Saúde da população negra: desafios de uma política em construção
Ana Costa, diretora do Cebes, analisa a trajetória de duas décadas da construção da política e a persistência do racismo institucional no SUS
A saúde da população negra no Brasil carrega as marcas de um histórico de desigualdades estruturais, reflexo de séculos de racismo enraizado em nossas instituições. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), lançada em 2006, emergiu como uma tentativa de enfrentar essas disparidades e promover a equidade dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Mais de uma década depois, os desafios persistem e se agravam, evidenciando lacunas entre as metas propostas e sua efetiva implementação.
Para compreender os avanços, entraves e a relevância contínua dessa política, trouxemos uma entrevista com a diretora do Cebes Ana Maria Costa, sanitarista e figura-chave na construção dessa iniciativa. Em um cenário onde a mortalidade materna, a violência obstétrica e a exclusão no acesso à saúde ainda atingem desproporcionalmente a população negra, sua análise nos convida a refletir sobre a eficácia das estratégias adotadas e a urgência de ações mais robustas para combater o racismo institucional e estrutural no Brasil.
As pessoas negras representam 73% dos moradores de favelas no Brasil, segundo o IBGE. O Censo Demográfico de 2022 indicam que 92% das pessoas amarelas e 83% das brancas declaram ter acesso a saneamento básico, contra 75% das pessoas pretas, 69% das pardas e 29% das indígenas.
A seguir, um olhar crítico sobre o processo de construção da PNSIPN e o impacto que ela gerou, ou não foi capaz de gerar, na saúde pública do país.
Quais os motivos levaram à criação da PNSIPN?
A criação da Política resultou de uma conjuntura favorável no início do governo Lula (2003), somada à luta do movimento negro, que demandou a introdução do quesito cor nos registros de saúde. Essa ação revelou desigualdades étnico-raciais antes invisíveis, gerando evidências para a formulação da política. Havia expectativa dos grupos populares de atendimento das suas demandas.
Havia também um sentimento de exclusão entre o movimento negro, ainda com demandas pouco estruturadas, mas a criação de comitês permitiu uma interlocução direta com o Ministério da Saúde. Esses comitês foram essenciais para construir uma política abrangente e transversal, que fortalecesse o SUS ao invés de criar programas verticalizados.
Mão é possível que o SUS desconheça a matança de jovens negros e a questão específica das mulheres negras em relação a violência no parto, a violência obstétrica. A violência em relação às crianças negras, aos adultos negros, aos idosos negros porque, querendo ou não, na articulação, na interseccionalidade que vincula raça com gênero e com classe social, você peneira e os negros e as negras são os grandes prejudicados
O desafio foi convencer gestores e o movimento negro de que a implementação usaria recursos já existentes no SUS, promovendo equidade sem a necessidade de fundos específicos, mas mantendo o compromisso ético-político com a universalidade e integralidade do sistema.
Quais foram os principais desafios construção desta política?
A fragmentação do sistema era um desafio central, pois contrariava o princípio da integralidade: as pessoas chegam ao SUS inteiras, e nosso dever é ajustar os processos de trabalho para atendê-las sem dividi-las. A experiência acumulada em 40 anos no SUS reforçou a importância de políticas que respeitem a universalidade e a integralidade, sem ceder à lógica financeira fragmentada herdada dos anos 90.
Buscamos alinhar as demandas dos movimentos sociais com a estrutura do SUS, criando políticas baseadas em princípios éticos e na integralidade, não apenas em incentivos financeiros. Apesar da resistência de gestores habituados a políticas atreladas a financiamento, buscamos consolidar o compromisso com a equidade.
Considerando o tempo transcorrido, como você avalia o impacto da política na saúde da população negra?
O principal impacto inicial da Política foi a visibilidade à saúde da população negra, com aprovação no Conselho Nacional de Saúde e articulação entre áreas do Ministério da Saúde, devido ao seu caráter transversal. Você não imagina o tanto que foi importante para a gente colocar no discurso governamental a questão do racismo institucional.
Trouxemos o racismo institucional para o discurso governamental, incorporando-o como meta prioritária e fortalecendo a produção de conhecimento e práticas no SUS. Os desafios atuais vão além do setor saúde e exigem articulação intersetorial. Apesar das dificuldades, essa Política introduziu uma linguagem e conceitos essenciais no debate governamental, marcando uma conquista importante na luta por equidade.
Nós continuamos com problemas crônicos e graves, como a questão da morte materna entre as mulheres negras, cobertura de pré-natal, o acesso aos serviços. Então os desafios ainda estão muito grandes e envolvem já não mais só o setor saúde. Ainda temos problemas de acesso próprios das desigualdades, o que nos coloca distantes da utopia da universalidade.