Quando o SUS socorre os usuários de planos de saúde

artigo de Maíra Mathias publicado originalmente no site Outras Palavras

Pesquisa comprova: saúde privada vende imagem de “proteção” — mas para procedimentos complexos, seus “beneficiários” vão aos hospitais públicos.Leia também: como o “Médicos pelo Brasil” visa privatizar o SUS “por dentro”

INTERSEÇÃO

‘Quem tem plano de saúde não usa o SUS.’ Com certeza você já ouviu essa frase ou essa ideia circulando por aí. Desconstruí-la tem sido um esforço contínuo dos sanitaristas no Brasil – e um dos argumentos mais frequentes se baseia no fato de o SUS não ser um sistema limitado à assistência: tem vigilância sanitária, epidemiológica, formação de profissionais, pesquisa & desenvolvimento… Mas há muito mais entre o público e o privado quando se destrincha os dados assistenciais. Foi justamente o que fez a pesquisadora Maíra Coube. Ela analisou no blog do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde algumas informações da última Pesquisa Nacional de Saúde, realizada em 2013, para descobrir como os brasileiros com planos de saúde usam o SUS – e também o contrário: de que forma quem não tem plano recorre à compra de serviços no setor privado.

A conclusão é que, naquele ano, pessoas que tinham planos de saúde representaram nada menos do que 10,9% dos atendimentos prestados pelo SUS, o equivalente a dois milhões. Esse público realizou 940 mil internações no Sistema Único, ou 11,6% do total de internações do SUS. Já a busca por atendimentos no setor privado por aqueles sem plano foi ligeiramente maior. Foram 2,6 milhões de atendimentos, ou 22,9% do total do setor privado. Em números absolutos, a busca por internações foi menor – 854 mil – mas elas representaram 21,8% do total do setor privado.  

O tipo de atendimento mais utilizado no SUS por beneficiários foi a consulta médica (77%). Em relação às internações hospitalares, cirurgia e tratamento clínico foram os principais motivos para quem tem plano se internar no SUS (29% e 42% das internações, respectivamente). Maíra Coube também complementa as informações da PNS com dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de ressarcimento das operadoras ao SUS: em 2015, hormonioterapia e hemodiálise foram os atendimentos ambulatoriais mais frequentes.

A busca pelo setor privado por quem não tem plano foi também principalmente para realizar consulta médica (59%), seguido de consultas odontológicas (12%). Com relação às internações, cirurgias e tratamentos clínicos também foram os motivos mais utilizados (38% e 30% respectivamente). Aqui, o destaque vai para a alta proporção de partos cesáreos procurados no setor privado por quem não tem plano de saúde.

“Os dados mostram que há uma intersecção considerável em termos de utilização de serviços entre os setores público e privado. Por um lado, pode refletir a extensão da cobertura dos planos de saúde, levando beneficiários a buscar o SUS em situações de não cobertura ou cobertura parcial do plano (ex. vacinação, consulta odontológica). Por outro lado, também pode significar uma percepção de melhor qualidade no setor público para determinados serviços”, diz a pesquisadora. E reflete: “Na situação em que o usuário não tem plano e utiliza o serviço privado, há uma preocupação sobre o impacto do nível de gastos com despesas catastróficas como proporção da renda familiar, que pode causar uma sobrecarga orçamentária, particularmente para famílias de baixa renda. Será que as filas de espera do setor público são muito elevadas para esses procedimentos e por serem de alta complexidade e urgentes, fazem com que o usuário procure o setor privado?”.

O PAPEL DO ESTADO

Em uma entrevista bem didática, Carlos Ocké, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também aborda a interseção entre o setor público e o setor privado. Estudioso do mercado de planos de saúde, o economista é um dos autores de uma pesquisa de 2018 que demonstrou que a renúncia fiscal do governo federal destinada ao setor saúde retirou nada menos do que R$ 331,5 bilhões dos cofres públicos entre 2003 e 2015. Ele relembra que esses subsídios foram disseminados no Brasil a partir de 1968 e ajudaram a criar o mercado de planos de saúde no país. “Para começo de conversa, é preciso distinguir o gasto direto – aquele aplicado no SUS – dos subsídios, que são gastos indiretos que se destinam ao consumo das famílias, dos trabalhadores e dos empregadores. De saída, esses gastos indiretos têm dois problemas. Número um: o gasto público per capita fica distorcido, desigual porque todos usam o SUS, todo mundo usa vigilância em saúde e vacinação, por exemplo. E se eu tenho plano de saúde e você não tem, na média estou ganhando mais do que você já que nós dois ganhamos o gasto direto, mas eu também ganho o gasto indireto. Além disso, em tese, os subsídios retiram recursos do SUS porque o Estado patrocina o consumo de serviços privados de saúde em detrimento do fortalecimento do Sistema Único, indo de encontro aos preceitos constitucionais”, explicou.

Para ele, é uma falácia o discurso empresarial de que mais gente com plano de saúde ajuda o SUS, desafogando o Sistema. “Pelo contrário, a experiência internacional ensina que o fortalecimento da saúde suplementar fragiliza politicamente a capacidade que o setor público tem de construir consenso na sociedade para ampliar os recursos destinados à saúde”, diz. E completa: “Esse mercado não quer dividir com o Estado os procedimentos de alto custo, as enfermidades de alto risco. Nessa seara, ele quer socializar os custos, haja vista a figura emblemática do ressarcimento [das operadoras ao SUS, motivo de disputa durante muito tempo]. (…) Na verdade, o que existe é uma disputa ferrenha não só pelos subsídios, mas pelos recursos públicos em geral. A luta é por abocanhar cada vez mais recursos públicos porque isso faz parte da dinâmica desse setor na busca por aumentar sua escala e reduzir sua ineficiência.”

Na entrevistapublicada na revista Poli, da Fiocruz, Ocké também falou sobre a confluência de agendas da gestão Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde, com destaque para a atenção primária. Segundo ele, a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária (Adaps) no bojo do programa Médicos Pelo Brasil e o novo modelo de financiamento federal desse nível de atenção seriam parte de uma proposta bem ampla de contrarreformas para privatizar o SUS por dentro. “É importante, enquanto analistas de políticas de saúde, que façamos um esforço para entender a convergência entre o desenho da Adaps e a nova proposta de financiamento. Trabalhamos com a hipótese de que estamos vendo acontecer no Brasil o mesmo movimento de contrarreformas que aconteceu no NHS [Serviço Nacional de Saúde] inglês. Lá, as primeiras mudanças aconteceram em 1989, no governo de Margaret Thatcher, com a introdução do mercado interno no NHS.”

UM OUTRO SUS INTERROMPIDO

Você sabia que no Chile de Salvador Allende uma das principais propostas de reformas era a criação do SUS? Pois é. Por lá, a sigla significaria Serviço Único de Saúde. Mas mesmo antes do governo da Unidade Popular, existia um Sistema Nacional de Saúde, espécie de Inamps criado para unificar os serviços oferecidos pelas diversas caixas de previdência dos trabalhadores chilenos, e a assistência à saúde era considerada um dever do Estado desde 1925 pela Constituição. Com a ditadura, tudo isso foi por água abaixo e com a Constituição de 1980 – que ainda vigora no país vizinho e agora, finalmente, está em xeque – a assistência à saúde deixou de ser direito social e o papel do Estado passou a ser “garantir a execução das ações de saúde, sejam elas prestadas através de instituições públicas ou privadas”. Já falamos por aqui das distorções que isso provocou, com por renda da população por renda. Essa história está detalhada na reportagem de André Antunes, publicada também na revista Poli da Fiocruz, que examina ainda os problemas relacionados à educação e previdência no Chile.

Para quem se interessa por educação, vale a pena também dar uma olhada na íntegra da entrevista com Fabian Cabaluz, professor da Universidade Academia de Humanismo Cristão do Chile. Ele explica os métodos da ditadura para desmontar a mobilização de professores, estudantes e trabalhadores do setor – e qualquer semelhança com a proposta de escolas cívico-militares e intervenção nas eleições de universidades e institutos federais que se desenrola no Brasil de Jair Bolsonaro não é mera coincidência. O autoritarismo do passado parece inspirar o presente, embora, obviamente, por aqui hoje ainda haja travas institucionais. Por lá, naquela época, além da privatização, houve uma série de medidas que ficaram conhecidas por “depuração ideológica”. “Esse foi o conceito que utilizaram na época. Isso quer dizer retirar qualquer tipo de presença do que denominavam de ‘câncer marxista’ dentro da educação. Qualquer tipo de conceito que falasse de luta de classes, socialismo, democratização da cultura, movimentos sociais, organização sindical: todos esses conteúdos tinham que ser retirados do sistema educativo. Junto com isso, se interveio nas instituições educacionais – e para isso foram colocados militares de carreira como reitores das universidades e também como diretores das escolas públicas. De tal maneira que as Forças Armadas passaram a ter controle direto sobre as instituições educativas. Isso foi gravíssimo porque veio junto com uma repressão focalizada no professorado. Os professores e trabalhadores da educação são o grupo de profissionais com a maior quantidade de pessoas executadas e desaparecidas durante a ditadura civil-militar.” Aliás, a criminalização dos movimentos estudantis feita pelo atual presidente Sebastian Piñera com a aprovação de uma lei chamada ‘Aula Segura’ foi, segundo Cabaluz, a base dos primeiros protestos de 2019, que se adensaram com o anúncio do aumento das passagens.

SEGUNDO LUGAR

O Ministério da Saúde passou a exigir a notificação compulsória da dengue em 1990. Pois 2019 passou a ocupar o segundo lugar no ranking dos anos com mais casos da doença – e isso porque os dados vão só até 7 de dezembro, o que significa que ainda pode ultrapassar o ‘campeão’ 2015. Ano passado foram registrados 1,53 milhão de casos, e cinco anos atrás essa marca foi de 1,69 milhão.

MUITAS MORTES

Na Índia, é notícia um número enorme de mortes de crianças em um hospital do governo na cidade de Kota, no norte do país. As primeiras manchetes deram conta de 104 óbitos entre dezembro e a primeira semana de janeiro. Mas a NPR contabilizou impressionantes 940 mortes infantis na unidade ao longo de 2019. O hospital não comenta as causas e se limita a informar que algumas das crianças nasceram abaixo do peso – o que não explica o índice. E a questão virou arma política, já que a cidade fica no Rajastão, onde está no poder o partido de oposição ao primeiro-ministro indiano Narenda Modi. O estado acusa o governo central – e vice-versa. A Índia responde por 20% da mortalidade infantil do mundo, com 1,5 milhão de óbitos de crianças abaixo dos cinco anos registrados entre 2012 e 2015.