Para analistas, investimentos na atenção básica foram principal avanço da saúde
Por Cida de Oliveira e Sarah Fernandes
Localizado na fronteira com o Peru, Mâncio Lima, no Acre, é o mais ocidental dos municípios brasileiros e também o mais distante, em linha reta, de Brasília: 2.870 quilômetros. Da capital, Rio Branco, está a 698 quilômetros. Sua população, estimada em 16.795 pessoas, contava com apenas quatro médicos até dezembro, quando chegou ali o primeiro cubano enviado pelo programa federal Mais Médicos. Depois vieram outros quatro profissionais. Em menos de um ano, com aprovação da população, o município dobrou sua capacidade de atendimento básico à saúde.
Presente em 3.785 municípios brasileiros e em 34 distritos indígenas, o programa beneficia atualmente 50 milhões de brasileiros que não tinham acesso a uma consulta, seja em localidades distantes como Mâncio Lima ou nas periferias das grandes cidades.
Ao todo são 14.462 médicos brasileiros e estrangeiros, sendo que 70% deles atuam nos municípios que apresentam mais de 20% da população em situação de extrema pobreza, Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo ou muito baixo, além dos municípios localizados no médio e alto Araguaia, no Vale do Ribeira (SP), Vale do Jequitinhonha (MG), Vale do Mucuri (MG) e os distritos indígenas.
O atendimento a toda essa demanda só foi possível após a chegada dos 11.429 médicos cubanos, já que os 1.846 profissionais brasileiros que atenderam ao chamado do Ministério da Saúde e que tinham prioridade na escolha optaram por trabalhar em capitais e cidades médias, em especial na costa litorânea e em unidades de saúde de bairros centralizados. O mesmo ocorreu com os 1.187 médicos estrangeiros ou brasileiros com diploma de outros países que aderiram ao programa.
Mesmo antes de ser implementado, o programa passou a enfrentar a resistência do Conselho Federal de Medicina (CFM), da Associação Médica Brasileira (AMB) e da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), entre outras entidades, que foram às ruas principalmente contra os médicos trazidos de Cuba. Com a efetivação da medida, passaram a chantagear o governo ao se retirarem, com seus representantes, de diversos órgãos e fóruns de saúde.
Assim que os médicos do programa começaram a trabalhar, em dezembro, a população logo aprovou. Tanto que em seus programas de governo, os candidatos não consideram a possibilidade de interrompê-lo.
Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra que 87% deles não tiveram dificuldade de compreender o que os médicos cubanos falavam. Apenas 2% relataram problemas de compreensão, sendo que parte das entrevistas foi feita em aldeias indígenas, onde não se fala português. A maioria dos entrevistados (67%) respondeu que os médicos do programa fazem recomendações sobre alimentação e sobre atividades físicas.
Mais Médicos cumpriu 100% da demanda e garantiu pela primeira vez profissionais nos 34 distritos sanitários indígenas do país
Além de levar médicos para quem mais precisa, a estratégia prevê ampliar o número de cursos de medicina. Até agora, o governo federal já selecionou 39 cidades brasileiras para receber os cursos, em 11 estados, que garantirão 2 mil novas vagas. Desde o início do ano tinham sido criadas outras 4.199 vagas. As selecionadas terão a responsabilidade de implementar programas de residência médica, manter a estrutura necessária na rede pública de saúde e fazer as adequações recomendadas para habilitação do novo curso.
A meta é sair dos atuais 374 mil médicos no país e chegar a 600 mil até 2026, o que garantiria a média de 2,7 profissionais por mil habitantes, semelhante à do Reino Unido.
Atualmente, existem 21.674 vagas de graduação em medicina autorizadas no Brasil. Desse total, 11.269 estão no interior e 10.045 em capitais, como parte da política de interiorização do ensino superior adotada pelo governo federal desde a gestão Lula. Até 2012, predominavam vagas nas capitais, que tinham 8.911, enquanto no interior havia 8.772 vagas disponíveis.
O Mais Médicos prevê também a reestruturação das unidades básicas de saúde no país, para garantir melhor atendimento. Os recursos gerais para a atenção básica aumentaram 106% entre 2010 e 2014, segundo o Ministério da Saúde. No primeiro ano, eram R$ 9,7 bilhões destinados ao atendimento primário, valor que saltou para R$ 20 bilhões neste ano, sem contar o aporte dos estados e municípios.
Parte desse investimento foi direcionado para programas que permitiam melhoria da infraestrutura das unidades básicas de saúde. Dos 26.001 postos de saúde que tiveram recursos aprovados para obras de melhorias, pelo menos 13 mil estão em curso e 7.520 foram concluídas.
“Não podemos descartar no governo Dilma a reforma das unidades básicas de saúde e a sua adequação para ofertar medicina, odontologia, assistência social e psicologia. As unidades, muitas vezes, não passavam de puxadinhos, por culpa do próprio sistema, que levou para os municípios uma demanda por ampliar o atendimento, sem a reestruturação das unidades. As prefeituras foram ampliando como dava: alugando casas e superlotando UBSs (Unidades Básicas de Saúde), que eram caixinhas de fósforos”, afirma Antonio Carlos Figueiredo Nardi, presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
“Para o profissional fazer um bom serviço ele precisa de estrutura, que em parte foi equacionada com o programa de requalificação das unidades básicas de saúde e de aquisição de equipamentos”, avalia Nardi.
O sucesso do programa anima prefeitos e gestores de saúde, que sempre tiveram dificuldades para contratar médicos. Ao lado do Conasems, a Frente Nacional de Prefeitos defende que o programa tenha duração de seis anos, o dobro do período inicial, se possível com a continuidade dos mesmos profissionais.
“Temos que começar a ouvir o que o controle social do Brasil grita desde 2003 nas conferências de saúde: nossos estudantes formados nas universidades públicas devem obrigatoriamente prestar serviço nos serviços públicos e devolver para a sociedade o diploma que ela financiou, independente da área”, diz Nardi.
Decisão política ousada, que vai além da presença do médico, dos recursos humanos e passa pela estruturação de investimentos na atenção básica, o Mais Médicos foi a principal ação na área de saúde do governo Dilma Rousseff. E não o único.
Mais Médicos garante profissional até em barco no Acre
O município acreano de Cruzeiro do Sul, a 630 quilômetros de Rio Branco, recebeu 15 profissionais pelo Mais Médicos e conseguiu dobrar as equipes do programa Saúde da Família, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde. O grande êxito, no entanto, foi conseguir um profissional fixo para trabalhar no chamado Barco da Saúde, um hospital flutuante que atende às comunidades ribeirinhas no município.
“A saúde ribeirinha é um grande desafio para nós, mas agora temos um médico constante. Antes eu só conseguia fazer os atendimentos esporadicamente porque eu não conseguia manter os profissionais na unidade”, diz a secretária de Saúde, Lucila Brunetta. “Na cidade, tínhamos muita dificuldade de fazer os médicos cumprirem o horário nas unidades básicas, exatamente pela carência de profissionais. Melhorou muito.”
Além dos médicos
A inclusão no calendário do Sistema Único de Saúde (SUS) das vacinas contra HPV, para todas as meninas de 9 a 13 anos, e contra Hepatite A, para crianças de 1 e 2 anos, também é elogiada. “Nosso programa de imunização é modelo mundial. Está anos luz à frente de outros. Não existe você pensar que do maior ao menor município você consegue vacinar em um dia uma média de 75% da população na faixa etária de abrangência”, diz Nardi, que destaca ainda o incremento nos sistemas de transplantes.
“O Brasil é o maior transplantador do mundo, e isso foi muito incentivado nos últimos quatro anos”, aponta o presidente do Conasems. Ele destaca investimentos nas unidades de pronto-atendimento e na rede de alta complexidade em oncologia, principalmente na região Norte do país, onde não havia centros de oncologia, equipados com serviço de radioterapia.
“Imagine o paciente que fazia quimioterapia três vezes por semana e levava um dia chegar no hospital, um dia fazer o tratamento e outro dia para voltar para casa. Aí, já tinha que vir de novo para a próxima sessão. Temos gargalos, mas não podemos desconsiderar os avanços.”
Dilma é elogiada também por outra medida em que enfrentou as corporações médicas: o veto parcial ao Ato Médico (Lei 12.842) – que regulamenta o exercício da carreira médica no Brasil –, que causou polêmicas por restringir aos médicos prerrogativas que eram compartilhadas por outros profissionais de saúde, como a prescrição e acompanhamento do uso de próteses, calçados ortopédicos, andadores e próteses auditivas, por exemplo.
Transplantes, programa de imunização e tratamento de câncer tiveram destaque no governo Dilma
Em julho do ano passado, além desse dispositivo, a presidenta vetou artigo que dava exclusividade aos médicos na direção e chefia de serviços médicos, que tem sentido mais amplo. Com os vetos, podem ser compartilhados pelos profissionais da área da saúde, além dos médicos, o atendimento a pessoas sob risco de morte iminente; a realização de exames citopatológicos e emissão de seus laudos; a coleta de material biológico para análises laboratoriais e os procedimentos feitos através de orifícios naturais, desde que não comprometam a estrutura celular. A medida foi comemorada por assegurar ações e diretrizes clínicas do SUS e protocolos consagrados em toda a rede de saúde, como disse na época o farmacêutico Ronald Ferreira dos Santos, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar) e coordenador da movimento Saúde + 10.
Uma das vozes contra o avanço dos planos de saúde particulares, em especial nos últimos quatro anos, e da histórica redução de investimentos federais em saúde pública, a médica Ligia Bahia, professora de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), aponta um mérito na gestão Dilma. “Nos últimos quatro anos, a saúde finalmente saiu das páginas policiais. Houve aumento do controle institucional sobre o SUS, que não deu brecha para fraudes e escândalos como a dos vampiros na saúde, dos sanguessugas”, lembra.
Gargalos
Entre os gargalos que persistem, o maior deles é a falta de financiamento do setor e a aprovação do projeto de lei de iniciativa popular do movimento Saúde + 10, que obriga a União a investir 10% das receitas brutas no custeio do SUS. “É um projeto de lei de iniciativa popular para o qual coletamos mais de 2,5 milhões de assinaturas, entregamos na Câmara Federal e que ainda não entrou em tramitação. Esse financiamento podia suprir alguns vazios assistenciais, como o da media complexidade”, avalia o presidente do Conasems, Antonio Carlos Figueiredo Nardi.
De acordo com a Constituição Federal, a responsabilidade pelo financiamento da saúde deve ser compartilhada pelos entes federativos. Estados devem investir. Existem inclusive regras estabelecidas em lei para vinculação de recursos próprios das três esferas de governo. Estados devem aplicar, no mínimo, 12%, municípios, mínimo de 15%, e a União não tem percentual fixo. Deve aplicar o montante do ano anterior corrigido conforme a variação do PIB.
Há ainda normas, critérios e condicionantes para as transferências intergovernamentais de recursos voltados ao custeio do SUS, que são feitas do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais e Municipais, e dos Fundos Estaduais para os Fundos Municipais. Cada estado e município possui um Fundo de Saúde composto por receitas próprias dos governos, ou seja, recursos diretamente arrecadados ou transferidas legalmente de outras esferas de governo (tais como os Fundos de Participação). A estes recursos devem ser acrescidos as transferências específicas do SUS.
Os recursos dos Fundos de Saúde são utilizados para finalidade diversa de custeio e investimentos em ações e serviços públicos de saúde, incluindo o pagamento de prestadores privados contratados e conveniados ao SUS.
De acordo com a pesquisadora e professora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz), Luciana Dias de Lima, o peso relativo da esfera federal no gasto público em saúde decresceu de mais de 70%, no início dos anos 1990, para cerca de 44,7%, em 2010. “Isso se deve ao aumento proporcionalmente maior da participação dos recursos próprios das esferas subnacionais, com destaque para os municípios nos anos 1990 e, mais recentemente, para os estados”, explica.
Segundo Luciana, a redução da participação federal pode ser em parte explicada pelo processo de descentralização e pela definição de regras mais rígidas de vinculação de receitas das esferas subnacionais para a saúde a partir de 2000. “A menor participação do governo federal em termos relativos suscita preocupações quanto à função desempenhada pelo Ministério da Saúde no financiamento setorial. Existem imensas heterogeneidades econômicas e sociais no Brasil, com forte expressão territorial, sendo que o processo de descentralização em saúde evidenciou a desigualdade entre estados e municípios em termos de capacidades institucionais, financeiras e dependência das transferências federais”, destaca.
“Nesse contexto, a esfera federal precisa exercer um papel redistributivo e desenvolver políticas voltadas para a redução das desigualdades subjacentes. A manutenção de direitos de cidadania em nível nacional é uma função característica dos governos centrais em várias federações do mundo que experimentaram processos importantes de descentralização do gasto público em saúde nas últimas décadas”, diz.
Criado há 26 anos, o SUS teve avanços em sua gestão, com experiências inovadoras em vários estados e municípios. No balanço do conjunto de regras instituídas, o Ministério da Saúde continua a ter uma função importante na condução da política nacional de saúde, por meio da indução e regulação de políticas, exercendo seu poder sobre outras esferas de governo, prestadores de serviços e alguns mercados em saúde.
Os municípios ganharam destaque na política de saúde pelo aumento de suas responsabilidades no planejamento, no financiamento, na regulação e na prestação de serviços de saúde no âmbito local. Aos estados, por sua vez, cabe o importante papel de conduzir e coordenar os processos de regionalização em saúde em parceria com os municípios, o que exige uma atuação direcionada dos governos estaduais para consolidação e gestão de redes regionalizadas de atenção à saúde.
Fonte: Rede Brasil Atual