Políticas em Saúde e Saúde Mental: primazia do público sob(re) o privado, por Luiz Vianna Sobrinho

Por Luiz Vianna Sobrinho, da GPDES/IESC Ufrj

 

Manaus, 6 de setembro de 2014.

Boa tarde a todos.

Meu agradecimento ao amigo e professor Paulo Amarante e à organização do Congresso pelo convite. Sinto-me honrado pela presença nesse debate.

Trago aqui o meu depoimento, de quem nasceu na profissão poucos anos antes do momento em que se criava legalmente o novo modelo de sistema de saúde, que se pretende tornar único e universal. E nessas quase três décadas ainda o desafio principal, e parece-me que cada vez mais claro, gira em torno de algumas reflexões à questão dessa mesa, a Primazia do Público Sob(re) o Privado.

Como não sou um pesquisador stricto senso da questão nacional da saúde, trago o meu ponto de visão, que é o da prática em assistência à saúde em um grande centro urbano da minha região.

Na minha realidade, a distribuição característica é da medicina terciária de alta complexidade concentrada em complexos hospitalares centrais e assistência primária e secundária, com foco em cobertura de emergências nas periferias das cidades. Nesse modelo, dos grandes centros urbanos, há dois pontos que eu gostaria de destacar, antes de entrar mais no debate dessa dicotomia que a linguagem acadêmica mais recente tem tratado como mix público-privado:

O primeiro é que não me parece tão claro que a distinção entre público e privado seja a única referência na cabeça do cidadão que procura a assistência em saúde hoje em dia. Mesmo porque agora a novidade é a mescla de situações alternativas na gestão, como a prestação de serviços de saúde por OS dentro da rede pública, inclusive em cidades pioneiras na implantação de programas de saúde da família, como a que moro. Ao cidadão, nem sempre se passa com clareza a interpretação que se faz de seu direito constitucional, quando se lhe permite circular entre atendimentos seja como um ‘cliente’, seja como um ‘usuário’ do sistema. Assim, este muitas vezes interpreta a assistência como um ganho salarial, uma recompensa ao seu trabalho; dando a ela uma qualidade de produto que foi adquirido, um serviço a mais. Num outro extremo, o atendimento público costuma tornar-se uma benesse, um serviço para ele gratuito. E, ao longo de sua vida, ter acesso ou não à assistência privada está muito mais ligado ao vínculo empregatício em que se encontra. Ter de usar o SUS tem sido-lhe atribuído à falta de opção.

O segundo ponto é que me parece que, ao fim de duas décadas de estímulo à pujança do setor privado e próximo do limite de sua expansão dentro da economia brasileira atual, a crise na atenção atingiu a todos. As pesquisas de opinião divulgadas recentemente dão evidência de que a ordem burocrática gerencialista nivelou no mesmo patamar de insatisfação todos os usuários do sistema, sejam eles chamados de ‘clientes’ ou simplesmente ‘pacientes’. O problema talvez seja perguntar se a verdadeira ‘atenção’ pode ser oferecida a alguém como mais um serviço. Quanto mais se podemos vendê-la.

Nesta minha realidade de um grande centro urbano, dentro da visão como médico também tenho dificuldade em delimitar esses espaços; e talvez considere que ainda é privado, por exemplo, o espaço para negócios de próteses entre profissionais ultra-especializados dentro de um grande hospital público federal de referência; e também não consigo perceber como público um programa de medicina de família com jovens profissionais de contrato temporário que se comportam mais como free-lancer.

No mais, uma distinção apenas me parece cada vez mais clara na minha cidade: depois de uma longa era de primazia dos grandes centros de assistência da rede pública, hoje eles são o espaço para o trabalho; pois, quando necessitam de cuidados para si, os profissionais da assistência e gestores da rede pública se utilizam da rede privada, através de seus planos privados de saúde.

Posto isso, eu gostaria de citar um texto recente do filósofo Paul Ricoeur 1, onde ele destaca três paradoxos do contrato médico; um contrato dito por ele pactuado em notável dissimetria que tem de ser assumida: de um lado aquele que sabe e sabe fazer e de outro aquele que sofre.

O primeiro grande paradoxo é que embora o corpo seja uma parte da natureza física observável, a pessoa humana não é uma coisa.

No segundo paradoxo ele nos atenta para o fato de que a medicina tem um preço e custos para a sociedade; mas a pessoa não é uma mercadoria, por isso a medicina não pode ser um negócio.

E o último paradoxo, que recobre os dois precedentes, e ilumina algumas questões para o debate nessa mesa é que o sofrimento é privado, mas a saúde é questão pública.

Então, penso perceber que a questão do público / privado transita no entendido ou mal-entendido nos termos principais desses paradoxos e queria me deter nos dois últimos, para depois voltar ao primeiro.

Nas últimas duas décadas, o projeto do Estado para a saúde não me parece ter dado ouvidos e/ou compreendido e/ou feito a opção de atentar para o que nos disse o filósofo.

Partindo da análise da nova carta constitucional percebemos que o tratamento dado ao texto, na forma de não-decisões, como nos alertam vários autores 2, foi de início a estratégia chave para garantir liberdade à iniciativa privada sem regulamentar essa assistência.

Durante o reassentamento das estruturas e serviços privados, que sempre fizeram parte da assistência e dos negócios de saúde do nosso país, o que assistimos na década de 1990 e na seguinte foi uma verdadeira homologação do tratamento da saúde como um braço do setor produtivo na economia. A política de Estado adotada por distintos governos, em seqüência, percebendo a significativa participação do setor de saúde na economia tanto mundial quanto nacional, foi de integrá-la no mesmo pacote que a agropecuária e a indústria, como uma das molas do projeto neodesenvolvimentista. Esse ramo de ‘negócios’ mais que quintuplicou em duas décadas; e em 2010 o IBGE estimava que a cadeia produtiva da saúde mobilizava em torno de 160 bilhões de reais e hoje já ultrapassa 200 bi 3.

Como já denominado, esse Complexo Médico Financeiro/Industrial da Saúde 4, tem característica muito particulares, com um braço que financia e compra os serviços, como o Estado, as seguradoras e a própria sociedade, e um outro que vende serviços e insumos da rica e variada indústria médica. O equilíbrio se dá pelo controle de ambos os lados por grandes grupos financeiros e pesada subvenção e estímulo estatal, no entendimento de tratar-se de uma parte do motor da propulsão da economia nacional.

No entanto, o que se negocia abertamente não é saúde, mas insumos e produção de tecnologias das mais variadas. Logo, o resultado não tem sido o esperado. Com as particularidades que o território da saúde sempre nos demonstra, nem sempre estamos fazendo melhor porque gastamos mais. Enfim, consumir não é, definitivamente, a melhor solução na área da saúde. Vender mais carros e eletroeletrônicos pode ser economicamente interessante. Mas desejar vender mais próteses e mais Stents, mais estatinas, mais ritalina, pode não ser uma solução mais saudável.

Para termos uma comparação: o modelo mais radical de sistema de saúde como um simples segmento da economia, os EUA, torram, por ano, uma soma que seria o quinto PIB do mundo – mais de 2 trilhões de dólares – e tem os piores indicadores relativos na área, tanto de qualidade quanto de equidade, se comparados aos demais países desenvolvidos. A taxa de uso inadequado de insumos de alto custo, em algumas estatísticas, chega a 20% 5.

E, nesse mesmo rumo, segue a opção pelo desenvolvimento da economia da saúde no país que permanece a mesma há quase duas décadas. Estímulo ao mercado financeiro, com subsídios ao setor de securitização da saúde e com a entrega de sua regulamentação aos executivos dessas corporações. Concentração das políticas públicas na assistência primária; mas financiamento do Estado, através de recursos do FAT e do BNDES, para o desenvolvimento de um parque tecnológico hospitalar de alta complexidade nas mãos da iniciativa privada. Como nos alertou recentemente Sonia Fleury 6: “O pragmatismo envolto em interesse público não consegue acobertar o comprometimento dessas instituições com interesses particulares. […] ao igualar o público e o privado em busca de crescente interação rumo a um projeto de nacionalização do sistema de saúde, o que se está fazendo é reduzir progressivamente o papel do Estado a financiador e comprador, o que seria decretar a morte progressiva do SUS”.

Enfim, eu gostaria de retornar agora ao primeiro paradoxo do Ricouer 7, para relembrar que já se disse que “Nunca a Medicina avançou tanto no diagnóstico e no tratamento das mais variadas doenças como no final do século passado, e nunca o ser humano enfermo foi tão mal cuidado”.

Nesse ponto despeço-me da dicotomia público-privado e me detenho nessa perda da relação entre sujeitos.

Durante muito tempo se falou no impacto que o boom tecnológico do final do séc. XX causou nas práticas dos profissionais de saúde. Mas, na última década, eu penso que outro fetiche, muito mais arrasador para a nossa prática vem se desenvolvendo e transformando a relação entre o médico e paciente, por exemplo.

E esse fetiche é a burocracia – a gestão – tanto da prática, como da relação.

Repetindo literalmente as palavras do sanitarista Vicenço Navarro 8: “[…] o conflito de classes foi substituído pelo conflito entre os que estão no nível superior, os gestores das burocracias, indispensável para o funcionamento de uma sociedade industrializada e aqueles na parte inferior, os consumidores dos produtos de bens de e serviços, administrado por essas burocracias”.

O relatos que ouvimos a cada dia da insatisfação geral, seja com a rede pública seja com a rede privada, está em muito ligado a era da grande indiferença e apatia em que vivemos; termo que se define justamente no extremo oposto da compaixão.

Aqueles que pensam a nossa época chamam a nossa atenção para algo como a desatenção cortês”9, característica da gestão como doença social”10; processos que banalizam a dor e o sofrimento, e inviabilizam a possibilidade de uma verdadeira ética, algo que tem sentido apenas no encontro entre sujeitos.

Eu termino, então, confessando que sinto-me muito mais à vontade do que em congressos de cardiologia ou terapia intensiva, para clamar pelo retorno das características conceituais da atenção. Aqui, no meio de todos os que se dedicam ao estudo e trabalho com a saúde mental, naturalmente pensar no outro, no sujeito, inexoravelmente tem de excluir a relação com clientes, como deseja o lógica do consumo; assim também como o acompanhamento do usuário em planilhas de desempenhos dos grandes programas de atenção gerenciada.

Concluindo, penso que a busca para a saúde não pode estar só nas metas do PIB. Que a nossa prática deve recuperar o poder de dar poder. Precisamos cobrar na nossa postura algo que fortaleça a emancipação daquele a quem nos dedicamos.

O que eu proponho é um Mais Pessoas.

 

  1. Ricouer, P. Os Três Níveis do Juízos Médicos. Universidade da Beira Interior: Covilhã, 2010
  2. Menicucci, TMG. Público e Privado na Política de Assistência à Saúde no Brasil. Atores, processos e trajetória. Rio de Janeiro. Fiocruz, 2007.
  3. Vecina Neto, G. Reflexões sobre qualidade do atendimento médico. A visão do mercado. in Helito, AS; Birolini, D (org). Análise crítica da prática médica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
  4. Mendonça, ALO; Camargo Jr, KR. Complexo médico-industrial/financeiro: os lados epistemológico e axiológico da balança. Physis. Vol.22, nº1. Rio de Janeiro, 2012
  5. http://www.nehi.net/publications/30/how_many_more_studies_will_it_take
  6. Fleury, S. Um remédio para matar ou salvar o SUS?. Le Mond Diplomatique. Acesso em 7/12/2012, disponível em http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1267
  7. Lown, B. A Arte Perdida de Curar. São Paulo. JSN Editora, 1997.
  8. Navarro, V. The industrialization of fetishism or the fetishism of industrialization: a critique of Ivan Illich. Soc. Sci. & Med. Vol. 9, pp.351/363. Great Britain. Pergamon, 1975.
  9. Termo retirado do pensamento do sociólogo Erwing Goffman, em Moraes, EI; Nunes, JH. A expropriação da emoção no setor de serviços. XII Encontro da SBS. 03/06/2005. Disponível em http://www.sbsociologia.com.br/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_details&gid=489&tmpl=component&Itemid=170
  10. Gaulejac, V. Gestão Como Doença Social – Ideologia, Poder Gerencialista e Fragmentação Social. São Paulo. Idéias & Letras, 2007.

 

Foto: Radilson Carlos Gomes. Programa de Volta pra Casa: Zezé fotografando o fotógrafo. Barbacena, 2008.