Resgate de mulheres em clínica clandestina de Magé exige resposta política
Cebes defende o cuidado em liberdade e cobra o fim das “comunidades terapêuticas”
O resgate de mulheres encarceradas em uma clínica clandestina em Magé, no Rio de Janeiro, exige uma resposta política, afirmam especialistas do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). Para Itamar Lages (UPE), diretor do Cebes e liderança da Luta Antimanicomial, o caso remete ao histórico de tortura dos marginalizados no manicômio de Barbacena, o “campo de concentração brasileiro”.
O psiquiatra Paulo Amarante (Fiocruz), ex-presidente do Cebes e presidente de honra da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), reforça a urgência de uma resposta nacional coordenada. “É um absurdo como o governo está lidando com os abusos em comunidades terapêuticas e clínicas clandestinas sem uma atitude efetiva de enfrentamento. Não é um caso isolado. São centenas, centenas de ‘casos isolados’ todo mês”, afirma Amarante.
O resgate aconteceu nesta segunda-feira, 27/1, depois que uma paciente conseguiu fugir e pedir ajuda para moradores. A clínica clandestina oferecia suposto “tratamento” para usuárias de drogas, em um sítio, onde foram encontradas 13 mulheres, entre 22 e 62 anos, dopadas. As vítimas relatam rotina de agressões, cárcere e violência sexual.
“A violência praticada pelas chamadas ‘comunidades terapêuticas’ se multiplica quando soma à misoginia, à concepção que se tem sobre as mulheres e o uso de drogas”, afirma Ana Costa, diretora do Cebes. “Em termos de ‘tecnologias de cuidado’, o que essas clínicas oferecem é absurdo e ineficaz. É uma degradação”, diz a sanitarista.
“O Cebes entende essa situação como uma experiência degradante, desumana, que precisa de uma intervenção política muito intensa”, ressalta Itamar Lages. “É uma situação que remete ao hospício de Barbacena, que foi considerado um campo de concentração brasileiro, somada à desvalorização política e social imposta à mulher, principalmente as mulheres pobres, as mulheres em sofrimento psíquico. Muito desse sofrimento é decorrente de situações sociais. Essas pessoas não deveriam estar internadas”, pondera Itamar, professor de Enfermagem e Saúde Mental.
Cebes rejeita “comunidades terapêuticas”, legalizadas ou não
“Nós, do movimento da Reforma Sanitária, sempre estivemos juntos à Reforma Psiquiátrica contra o encarceramento. Há um interesse financeiro nessas internações, além da capitalização político-religiosa do sofrimento, que acontece não em uma, duas, ou duas dúzias de clínicas, mas em centenas de comunidades terapêuticas em todo o Brasil”, afirma Ana Costa.
O Brasil registrava, em janeiro de 2024, 587 “comunidades terapêuticas” financiadas pelo poder público, número superior aos centros de apoio psicossociais. Oito em cada dez estavam relacionadas a organizações religiosas. Inspeção nacional do Ministério Público comprovou denúncias de tortura, sequestro, cárcere privado e trabalho forçado. Irregularidades persistem.
A política de Estado preconiza o cuidado a pessoas em sofrimento psíquico não apenas no Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), mas em todo o Sistema Único de Saúde (SUS). A rede inclui os CAPs, as Unidades Básicas de Saúde (UBS), residências terapêuticas e até os hospitais gerais. “É um conjunto de equipamentos para cuidar dessas pessoas, que merecem ser tratadas como seres humanos que são”.
“Somos contrários à internação como cárcere. Nosso paradigma é a defesa radical do cuidado em liberdade. Rejeitamos as comunidades terapêuticas, estejam ou não legalizadas”, reforça Itamar Lages.
Recuo do Conselho Nacional de Assistência Social
O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) publicou, em abril, Resolução 151/2024, negando reconhecimento de comunidades terapêuticas como entidades de assistência social vinculada ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Somente poderiam ser inscritas entidades que se enquadrassem nos critérios normativos das resoluções CNAS 109/2009, 27/2011, 33/2011, 34/2011. Sob pressão, apenas um mês depois, o Ministério do Desenvolvimento Social, emitiu nota de esclarecimento que enfraquece a resolução e afirma que o financiamento das comunidades terapêuticas não seria afetado.
Campo de Concentração Brasileiro
A reforma psiquiátrica é uma conquista civilizatória sociedade brasileira. Símbolo do genocídio dos indesejados, o Hospital Colônia de Barbacena recebia, desde 1903, marginalizados: pessoas com deficiência, em sofrimento psíquico, alcoólatras, mulheres solteiras grávidas, epilépticos, homossexuais, mendigos, prostitutas. Em 1978, denúncias de profissionais da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam/MS) sobre graves violações humanitárias em instituições psiquiátricas levou à demissão da maioria dos denunciantes. No ano seguinte, a visita de do psiquiatra italiano Franco Basaglia ao Hospital Colônia de Barbacena, que comparou a um campo de concentração nazista, intensificou a pressão social por seu fechamento, concretizado em 1996.
Reportagem: Clara Fagundes/Cebes