A crise não é só do governo e não há milhões de fascistas na rua

Paulo Henrique de Almeida Rodrigues 15/03/15

As atuais crises gêmeas, política e econômica, vividas pelo país tiveram nos dias 13 e hoje (15/03/15) uma clara aceleração. Dois campos foram às ruas, no dia 13, em apoio ao governo as manifestações foram claramente menores do que as de hoje, contra o governo. No dia 13, os defensores do governo não puderam esconder sua insatisfação com a política econômica adotada francamente contrária a seus interesses, nem com a inacreditável situação à qual o governo levou a Petrobrás, por isso apoiaram o governo, mas de forma indisfarçavelmente crítica e envergonhada. O segundo campo foi capaz de levar muito mais gente às ruas, mas mostrou divisão e a presença de tendências assumidamente direitistas, e até golpistas, embora não majoritárias. Ao mesmo tempo em que havia faixas (poucas) defendendo a volta dos militares, o Jair Bolsonaro foi impedido de falar na manifestação do Rio, fortemente vaiado pelos manifestantes.

A crise se acelera e cabe à esquerda entender o que está se passando, sem se deixar confundir pela atitude negativista que reduz o descontentamento a mera articulação golpista. Afinal os próprios eleitores do governo votaram na presidente porque eram contra o tipo de política econômica em curso e temiam que seu adversário aplicasse. O não entendimento da crise, a negação impedirá que a esquerda possa liderar a saída da mesma, se isto acontecer, será a direita que colherá os frutos da atual insatisfação popular.

Mais importante é entender que o que está em crise não é meramente o atual governo, mas tanto o modelo econômico subordinado aos interesses neoliberais implantado desde Collor e FHC e mantido por Lula e Dilma, quanto o sistema político, partidário e eleitoral arquitetado por Golbery do Couto e Silva e implantado pelo pacote de abril de 1977 e pela reforma partidária de 1979 e infelizmente mantido pelo Congresso Constituinte no final dos anos 1980.

O modelo econômico imposto pelo garrote da dívida fez com que o país desse marcha a ré nas políticas nacionais e desenvolvimentistas que deram ao país um grande parque industrial e uma feição urbana e moderna. A ditadura militar impediu a igualdade que poderia resultar das reformas de base discutidas no governo João Goulart mas manteve o desenvolvimentismo e uma defesa dos interesses nacionais. Do governo Collor de Mello para cá assistimos a uma vergonhosa aceitação de uma posição subordinada do país que voltou a se tornar um fornecedor de matérias primas – ferro, soja e carnes – e um enorme importador de produtos industrializados de fora, a indústria encolhe e se enfraquece dia a dia. Este modelo não é capaz de empregar nossa grande população de forma sustentável, nem de assegurar um mínimo de autonomia econômica e política. Grande parte do patrimônio público vem sendo dilapidado, vendido ano após ano, até a Petrobrás que escapou das privatizações de Collor e FHC começa a ser esquartejada e vendida agora, só este ano o governo pretende vender 40 bilhões de reais em ativos e mais 60 bilhões no ano que vem, o que já foi anunciado pela atual gestão petista da mesma. Esse modelo e o farsesco crescimento à base do estímulo ao consumo dos últimos 12 anos se esgotaram, vivemos em recessão, com desemprego, inflação de volta e crescentes endividamento público e déficit nas transações econômicas e financeiras com o resto do mundo. Não há mais coelhos a serem tirados dessa cartola. Ou somos capazes de apontar um modelo autônomo, includente e capaz de gerar os investimentos necessários, ou veremos a crise se agravar.

O sistema político engendrado pelo general Golbery para tentar deter a derrocada da ditadura nos legou: 1) uma enorme distorção na representação política em favor do que há mais atrasado na política brasileira, as oligarquias de base rural dos estados menos populosos e em detrimento dos grandes centros onde a população é mais informada e organizadas; 2) um número enorme de partidos sem qualquer ideologia, verdadeiros balcões de negócio que transformam qualquer governo em reféns de coalizões espúrias; e 3) a rapinagem mais desavergonhada dos recursos públicos para financiar eleições e engordar patrimônios privados que impedem qualquer investimento capaz de modernizar a infraestrutura e criar políticas sociais que não apenas minorem a miséria, mas sejam capazes de eliminar a pobreza. O atual sistema político foi capaz de aprisionar até mesmo o PT, que nasceu e cresceu tendo como um dos seus pontos programáticos importantes a crítica do mesmo. A Carta aos Brasileiros que permitiu a primeira eleição do Lula foi uma clara declaração de rendição a este sistema e uma adesão do Partido ao jogo político do atraso. Este modelo ao fragmentar o Congresso que tem hoje 32 partidos com deputados e inviabiliza a cada dia a tomada de decisões minimamente estáveis, vem jogando cada vez mais as decisões para a Justiça, particularmente para o Supremo Tribunal Federal, o que constitui a prova mais evidente de sua falência.

A crise é dupla, é dos modelos econômico e político que aprisionaram a sociedade brasileira por décadas e inviabilizam um futuro melhor e digno. Nos últimos 12 anos a ilusão do consumismo, viabilizado pela carona do crescimento chinês anestesiaram a sociedade brasileira, que teve além da Bolsa Família a “bolsa Miami”, que permitiu à classe média viajar para o exterior como nunca na história, gastando dólares que foram baratos. Este tempo ficou para trás, o dólar fica cada dia mais caro, começamos a queimar as reservas internacionais para tentar conter um desequilíbrio externo crescente. O sistema político que assegurou uma sobrevida às oligarquias dos Sarney, Magalhães e outros, além de figuras absurdamente corruptas e atrasadas como Renan Calheiros, Fernando Collor de Mello, Eduardo Cunha e tantos outros está totalmente desacreditado e nem mesmo é capaz de dar conta de decisões capazes de recolocar o país nos trilhos. A crise também é do governo, eleito com uma proposta e que tenta fazer exatamente o contrário, apesar da retórica contraditória e esfarrapada para tentar salvar as aparências. O governo está acuado, perdendo uma atrás da outra no Congresso, na Justiça e nas ruas.

Podemos pretender que não é isto, que a crise é orquestrada de fora, que é financiada pela elite branca e golpista e outros clichês gastos que não convencem nem mesmo quem os defendem. Tentar continuar a esconder o sol com este tipo de peneira só facilitará que a direita tenha o caminho livre pela frente, em poucos momentos da história do país ela se manifestou de forma tão aberta, histérica e troglodita como vem fazendo nos últimos dois anos. Ela ainda tem uma influência relativamente pequena, ainda pode ser parada, mas isto depende de a esquerda assumir um papel verdadeiramente protagonista, para isto temos não só de reconhecer a crise, mas de denunciar e romper com o atual modelo econômico e com o sistema político. Trata-se de uma crise institucional de grandes proporções e não é hora de nos apequenarmos diante da mesma.