Saúde em Debate v. 43 n. 6 – Atenção básica e a micropolítica da gestão

Propor movimentos de análise sobre o processo que opera na gestão e na produção das equipes de saúde não é uma ação rotineira que identificamos nos serviços. Com facilidade, o que encontramos são conflitos de diferentes origens e uma baixa capacidade de enfrentá-los como matéria: o gerar. São processos que agitam a vida dos serviços que recortam as atividades e nos convocam para análise, um convite que quase sempre deixamos para depois. São pontos que agitam o nosso processo de operar por entre as lógicas instituídas como analisadores. Tomar o cotidiano do trabalho nas suas diferentes redes e formas de atenção e gestão requer um exercício de olhar para uso das tecnologias que são incorporadas nesse processo em suas diferentes dimensões: operativas, políticas, comunicacionais, simbólicas, subjetivas“.

Editorial

Políticas do cotidiano: a gestão na atenção básica

por Ana Lúcia Abrahão, Ândrea Cardoso de Souza, Túlio Batista Franco – os três da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói (RJ) – Maria Paula Cerqueira Gomes – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

É COM PRAZER E IMENSA ALEGRIA QUE APRESENTAMOS este número especial da revista ‘Saúde em Debate’ do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em que é possível disponibilizar formulações e reflexões, produtos de vários anos de experimentação em encontros entre as pessoas que trabalham e que estão implicadas no cotidiano das redes de saúde. Esses encontros foram proporcionados pelo curso direcionado à Gerência da Atenção Básica da Universidade Federal Fluminense (UFF), que teve como foco as políticas do cotidiano e a micropolítica do trabalho. Sempre pronunciamos a ideia de que o ‘chão de fábrica’ dos serviços de saúde, ou seja, o local de encontro entre os usuários e trabalhadores, é um lugar onde germinam as inovações, pela força e potência criativa do próprio trabalho em saúde. Apoiados nessa convicção, buscamos trazer aos debates os cenários de práticas, as múltiplas relações no trabalho, o exercício cotidiano do ato de cuidar, para o primeiro plano de produção do curso. As disciplinas se tornaram assim, laboratórios de vidas na sua atividade cotidiana de produção do cuidado.

O curso percorreu todo o território brasileiro, foi invadido pelos vários sotaques, experiências de diferentes realidades, as muitas faces do imenso Sistema Único de Saúde se fizeram presentes. Ele foi produção de uma multidão, que, na sua multiplicidade, trouxe à cena aquilo que é comum a todas e todos nós: a função de acolher, cuidar, proteger os corpos que chegam para serem cuidados nas redes de serviços de saúde. O cuidado tem a função de dar passagem às suas potências.

Com toda diversidade presente, vemos que o comum em nós é o cuidar. A partir dessa ideia, encontramos a mesma gramática na produção da vida, que direciona as ações do trabalho, seja ele vinculado à atenção cotidiana à saúde, ou os processos de gerência e gestão dos serviços de saúde para o mesmo fim, que é a defesa da vida seja ela qual for. Todas as atividades do trabalho convergem sempre para o mesmo plano, que é a produção do cuidado1.

Os encontros que experimentamos na gestão em saúde se misturam com as apostas de cuidado desenhadas pelas equipes. No cotidiano dos serviços, a produção intensa por modos de aliviar a dor, de construir com o usuário ferramentas com potencialidade de ampliar a vida e projetos terapêuticos se misturam com propostas de melhor desempenho do serviço, planejamentos e indicadores de saúde, ou seja, diferentes regimes de produção de verdades2 se apresentam em um mesmo cenário que convoca gestor e trabalhador a compartilhar da vida do usuário, exercendo, nessa tecedura, arranjos que coloquem ou não em evidência as multiplicidades da existência.

Gestão e cuidado conformam dimensões importantes a serem enfrentadas, principalmente por subsumir modos de sustentação e ampliação da potência de vida no seu processo de produção. Não se trata de aplicação de conceitos, mas que eles sejam experimentados como ferramentas capazes de aprofundar e formular perguntas que operam no cotidiano dos serviços.

A defesa da produção de subjetividades como uma característica a ser analisada nos espaços em que opera a gestão e a assistência pode ser traduzida como conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial autorreferencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva3. Uma dinâmica processual em que há forças que estabelecem relações com outras forças e com ela mesma, produzindo processos de subjetivação; forças em relação.

Subjetividades que se expressam concretamente e se materializam no trabalho, na construção de ideias, de planilhas, protocolos, nos atos de cuidado na construção de vínculos, na construção de negociações entre os profissionais. Essa materialidade produz diferentes arranjos e ofertas de assistência e de gestão capazes de ampliar ou restringir o acesso ao cuidado em saúde nas diferentes redes de atenção.

Aposta-se que olhar esse território de produção de subjetividades como múltiplos processos de produção de vida, gestão e assistência incorpora uma potente fonte para pensar os diferentes problemas inerentes a essas dimensões. Os movimentos das instituições atravessam constantemente o gerar, o gerir e o cuidar nos serviços de saúde. Na produção de subjetividades, as tensões são fabricadas e merecem ser analisadas na medida em que são identificadas.

A constituição de coletivos a partir de modelos centrados em experiências partilhadas de gestão, lidando com as redes de dependência, torna possível desencadear processos de corresponsabilização, promovendo um modo de gerenciar que tenha espaço para a dinâmica de singularização e, portanto, de autonomia dos sujeitos envolvidos4.

Vemos, então, que não se trata de estabelecer hierarquias sobre a produção da saúde construída pelas equipes, nem mesmo de tomá-las em oposição, já que cada processo é composto de múltiplas direções e instituições que se atravessam produzindo infinitos encontros. Caminhos díspares cruzam a todo instante o plano da gestão em saúde e da produção das equipes. O fluxo contínuo de processo de subjetivação em que a invenção se faz presente compõe a paisagem. Aproximar-se desse território requer ferramentas que possam, ao penetrar entre as moléculas da gestão, da assistência, analisar seus fluxos, provocar ‘pororocas’5.

Propor movimentos de análise sobre o processo que opera na gestão e na produção das equipes de saúde não é uma ação rotineira que identificamos nos serviços. Com facilidade, o que encontramos são conflitos de diferentes origens e uma baixa capacidade de enfrentá-los como matéria: o gerar. São processos que agitam a vida dos serviços que recortam as atividades e nos convocam para análise, um convite que quase sempre deixamos para depois. São pontos que agitam o nosso processo de operar por entre as lógicas instituídas como analisadores. Tomar o cotidiano do trabalho nas suas diferentes redes e formas de atenção e gestão requer um exercício de olhar para uso das tecnologias que são incorporadas nesse processo em suas diferentes dimensões: operativas, políticas, comunicacionais, simbólicas, subjetivas.

Referências

1.Franco TB. Produção do cuidado e produção pedagógica: integração de cenários do sistema de saúde no Brasil. Interface (Botucatu). 2007; 11(23): 427-438.
2.Foucault M. Verdade e poder. In: Micropolítica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 2004.
3.Guattari F. Caosmose: um novo paradigma estético. 3. ed. São Paulo: Editora 34; 1992.
4.Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em saúde. In: Merhy EE, Onocko R, organizadores. Agir em saúde: um desafio para o público. 3. ed. São Paulo: Hucitec; 2007.
5.Abrahão AL. Produção de subjetividade e gestão em saúde: cartografias da gerência [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2004. 190 p.


APRESENTAÇÃO

Políticas do cotidiano: a gestão na atenção básica | por Ana Lúcia Abrahão, Ândrea Cardoso de Souza, Túlio Batista Franco, Maria Paula Cerqueira Gomes

ARTIGO ORIGINAL

Entre a ‘grande política’ e os autogovernos dos Agentes Comunitários de Saúde: desafos da micropolítica da atenção básica | por Luciana Soares de Barros, Luiz Carlos de Oliveira Cecílio

Competências necessárias ao gestor de Unidade de Saúde da Família: um recorte da prática do enfermeiro | por Josieli Cano Fernandes, Benedito Carlos Cordeiro, Aline Costa Rezende, Dandara Soares de Freitas

Análise do perfl de gestores de Unidades Básicas de Saúde de Criciúma | por Flávia Henrique, Elizabeth Artmann, Juliano de Carvalho Lima

Desafios e estratégias no gerenciamento de Unidades Básicas de Saúde | por Selma Loch

Processo Circular: avaliação no cotidiano da gerência de Unidades Básicas de Saúde | por Mônica Villela Gouvêa, Elisete Casotti

ENSAIO

Rede Básica, campo de forças e micropolítica: implicações para a gestão e cuidado em saúde | por Emerson Elias Merhy, Laura Camargo Macruz Feuerwerker, Mara Lisiane de Moraes Santos, Debora Cristina Bertussi, Rossana Staevie Baduy

A prática como produção de saber na educação semipresencial | por Ana Lúcia Abrahão

Clínica, cuidado e subjetividade: afinal, de que cuidado estamos falando? | por Túlio Batista Franco, Luiz Carlos Moreira Hubner

RELATO DE EXPERIÊNCIA

Processo Circular: avaliação da experiência de alunos/gerentes do Curso de Aperfeiçoamento em Gerência de Unidades Básicas de Saúde, Gestão da Clínica e do Cuidado na aplicação da ferramenta | por Angelo Brito Rodrigues

Fluxograma Descritor do processo de trabalho: ferramenta para fortalecer a Atenção Primária à Saúde | por Rosiane Pinheiro Rodrigues, Weslley Lieverson Nogueira do Carmo, Carla Isadora Barbosa Canto, Eliene do Socorro da Silva Santos, Lidiane Assunção de Vasconcelos

O uso de ferramentas no processo de formação de gerentes de Unidades Básicas de Saúde: um relato de experiência | por Karina Cenci Pertile, Ana Paula Azevedo Hemmi, Camila Zamban de Miranda, Frantchesca Fripp dos Santos

O Processo Circular enquanto ferramenta para a gestão de confitos em uma Unidade Básica de Saúde | por Glebson Moura Silva, Deise Patrícia Freitas de Oliveira Carvalho, Deborah Brandão de Melo

Uso de ferramentas de gestão na micropolítica do trabalho em saúde: um relato de experiência | por Mary Anne de Souza Alves França, Acácia Cristina Marcondes de Almeida Spirandelli, Maisa Carolina de Castro Lima Vila Verde

Práticas restaurativas na gestão de uma equipe de Estratégia Saúde da Família: relato de experiência em Pato Branco, PR | por Clodoaldo Penha Antoniassi, Janine Gehrke Pessotto, Luciane Bergamin

Furando ondas para a qualifcação dos gerentes de Unidades Básicas de Saúde | por Luzia Maria da Guia Malta Prata, Elzimar Palhano dos Santos, Rosiane de Araújo Ferreira Polido, Ândrea Cardoso de Souza

Micropolítica da gestão e trabalho em saúde em um curso de Educação a Distância para gerentes da Atenção Primária à Saúde | por Magda de Souza Chagas