimed Brasil, entidades como a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) e também a Confederação Nacional de Saúde (CNS). No ano seguinte, o ‘movimento’ virou Instituto e lançou o documento ‘Proposta para o sistema de saúde brasileiro’, baseado na mesma premissa de ‘integração entre público e privado’ e na garantia de participação do mercado na definição, planejamento e execução das políticas de saúde. No mesmo lastro, surge pouco antes das eleições de 2016 o Colégio Brasileiro de Executivos da Saúde (CBEXs), que buscou pautar o pleito com propostas do setor privado.
Engana-se, no entanto, quem pensa que o empresariado na saúde pode ser entendido como um só bloco, com interesses idênticos e livres de contradições e disputas. É o que explica Matheus Falcão, chamando atenção, por exemplo, para os interesses distintos entre operadoras de planos de saúde e um outro tipo de empresas, as administradoras de benefícios, que também se expressam nas pressões para mudanças na regulação do setor. “Para entender o que são as administradoras de benefícios, é importante saber que há uma lacuna na regulação do mercado de planos de saúde. Esse mercado é dividido de uma forma bastante geral entre planos individuais (aqueles que o consumidor contrata diretamente com a empresa), e os planos coletivos (aqueles contratados por empregadores, sindicatos ou associações para seus trabalhadores). Os planos coletivos, que são mais de 80% desse mercado, não têm o seu reajuste regulado pela ANS, que só regula os individuais”, diz. “As administradoras de benefícios surgem como entidades que ficam entre a pessoa jurídica que contratou o plano de saúde coletivo e a operadora. Elas negociam o reajuste representando, por exemplo, uma empresa que contratou um plano de saúde para os seus funcionários. Além de realizarem outras funções administrativas associadas a planos de saúde, funcionam às vezes até como corretoras de planos. Se nós tivéssemos uma regulação de reajustes como acontece nos individuais, nem seria necessário o desempenho dessa função específica das administradoras de benefício”, completa.
No mesmo sentido, José Sestelo insiste que é preciso olhar mais amplamente para a configuração e expansão do setor privado na saúde para entender a magnitude do desafio colocado. “Não é um destino fatalístico. As coisas estão em aberto e podem ser transformadas. Mas não há dúvidas de que estamos indo em uma direção muito ruim, de piora do nosso padrão de distribuição de saúde e de regulação da relação público-privado”, pontua. O pesquisador alerta também para o fato de que uma ‘linha do tempo’ sobre a privatização e investidas do setor sobre a saúde pública não pode se reduzir aos últimos cinco anos, quando as movimentações se intensificaram: “É preciso observar que a partir dos anos 2000 há uma tendência de aumentos de gastos privados em saúde acima dos gastos públicos. Houve aumento nos gastos públicos, a questão é que o setor privado correu por fora, aumentando muito mais”.
Para exemplificar, Sestelo destaca que, durante a pandemia, as operadoras de planos de saúde observaram aumento significativo em seus lucros. Segundo dados da ANS, o lucro líquido dessas empresas aumentou 49,5% em 2020, o que levanta, para ele, uma pergunta de caráter ético: “Eles tiveram aumento de ganhos no momento em que o país está vivendo uma crise sanitária e econômica, em que as pessoas estão perdendo renda, emprego, capacidade de pagamento e têm mais necessidades de assistência. As empresas, que muito pouco ou quase nada contribuíram para a solução da questão sanitária, tiveram seus ganhos aumentados. A pergunta é: por que estão ganhando tanto se estão contribuindo tão pouco?”, questiona. E lembra: “Essas empresas são beneficiárias de renúncia fiscal, de uma série de políticas públicas que subsidiam direta ou indiretamente tanto a oferta quanto a demanda, e a justificativa para esses benefícios é o fato de que elas lidam com um objeto que é de relevância pública, que é a saúde”.
A crítica é compartilhada por Ana Carolina Navarrete. Ela considera que a pandemia mostrou que o único diferencial do setor privado no enfrentamento à Covid-19 foi a disponibilidade de mais recursos e leitos para tratamentos dos pacientes: “Somos o único país com sistema universal em que o investimento privado é maior que o público”, atesta, exemplificando que o desequilíbrio de recursos se expressa no fato de que a iniciativa privada tem, hoje, 60% dos leitos de internação no Brasil: “Atualmente, um quarto da população é atendida pelos planos e pode usar 60% dos recursos. Os outros três quartos usam 40% dos recursos”, compara.
Matheus Falcão acrescenta que esse desequilíbrio se aprofunda diante do desfinanciamento do setor público agravado pela aprovação da Emenda Constitucional 95. “Com a EC 95, o país perdeu muitos recursos para a saúde. Junto a isso, existe uma proposta, reiteradamente levantada pelo Ministério da Economia, de retirar da Constituição os pisos para saúde, que são o mínimo que estados e municípios devem investir no setor. Essa dinâmica de apostar mais no mercado privado e retirar do SUS também passa por desfinanciar o sistema, que é o que vemos em propostas como essas”, opina.
Mudanças em defesa do SUS
Do lado dos que defendem o SUS e seus princípios, no entanto, também há propostas de mudanças. Em sentido oposto às ‘reformas’ defendidas pelo empresariado, elas buscariam proteger o sistema de inflexões conjunturais que podem significar a destruição de seus princípios. É o que propõe Alcides Miranda, que nos últimos anos tem sido uma das principais vozes a levantar essa necessidade de mudanças estruturais. “No campo de quem defende o SUS, precisamos ser mais claros na definição de algumas estratégias e temos que compensar algumas deficiências nossas ao longo dessas últimas décadas”, diz.
O professor de saúde coletiva, que já atuou na gestão do SUS e nas instâncias de controle social, chama atenção para lacunas importantes, começando pelo nó do financiamento: “O SUS passou um longo período de subfinanciamento e após a aprovação da EC 95 passou a ser desfinanciado. Precisamos estabelecer uma política clara de garantia de financiamento tripartite para o SUS”, aponta, avaliando que o arranjo organizativo implementado até hoje não está focado nas necessidades sociais de saúde, e sim limitado pelas ofertas orçamentárias insuficientes: “Assim, não há abertura para inovação e investimentos. Na prática, se consulta o que há de oferta orçamentária, sempre reduzida, e tudo se organiza a partir dessa disponibilidade. Deveria ser o inverso: a lógica sistêmica do SUS tem que estar pautada numa definição clara das necessidades de saúde, estabelecer prioridades dentre essas necessidades e, a partir daí, definir todo o arranjo do sistema”, defende.
Miranda aponta, ainda, limitações no pacto federativo brasileiro que deixam em aberto os termos das relações entre os municípios, os estados e a União para a efetivação das políticas públicas. Para superar isso, tem defendido, junto a outros pesquisadores e militantes, a criação de uma institucionalidade pública que possa consolidar o SUS: “Precisamos de uma institucionalidade que esteja sob a égide do direito público e avance na regulamentação das relações intergovernamentais. O pacto federativo tem um problema: a Constituição define princípios, mas não regulamenta essas relações, criando um ‘limbo’. No caso do SUS, nós inovamos e criamos comissões para reunir os gestores, que funcionaram sem marco legal por décadas mas nos ajudaram a definir quais seriam as competências de municípios e estados na efetivação da política de saúde. No entanto, isso não é o suficiente”, diz.
O professor exemplifica com as dificuldades encontradas para viabilizar arranjos regionais, que terminam por fragmentar o sistema: “Mais da metade dos municípios brasileiros têm menos de 20 mil habitantes. É impossível que os municípios resolvam, sozinhos, todos os problemas de saúde da sua população nos seus próprios territórios. Há casos e situações em municípios pequenos que precisam ser encaminhados para vizinhos que dispõem de estruturas mais complexas. É por isso que precisamos de um arranjo para viabilizar essa relação intergovernamental, que seria a efetivação da base regional para o SUS. Ainda não se ousou avançar no processo de regionalização do cuidado, das políticas de saúde e mesmo das políticas públicas em geral. Sem isso, ficamos presos a uma fragmentação”, finaliza.