Pensar o Sistema Único de Saúde do século XXI: entrevista com Ligia Bahia
Em sua primeira edição de 2014, a Revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos publicou uma entrevista com Ligia Bahia, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Na entrevista realizada por Marcos Cueto, Jaime Benchimol, Luiz Antonio Teixeira, Roberta C. Cerqueira, Ligia Bahia aborda balanços feitos sobre os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS) e analisa seus avanços, impasses e descaminhos.
Veja a seguir parte da entrevista.
Qual é a sua avaliação sobre os balanços que foram feitos para comemorar os 25 anos do SUS? Há consenso ou você percebeu muitas visões divergentes sobre esse período?
Tivemos muitos balanços. Mas, por incrível que pareça, não houve um debate aprofundado. Virou comemoração, como se o SUS fosse uma espécie de monumento, e não um processo em curso que precisamos debater. O início da avaliação é: houve avanços e impasses. A tentativa mais abrangente de avaliação que conheço está num artigo do Jairnilson [Silva Paim] publicado em Cadernos de Saúde Pública com um conjunto de debates que poderiam ter sido mais aprofundados. Chama a atenção sobre a história, mas não faz uma avaliação política dos 25 anos do SUS. A polêmica epistemológica do Gilberto Hochman, que é historiador, foi a mais importante. Mas o Gilberto não se propõe a ser exatamente um mudancista. Já que a gente americanizou, já que estamos em outra sociedade, é importante que o conflito de interesses fique em cima da mesa, não é? A gente não está num outro mundo? O muro de Berlim não caiu? Eu nem sei como é que muitos de nós estamos vivos. Ontem eu conversava com um amigo do PCB que quer fazer campanha. Falei: “Para com isso. Acabou. Você não entendeu que nós somos uma geração que viu ruir o muro de Berlim.” A gente tem que dar graças a Deus de estar vivo, de não termos dado um tiro na cabeça, nós que acreditávamos que ia ter socialismo etc.
Que nada! Na semana seguinte às manifestações de rua você estava lá na Ensp [Escola Nacional de Saúde Pública] puxando as manifestações… Eu fui às manifestações de rua, mas acho que elas não mudaram a nossa cabeça. Nossa cabeça hoje é muito governamental. Estamos pouco nos lixando para o que está se passando na rua.
Já que você falou do balanço e do texto do Jairnilson… Nesse balanço você faz um comentário ao texto dele bem interessante. Quando você discute o comentário de Jairnilson, que diz que estamos fazendo políticas mais focais e esquecendo a questão do resguardo social. Como você avalia isso?
Temos dois fatos interessantes que podem ser vetores que fundamentam, de alguma maneira, a hipótese que eu vou apresentar. Um deles é que o pessoal da saúde do PT que estava nas prefeituras do PSB deixou seus cargos. Esse é um fato interessante porque nós, do movimento sanitário, sempre propusemos participar de qualquer governo, progressista etc., porque nossa pretensão, nosso éthos ou, enfim, o personagem que inventamos para nós mesmos era um personagem multipartidário. E o fato de pessoas do PT – do movimento sanitário ou que nós julgamos que são do movimento sanitário – saírem das prefeituras e das Secretarias de Saúde após a candidatura do Eduardo Campos (PSB) é inédito. Outro fato inédito é que parlamentares do PT estão claramente contra esse processo de se obter mais recursos para a saúde.
Por quê? Como assim?
Pois é… Esta é uma pergunta que eu também me faço: como assim? Como que, por exemplo, o deputado Rogério Carvalho 3 e o senador Humberto Costa 4 são os relatores do projeto “Saúde Mais Dez” 5 , que obriga a União a investir na saúde pública 10% de sua receita corrente bruta? Claramente estão relatando contra esse projeto de lei de iniciativa popular! Vejam: estou primeiro apresentando os fatos, mas o debate que acho importante sobre o SUS é que, de fato, tem-se com esse sistema duas vertentes, da equidade e da igualdade. A reforma sanitária é construída com base na igualdade, e as políticas sociais do PT, na equidade. Não é à toa que essa vertente da equidade se torna hegemônica. Então, são dois processos: a equidade e a participação popular, que para nós era um elemento essencial da reforma. Refiro-me à participação popular de verdade, democrática, através de conselhos. Não à participação popular instrumental que temos hoje.
Os movimentos populares se engajavam na causa da saúde?
Vou pegar como exemplo a composição da oitava Conferência Nacional de Saúde: grande parte era de representantes da Igreja católica. Mas tinha também um movimento minoritário de bairros e poucas associações sindicais. Havia movimento de bairros em todo o Brasil, mas não há a menor possibilidade de um bairro inteiro só discutir saúde. Então esse movimento era interessante para nós, que tínhamos o conceito ampliado de saúde, aquele que conseguimos inscrever na Constituição: saúde é lazer, habitação, direito ao trabalho. Mas esse movimento popular não resistiu ao neoliberalismo, às ONGs. Quase todas essas lideranças se tornaram diretores de ONGs.
E isso alterou totalmente o quadro?
Sim, porque essas ONGs passaram a ser financiadas pelas instituições internacionais. Ou seja, perdemos a condição de ter um agente social (não gosto da expressão ator social) que não era especializado em saúde. O que nós propusemos eram Conselhos autônomos, e os Conselhos se tornaram governamentais. O que nós queríamos eram Conselhos deliberativos e não fiscalizadores ou apoiadores do governo, como são hoje. Nossa proposta era que houvesse uma tensão permanente entre sociedade, governo e Estado. Vejam que interessante, atualmente todo mundo denomina o Estado de governo. Não há mais nenhuma diferença entre governo e Estado. Hoje o que se tem talvez seja um governo ampliado.
O que dava coerência a esse processo eram os médicos, era o movimento sanitário. Mas esses médicos foram todos absorvidos pelo aparelho… ou já vinham sendo… Não só isso. Naquele momento achava-se que os médicos iam ser assalariados… Rumo à proletarização…
Exatamente. Havia um movimento chamado Reme (Movimento de Renovação Médica), de médicos assalariados, sediado aqui no Rio de Janeiro e que não tinha ninguém de São Paulo. Por que no Rio? Porque aqui tinha muitos hospitais públicos, ou seja, havia mesmo esse processo de assalariamento, tipo: “É assim que é. Nós vamos ter um sistema em que todo mundo vai ser funcionário público.” Esse movimento, Reme, tinha uma certa hegemonia ideológica, programática… Ideológica. Mas, no momento seguinte da Constituição, o que eles conseguiram foi o duplo vínculo para médicos. Então, acabou, arrebentou. A ideia era que os médicos fossem dedicados ao serviço público… Eu era do Partido Comunista, briguei com o pessoal do Partido Comunista do sindicato porque eles diziam que médicos e professores têm direito de ter duplo vínculo. E estamos assim hoje… Médicos e professores, com o sistema que temos, podem ter quinhentos vínculos. Pegando por esse viés… De uns tempos para cá houve a tendência, em todas as instituições públicas, médicas públicas, de formar cooperativas, o que não deixa de ser uma certa privatização dentro da estrutura assistencial pública. Você considera isso um importante fator de erosão da ideia do SUS? Dentro das instituições públicas, valoriza-se cada vez mais a precarização. Alguns autores consideram o SUS uma proposta de iluministas. De verdade, não tínhamos uma base, ou seja, o PCB não tinha uma base operária nos sindicatos de funcionários públicos. O que foi acontecendo? O SUS é irmão do Regime Jurídico Único; havia quinhentos milhões de regimes de trabalho. Pensou-se então: vamos unificar! Mas não houve debate, e o que aconteceu foi um total desastre, porque a unificação dos regimes de trabalho na saúde significa que médicos e enfermeiros ganham igual. Isso não existe em sistema de saúde nenhum do mundo.
Qual o critério para a unificação?
A escolaridade. Quem tem nível superior ganha a mesma coisa. Médicos, enfermeiros, farmacêuticos etc. E isso originou uma monstruosidade. Por quê? Hoje o SUS é muito bom para algumas categorias profissionais e péssimo para médicos.
Pode explicar isso melhor?
Por exemplo: farmacêuticos ganham muito bem e têm valorização social, mas não como médicos. Não fazem vestibular tão difícil; não estudam durante seis anos; não se submetem depois à residência… e vão ter o mesmo salário do médico. Então, para um farmacêutico, o SUS significou importantíssima ascensão social. Para enfermeiros, odontólogos, fisioterapeutas, também, e estão todos no SUS. Ao mesmo tempo, os médicos saíram do SUS porque esse sistema os repele.
Isso é uma das forças que leva a esse processo crescente e generalizado de cooperativização?
Não, isso já havia. As cooperativas médicas são de 1967, surgiram por incentivo do regime militar; é um sistema bem brasileiro, mas nós acreditávamos que o SUS poderia acabar com isso. Só que não só não acabou como ajudou a se modernizar, se reorganizar. E o que temos hoje no país é um sistema que distingue claramente médicos e não médicos. O “Mais Médicos” evidencia isso, porque mostra que médicos não querem trabalhar no sistema público, há um rompimento. Nunca mais se conseguiu conversar com esses médicos. Agora, com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), estamos fazendo um esforço danado de aproximação que não tem sido muito bem-sucedido porque nos havíamos retirado desse debate, paramos de conversar, fomos para o governo, e retomar não é fácil.
E isso significou mudanças na escola de medicina, na educação médica…?
Penso que essas mudanças são cosméticas, mas o pessoal que estuda isso não concorda comigo. Mas sou apenas uma espectadora desse tema.
Você falou “nós”, inicialmente, se referindo ao movimento sanitário, ao Partido Comunista, a você naquelas mobilizações, e recentemente você falou nós Abrasco. Abrasco ainda hoje é o núcleo pensante?
Acredito que procura ser, mas também com muitas dificuldades, porque na realidade existe um processo de renovação muito grande na pesquisa da saúde coletiva e uma renovação… geracional, intelectual. Hoje a preocupação é com o publicável, com a “minha pesquisa”, a “minha inserção”, o “meu projeto”. É ótimo que todos tenham projetos, pesquisas etc., mas há uma nítida fragmentação do campo.
Podemos ampliar essa conversa para Abrasco e Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde], vistos como motores pensantes da reforma sanitária. O que você acha que os inviabiliza de botar a reforma à frente?
Ao nos aproximar de governos que governam pragmaticamente, durante quatro anos etc., nós teríamos rebaixado as imagens e os objetivos da reforma sanitária. Por outro lado, essa aproximação com o governo foi fundamental para que o campo tivesse esse crescimento. Por exemplo, a Fundação Oswaldo Cruz ganhou nos governos democráticos dimensão que não tinha anteriormente. Como foi essa colagem da saúde coletiva no governo? (E repara que é uma colagem interessante, porque alavancou a produção de medicamentos, de vacinas, a pesquisa etc.) Nossa área se beneficiou muito em termos de pesquisa nesses governos democráticos. O principal financiador de pesquisa é o Ministério da Saúde. Como, então, os pesquisadores vão ser contra o Ministério da Saúde? Pode parecer uma armadilha, mas eu acho que essa concepção de armadilha, como se fosse um crime maquiavélico, é pobre.
Você está falando que perdeu a vitalidade e o vigor ideológico, e recentemente houve esse afloramento de insatisfações sociais em que a questão da saúde foi muito enfatizada. Ouço dizerem que isso, em parte, é um subproduto do sucesso do SUS. O crescimento do SUS teria levado à internalização da ideia de que a saúde é direito de todos, o que levou a essa legítima cobrança por mais resultados. Então, tem uma contradição aí; tem uma tensão. Eu queria que você se colocasse em 1987 e em 2013 e comparasse essas duas realidades. Apesar das críticas houve enorme transformação para o bem e para o mal, porque na verdade há duas dinâmicas contraditórias: dinâmica privatizante e o SUS. O SUS virou uma coisa portentosa e ineficiente. Mas, por outro lado, eu não sei se quem olha para trás percebe um enorme progresso. Estou assombrado, por exemplo, com o recente movimento de empresas internacionais comprando planos de saúde, laboratórios, hospitais.
Não acho que tenha um progresso linear e nem acho que o SUS é mais portentoso do que antes. Não concordo com isso. Esse é o meu campo de estudo. Olho muito o sistema pela privatização. Acho que o SUS está cada vez menor. Sobre a diferença entre 1987 e 2013, é que em 1987 pensávamos que o SUS ia dar certo e em 2013 que não dará. Não há dúvida que não dará. Quem disser que o SUS vai dar certo é mentiroso, porque o SUS hoje não tem a menor condição de ser SUS. Não tem financiamento, gestão, utopia, ninguém que acredite nisso. Acabou. Acreditávamos que haveria um sistema público, universal, de qualidade e que seríamos atendidos por esse sistema público. Estávamos lutando em causa própria. Era um “SUS para chamar de meu”. E agora não. Agora é uma conversa da boca para fora. Todo mundo é a favor do SUS, contanto que eu não seja atendido no SUS, que, minha mãe não seja atendida no SUS. Deveria ter uma lei que obrigasse todo ocupante de cargo público, todo dirigente a se tratar no SUS… Sim, mas que nos obrigasse também, nós funcionários públicos, a nos tratar no SUS. Porque quando falamos ocupante de cargo público é como se tivéssemos raivinha dos políticos. Eu quero ser atendida e morrer no SUS, de preferência em casa. Sinceramente. Mas é verdade também que se a gente quiser morrer no SUS a gente vai morrer mais rápido… Não, não vai! Não é a realidade, porque nós somos pessoas diferenciadas. Quando digo “eu quero morrer no SUS”, não é porque eu quero sofrer, é porque eu vou ser atendida diferenciadamente. Eu falo português corretamente. Sou médica, entendeu? Sabe, é o fim da picada! As pessoas não entenderem sequer isso. Um exemplo: o Arouca… Eu quase conversei sobre isso com ele, mas não tinha intimidade suficiente para falar. Se ele morresse no SUS, teria sido diferente, ao menos no plano simbólico. Mas, os médicos que o atenderam e colegas da própria Fundação Oswaldo Cruz nem cogitaram essa hipótese e fariam pressão ao contrário. “Ah, como é que se poderia deixar ele ser maltratado no SUS”. Entendeu?
O que você acha do programa “Mais Médicos”?
Penso que é um programa baseado nesse princípio da equidade. É um programa para pobres e foi, em geral, muito bem aceito assim, até por parcela considerável do movimento sanitário. Mas poderia até ser interessante se houvesse uma tensão em relação à ampliação da rede pública de formação de profissionais de saúde. Mas como a tendência é apoiar e querer ser o primeiro a apoiar, não conseguimos mais transformar uma política residual em ações estruturantes.
Você acha que o “Mais Médicos” desnuda a dificuldade que o SUS teve de absorver esse rompimento entre a profissão médica e o SUS?
É um sintoma. Nenhum médico brasileiro hoje concordaria em trabalhar num SUS universal; ao contrário, o desejo, a perspectiva hoje de quem estuda medicina é não trabalhar no SUS. Não se deseja mais demonstrar “nós temos uma importância social”. Eu achava que ia trabalhar no SUS. Tanto que eu trabalho no SUS. Minha turma inteira trabalha no SUS. Isso não existe mais. Luiz Carlos Prestes foi a nossa formatura. Nós nos formamos em pleno regime militar, e Luiz Carlos Prestes estava presente em nossa formatura.
Os congressos da Abrasco são lotados, vem gente dos mais remotos rincões do Brasil…
Tudo bem, mas praticamente sem médicos. Somos agora um movimento da reforma sanitária sem médicos. Houve uma valorização imensa de psicólogos, farmacêuticos etc. A rede é tocada por eles, que acabam por defender também suas próprias corporações. O que se tem é um condomínio de corporativismos. Cada um no seu quadrado. O Conselho Nacional de Saúde expressa isso claramente. Chegou a ponto de expulsar os médicos do Conselho.
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