SUS ontem e hoje: Perdemos a luta por um sistema de saúde universal?
A solução da saúde enquanto direito universal não está em planos privados: temos de lutar contra o subfinanciamento do SUS e seus problemas de gestão.
Manuelle Matias* e Clédisson Júnior** | Publicado originalmente no site Carta Maior
O SUS (Sistema Único de Saúde) surge como principal expressão do ideário do Movimento de Reforma Sanitária Brasileira. Tal movimento nascido em contraposição aos anos de chumbo trazia consigo o desejo por um outro projeto de sociedade, mais justa, fraterna, igualitária. Era o sonho do socialismo que se implantaria a partir da reforma da saúde.
Embora até hoje o Movimento de Reforma Sanitária não se reduza à luta pelo SUS, este certamente significou sua mais sublime expressão de luta. A partir de 1988 proclamava-se constitucionalmente a saúde como direito de todos e dever do Estado, a maior e mais importante conquista política e social do povo brasileiro da contemporaneidade. Tal conquista, entretanto, não esteve livre de disputas que mesmo à época e até hoje imprimem significativas derrotas à plena efetivação do direito universal à saúde do nosso povo.
Não é possível desconsiderar o fato de que o SUS já tenha surgido com importantes derrotas. Não conseguimos efetivar o sonho de um Sistema de Saúde 100% estatal tal como almejavam os sanitaristas à época e como previa o Relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde. O esforço em fazer passar o texto constitucional e a correlação de forças naquela conjuntura permitiram a inclusão da iniciativa privada no interior do SUS. Herdamos, pois, um sistema que se intitula “único”, mas na verdade é misto já que é complementado pela iniciativa privada.
Apesar desse fato crucial que para muitos até hoje significou o calcanhar de Aquiles e principal razão de todo o processo de desmonte que hoje vivenciamos, a conquista do SUS tal como proclamada pela Constituição de 1988 significou uma grande vitória do movimento sanitarista na luta pela garantia do direito à saúde pública.
O fato é que sempre existiu uma distância considerável entre o chamado SUS legal e o SUS real. Aliado a isso uma série de fatores que contribuem para a criação de uma imagem negativa do sistema, o que compromete em grande medida sua credibilidade entre a população em geral.
Feitas tais considerações, gostaríamos de destacar o que consideramos ser a questão central no debate da saúde desde a constituição do SUS e que muito nos inquieta enquanto militantes, que tem a ver com a idéia do direito universal à saúde.
Parece-nos que o conceito do direito universal à saúde enquanto direito social não se tornou uma bandeira de luta e engajamento do conjunto da sociedade brasileira. À época e mesmo hoje não vemos um movimento popular massivo que reivindique a saúde enquanto direito primordial do ser humano.
Ora, o movimento sanitarista desde muito antes da constituição do Sistema Único foi alvo de ataques e graves constrangimentos que até hoje resultam em dificuldades encontradas para a consolidação do SUS.
Restringimos esta análise a um aspecto que consideramos de grande importância que é a nossa incapacidade em constituir uma ampla frente social de sustentação política ao SUS, em especial, junto a classe trabalhadora e à direção do movimento sindical.
À época, e em paralelo a todo este processo de construção de luta pela reforma sanitária e garantia de direitos sociais no campo da saúde, iniciava-se uma dinâmica de reorganização do movimento sindical que buscava romper com os vícios corporativistas e de atrelamento à instituição governamental.
No final dos anos 70 e inicio dos anos 80 surge um movimento de trabalhadores que, além de lutar por melhores salários e condições de trabalho, exigia uma democratização e independência de suas entidades de representação e, com o apoio de diversos segmentos da sociedade, faziam frente de oposição ao sistema político e econômico do regime ditatorial do governo brasileiro. Esse sindicalismo “de novo tipo” à época, que culminou na criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), estava predominantemente associado à defesa da liberdade de formação e atuação sindical, ao fim da contribuição compulsória e ao sindicalismo estruturado pela base, com ênfase nas comissões de fábrica.
Ao longo dos anos 1980, houve um grande incremento no número de greves e também foram organizadas várias greves gerais, em especial contra os sucessivos planos econômicos. Ao mesmo tempo, o movimento sindical desempenhou um papel fundamental no processo de redemocratização do país, tendo participado ativamente do processo de elaboração da nova Constituição, promulgada em 1988, através de mobilizações e de emendas populares. Essa pressão garantiu conquistas importantes para as trabalhadoras e para os trabalhadores na nova Constituição, e também possibilitou algumas mudanças na vida sindical.
Com a implantação do SUS a saúde passou a ser entendida como um direito social, abrangendo em sua competência a saúde do trabalhador. Mas o fato é que, devido a uma longa tradição histórica, a saúde do trabalhador sempre foi vista, inclusive por sindicatos, como um direito trabalhista, uma ação de segurança individual ou coletiva e não como um direito social.
Os trabalhadores brasileiros têm protagonizado importantes lutas em defesa dos direitos sociais e isso é inegável. Entretanto em relação à saúde enquanto direito social, apesar de as resoluções políticas das principais centrais sindicais enaltecerem a defesa do sistema único de saúde, posição assumida nos conselhos e fóruns de gestão de políticas públicas de saúde, por outro lado, os sindicatos também incorporaram em suas negociações coletivas a demanda por melhoria da assistência médico-hospitalar através de planos e seguros privados de saúde contratados pelas empresas.
Nos anos mais recentes, se cristalizou a idéia sobre a capacidade dos trabalhadores (por serem grandes consumidores de planos privados de saúde) e de suas organizações sindicais em se converterem em força social não interessada na melhoria e ampliação do SUS, apesar de considerados essenciais para seu fortalecimento.
Recentemente tornou-se motivo de preocupação por aquelas e aqueles que integram o movimento em defesa do SUS a pauta da Proposta de Emenda Constitucional nº 451 de 2014, que prevê como direito trabalhista o provimento de planos privados de saúde a trabalhadores.
Preocupa-nos sobretudo o fato de que a saúde seja vista como direito trabalhista (e portanto – em tese – concedida somente àqueles que trabalham) e não como direito social nato e portanto de todo(a) cidadã/cidadão.
É nítida a manobra de seccionar a sociedade com o objetivo de que não haja uma luta conjunta e uníssona pela efetivação do direito universal à saúde. A perda da “solidariedade de classe” seria responsável em grande parte por comprometer os direitos de cidadania conquistados até aqui.
Reconhecemos as sucessivas tentativas de ressignificação de conceitos nevrálgicos como é o de “direito universal à saúde” e “universalidade”, por exemplo, os quais tem sido apropriados pelos detentores do grande capital numa tentativa de dar sequência ao processo de mercantilização da saúde.
A disputa política que deve ser feita principalmente nas dimensões política, intelectual e social não tem a ressonância que desejamos. A impressão que temos a julgar pelos últimos acontecimentos desastrosos em relação ao SUS (ver artigo recente do sanitarista Nelson Rodrigues dos Santos onde ele aponta os inúmeros ataques sofridos pelo SUS desde sua constituição até os dias atuais) é que boa parte daqueles que estão na gestão do Sistema não acreditam no SUS tal como ele foi proposto na Carta Constitucional.
A Academia por sua vez, completamente subserviente a um modelo mercadológico de construção do conhecimento, afunda-se em um mar de acriticidade e alienação em busca da sonhada “excelência acadêmica” e tira do horizonte de lutas a perspectiva de formação de novos quadros em defesa do Sistema. A cada dia que passa perdemos o apoio popular na defesa ao SUS, processo amplamente corroborado pela mídia empresarial do país que insiste em vincular tudo o que é público à completa ineficácia e objeção.
Lidamos hoje com duas frentes de atuação que são antagônicas e disputam o ideário sobre o papel da saúde publica no país, uma frente que defende a ampliação e radicalização dos investimentos públicos no sistema universal e uma frente que aposta no desgaste deste modelo e que busca uma lacuna que possa ser preenchida pelos planos privados. Estamos diante de uma possibilidade concreta de desmonte do SUS. Neste cenário o sistema privado vai oferecendo formas complementares e tende a se expandir.
Compreendemos a necessidade de resgatarmos frente aos desafios da atualidade o “espírito” da Reforma Sanitária que surgiu de um projeto civilizatório articulado à luta pela radicalização da democracia na perspectiva do socialismo democrático.
Muitos são os desafios para a real efetivação de um Sistema universal de saúde com a proporção continental e populacional que tem o Brasil. O SUS é o único sistema de saúde no mundo que se pretende universal para mais de 100 milhões de pessoas. Essa aposta audaciosa esbarra diretamente em vários limites como o subfinanciamento do sistema, desafios de gestão dentro de um modelo federalista com várias especificidades locais, falta de apoio popular e vontade política entre outros.
É hora de nos interrogarmos: perdemos a luta por um sistema de saúde universal, integral, equânime e de qualidade?
*Manuelle Matias é mestranda em Saúde Coletiva do IMS/UERJ integra o Núcleo Cebes-RJ e o Fórum Nacional de Pós-graduandos em Saúde
**Clédisson Júnior é membro do Diretório Nacional do PT e integra o Fórum Sindical e Popular de Saúde e Segurança do Trabalhador de Minas Gerais.