Saúde em Debate — Promoção de Saúde

Promoção de Saúde, práxis de autonomia e prevenção da violência

Apresentação

A PROMOÇÃO DE SAÚDE CONSTITUI, INDUBITAVELMENTE, UMA DAS mais promissoras estratégias de produção de saúde nas sociedades atuais, dada a sua potencialidade na abordagem das doenças crônico-degenerativas1-3, das violências e acidentes4,5 e das doenças transmissíveis, entre as quais, especialmente, as doenças emergentes, reemergentes e negligencidadas6. Enfim, de todo o espectro de morbimortalidade cujas causas se relacionam com o modo de vida sociocultural, econômico, político e ambiental de todas as gentes7-10. Desfruta de prestígio e atenção, em todo o mundo, pelo menos a julgar pelas importantes iniciativas tomadas com vistas ao seu desenvolvimento e efetivação, por exemplo, as Conferências Globais de Promoção de Saúde: Ottawa, em 1986, que representa a base da Promoção de Saúde; Adelaide, em 1988, e a ênfase para a intersetorialidade; Sandsval, em 1991, com o tema da equidade; Jackarta, em 1997, a necessidade de ampliação com novos parceiros e de produção de conhecimento; Bangkok, em 2005, a proposta de ampliação dos determinantes sociais; Nairobe, em 2009, voltada para as diretrizes de atuação prática e Helsinki, em 2013, com a proposta de Health in All Policies11. Ainda em âmbito internacional, destacam-se as Conferências Mundiais de Promoção de Saúde, organizadas, trienalmente, pela União Internacional para a Promoção de Saúde e Educação (Uipes) e que constituem importantes iniciativas que reúnem profissionais, pesquisadores e gestores de todo o mundo, para “aprender, compartilhar e construir o futuro da Promoção de Saúde e buscar a equidade em saúde”12. Outro exemplo do reconhecimento que lhe é dado é sua associação com os Novos Objetivos do Milênio, incluindo o combate à pobreza e à desigualdade e a busca da prosperidade, bem-estar, saúde e educação11. No Brasil, a Promoção de Saúde se entrelaça ao advento e desenvolvimento do Sistema Único de Saúde (SUS), seja por necessidade de inversão do modelo de atenção à saúde, seja por necessidade de coerência com os marcos da saúde como modelo ampliado3,13 ganhando, recentemente, reforço com a instituição, em 2006, da Política Nacional de Promoção de Saúde e com a sua revisão, em 2014, ampliando-a14.

Definida como abordagem de saúde que incorpora os diferentes aspectos sociais na explicação e produção de saúde e de doença15, a Promoção de Saúde abriga em seu âmbito inúmeras formulações, que se inserem em um amplo leque, compreendido entre duas correntes distintas: uma que se refere, predominantemente, ao estilo de vida, com abordagem comportamentalista/individualista; e outra que se baseia nas determinações sociais e se insere dentro das usualmente denominadas abordagens estruturais. A primeira remonta à teoria multicausal do processo saúde/doença, cuja história natural envolve riscos relacionados com a tríade agente- -hospedeiro-ambiente, que são passíveis de prevenção primária16. Os modelos estruturais, por sua vez, concebem a saúde e também o comportamento dos indivíduos relativamente à saúde como fenômenos condicionados e/ou determinados socialmente17 ao modo do modelo socioecológico proposto por Dalhgren e Whitehead, já bastante difundido, em que os determinantes sociais de saúde são organizados em mandala de multiníveis de espaços sociais18,19, ou da proposta de Saúde em Todas Políticas (Health in All Policies), que tem por base a integração entre os diferentes setores, engendrada no próprio processo de tomada de decisão20.

Críticas são endereçadas aos dois modelos. Em relação ao primeiro deles, comportamentalista/individualista, bastante disseminado e hegemônico, destaca-se a redução que opera no papel e no significado da dimensão do processo saúde/doença7,21, restrito que fica ao indivíduo, permanentemente dilacerado pelas prescrições de uma vida longeva21; portanto, vigilância e controle de comportamentos; de medicalização e de mercantilização da saúde, enfim, críticas que remetem à vinculação do modelo a práticas de dominação, exploração e produção de lucro, regidas pela lógica de mercado, estetizadas pela primazia da suposta liberdade individual15,21. Para os modelos estruturais, pesa sobretudo a complexidade que, por um lado, dificulta sobremaneira os processos de efetivação e acaba por reduzir as intervenções a mudanças no estilo de vida, próprias do primeiro modelo19 e que, por outro, impõe a central necessidade de vinculação ao Estado e com ela o exercício do poder e de dominação sobre a vida dos cidadãos22.

Ante essas críticas, o que se impõe é a necessidade de vinculação da Promoção de Saúde ao exercício da práxis de autonomia dos envolvidos, que aqui é pensada a partir da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, como condição ‘em que os atores sociais se transformam em autores’; e com suas múltiplas vozes, que brotam nos infindáveis espaços locais, mediam aí ações coletivas e solidárias e, ao mesmo tempo, rompem fronteiras, ganham ressonância na esfera pública, engendrando o processo discursivo de formação de opinião e vontade coletiva, lugar da vontade racional, portanto, a única que unifica autonomia e universalidade23,24. Colocada assim a questão, o mais importante não é saber qual dos dois modelos se adota, mas se, para quaisquer que sejam eles e quaisquer que sejam as ações empreendidas, contam com a participação de todos os envolvidos15.

Por decorrência, no presente número especial da revista Saúde em Debate, reunimos artigos filiados aos dois modelos: de um lado, mediação de conflitos nas relações de trabalho; de outro, a prática de atividade física, a participação, a intersetorialidade, o cuidado em redes vivas, mas também os fatores associados ao uso de álcool e do tabaco, sem também abrir mão de aspectos relacionados com a organização do cuidado e gestão dos serviços de saúde, na atenção primária e especializada, em que a Promoção de Saúde deve e pode ser implementada. Foram incluídos também ensaios teóricos e relatos de experiência, que expressam o esforço de pensar e efetivar a Promoção de Saúde, de forma consequente e desejável, nos moldes de suas mais autênticas postulações.

A Promoção de Saúde representa uma das estratégias prioritárias que o setor saúde dispõe, na sua lide com a violência, sendo que a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas mais uma vez é trazida para fundamentar a aproximação entre ambas, especialmente, a tese da colonização do mundo da vida25, responsável por distúrbios e deformações que, para nós, constituem as violências que corroem os três pilares de sustentação do modo de vida em sociedade, a saber, trabalho, ambiente, cidadania, exatamente os mesmos que cabe à Promoção de Saúde transformar15. Então, incluímos inúmeros artigos sobre as violências, em suas múltiplas faces, violência contra a mulher, o adolescente, o idoso; a questão do agrotóxico, a violência na atenção primária, assim como os modos de seu enfrentamento, participação, organização de serviços, prestação de cuidados e formação do profissional de saúde.

Reiterando as premissas apresentadas, a Promoção de Saúde, firmemente ancorada na práxis de autonomia dos envolvidos, é a estratégia nuclear do Programa de Pós-Graduação de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/Faculdade de Medicina (FM)/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Núcleo de Promoção de Saúde e Paz que, juntamente com a revista Saúde em Debate, assumiram a editoria deste número, cujo objetivo é contribuir para a qualidade das práticas de saúde, unicamente possível, no nosso entendimento, se produzida nos marcos da liberdade.

 

Elza Machado de Melo1 , Jandira Maciel da Silva2, Soraya Almeida Belisário3, Alzira Oliveira Jorge4, Tarcísio Márcio Magalhães Pinheiro5, Cristiane de Freitas Cunha6, Amanda Márcia dos Santos Reinaldo7

1 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina (FM), Programa de Pós-Graduação de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência e Núcleo de Promoção de Saúde e Paz – Belo Horizonte (MG), Brasil. elzammelo@hotmail.com

2 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina (FM), Programa de Pós-Graduação de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência – Belo Horizonte (MG), Brasil. jandira.maciel@gmail.com

3 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina (FM), Programa de Pós-Graduação de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência – Belo Horizonte (MG), Brasil. soraya@nescon.medicina. ufmg.br

4 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina (FM), Programa de Pós-Graduação de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência – Belo Horizonte (MG), Brasil. alzira.o.jorge@gmail.com

5 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina (FM), Programa de Pós-Graduação de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência – Belo Horizonte (MG), Brasil. tarcisiommp@gmail.com

6 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina (FM), Programa de Pós-Graduação de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência – Belo Horizonte (MG), Brasil. cristianedefreitascunha@ gmail.com

7 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Medicina (FM), Programa de Pós-Graduação de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência – Belo Horizonte (MG), Brasil. amandamsreinaldo@gmail. com

Anexos