Justiça social, democracia com direitos sociais e saúde: a luta do Cebes

Editorial da edição 116 da revista Saúde em Debate

 

A CRIAÇÃO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) como uma política universal para todos constitui-se em uma das mais importantes conquistas da sociedade brasileira no século XX.

 

Consagrado na Constituição Federal de 1988, nos seus artigos 196 a 1981, o SUS deve ser valorizado e defendido como um marco para a cidadania e o avanço civilizatório. O caráter universalista, igualitário e integral do projeto constitucional para a saúde, desde o seu início, enfrentou resistências de forças econômicas e políticas que têm barrado e dificultado a sua implementação. O principal mecanismo usado é impedir um financiamento adequado e permanente ao Sistema.

 

Os argumentos recorrentes são os de que se gasta muito em saúde e que os recursos são mal aplicados, quando se sabe que o Brasil investe poucos recursos públicos em saúde – menos de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) –, enquanto países com sistemas semelhantes investem cerca de 8%. Além disso, é importante salientar que a enorme desigualdade social existente no País produz vulnerabilidades que, ao lado do envelhecimento da população, aumentam o consumo dos serviços de saúde. Portanto, o debate sobre o financiamento da saúde deve partir da premissa de que quanto mais saúde um povo tem, de mais cuidado e assistência ele precisará. As projeções são de que os cuidados com saúde necessitariam de um aporte adicional de recursos de cerca de 37% nos próximos 20 anos.

 

Na contramão das necessidades, presentes e futuras, de saúde da população, o governo que assumiu o poder após o golpe de 2016, a serviço das elites nacionais, conseguiu aprovar no Congresso nacional emenda à Constituição que congela os gastos primários do governo federal por 20 anos3. Enquanto os gastos com a dívida pública seguirão sem limites, os dispêndios com saúde, educação, previdência e assistência social, infraestrutura, defesa, cultura e todas as demais despesas da gestão pública serão corrigidos apenas pela inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

 

A saúde, como direito previsto pela Constituição, estabeleceu um sistema essencialmente público e único, reservando ao setor privado um papel complementar, ou seja, de atuar onde o sistema público não estivesse presente, mediante necessidades explícitas sob a decisão e a regulação do SUS. Isso impediria desequilíbrios ou mesmo a substituição do setor público. Mas não tem sido assim. O que se viu nas três décadas de existência do SUS foi um crescimento exponencial do setor privado e a financeirização do setor, na medida em que a saúde passou a ser objeto de lucro e interesse do capital financeiro.

 

Entre os 200 milhões de brasileiros, um quarto está coberto por planos privados de saúde de forma heterogênea, uma vez que os setores de maior renda possuem planos com maior cobertura de procedimentos e diferentes serviços de hotelaria. Entre os que ganham 20 salários mínimos mensais ou mais, a cobertura é de cerca de 80%. A maior parte dos planos é contratada por empregadores, sendo que a contribuição patronal, evidentemente, é repassada ao preço final do produto ou serviço e, portanto, paga pelo consumidor final. Pela condição de benefício, ela não é tributada como rendimento do trabalhador. A parte paga por este, bem como para os planos contratados diretamente pelos indivíduos, é deduzida da renda bruta para efeitos de tributação. Há, portanto, simultaneamente, uma renúncia de arrecadação e um ‘imposto’ ao consumo oculto. A permissividade para a atuação do setor privado no País é evidenciada pela receita total das operadoras de planos de saúde, que, em 2015, foi de R$ 143 bilhões4, 1,4 vez superior ao orçamento executado no mesmo ano pelo Ministério da Saúde.

 

Apesar de todos os obstáculos impostos ao SUS, do crônico subfinanciamento e de políticas econômicas que privilegiam a servidão ao pagamento de juros e serviços da dívida, sua implementação conseguiu mudar a lógica e ampliar o acesso, antes vinculado ao mérito: quem pagava a previdência social tinha direito à assistência médica; os demais permaneciam excluídos do sistema. Com isso, mudamos de um modelo contributivo para um universalismo inspirado no modelo Beveridgiano.

 

No entanto, deve-se reconhecer que estamos longe de ter garantia de acesso e atenção de qualidade nos serviços de saúde. Ainda existem milhares de pessoas que ficam meses em listas de espera
para serem atendidas em serviços de média complexidade, o acesso a procedimentos eletivos é demorado, faltam leitos para internação hospitalar, há restrições para acesso a medicamentos e procedimentos. Mas é preciso contabilizar e celebrar os avanços de um sistema que incluiu milhares de pessoas, ampliou a rede de serviços, implantou a atenção básica e se configura como um importante setor produtivo, que gera empregos e ativa o parque industrial por meio da aquisição de insumos e tecnologias de saúde.

 

Os enormes problemas e desafios cujas causas principais são externas ao setor da saúde não significam o insucesso ou a inviabilidade do SUS. Tampouco, não o desqualificam como política pública nem indicam que é preciso criar outro sistema de saúde. A consciência da população com relação ao direito à saúde, no geral, é formatada pela lógica do consumo e orientada por uma mídia que não favorece os direitos sociais. A sociedade deve reconhecer a diferença entre direito à saúde e poder de compra de serviços de saúde; reconhecer o significado do SUS como uma conquista social que universalizou ações de atenção básica, de vigilância em saúde, de emergência e que tem 75% da população como usuária exclusiva. Tarefa difícil para os tempos individualistas, mas necessária se o Brasil escolher, nessa encruzilhada complexa, o caminho futuro de uma sociedade solidária e democrática.

 

A democracia envolve um modelo de Estado onde políticas sociais protegem os cidadãos e reduzem as desigualdades. A democracia participativa no âmbito da saúde é uma diretriz que valoriza a participação social, fortalece a cidadania e contribui para assegurar o exercício de direitos sociais, o pluralismo político e o bem-estar como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme prevê a Constituição.

 

Neste ano, em que se realizará a XVI Conferência Nacional de Saúde (CNS) (8a+8 = 16a), o ideário de democracia social e de justiça social do Movimento da Reforma Sanitária (MRS), consubstanciado no lema ‘Saúde é democracia’, é retomado de forma mais radical para alimentar o debate nacional sobre o projeto de saúde que queremos para todos os brasileiros e que buscamos construir ao longo desses 30 anos. A bandeira do MRS de então era a da construção de um novo sistema de saúde, o SUS. Nossa bandeira, hoje, é a defesa intransigente da saúde como expressão do combate às desigualdades sociais, como direito universal que se materializa nos seus aspectos da vigilância e da atenção no SUS. Defesa de um Estado democrático cujo centro para seu desenvolvimento sejam as pessoas e as populações, e não os interesses do mercado.

 

O debate que o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) propõe parte da constatação de que golpe de Estado não foi engendrado apenas para retirar um partido do governo, mas para devolver o Brasil a uma condição subalterna no jogo internacional. A cooperação das elites políticas no poder e de setores do judiciário e do Ministério Público com autoridades estadunidenses, sem intermediação do poder executivo, configurando uma ilegalidade, tem como consequência direta o desmonte da cadeia de petróleo e gás no País e o enfraquecimento do programa nuclear brasileiro. A inflexão nas relações internacionais do Brasil pós-golpe, com esvaziamento do BRICS, do Mercado Comum do Sul (Mercosul), da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e realinhamento automático com os Estados Unidos (EUA), deixa claro que, no Brasil, ocorreu uma guerra não convencional, onde o povo perdeu o pouco que tinha conquistado.

 

As mudanças promovidas pelos governos chamados populares, mesmo que tímidas em muitos aspectos, trouxeram à maioria do povo uma experiência de que a miséria não é condição natural e que a pobreza não é inexorável. Daí, a aposta no caminho da politização da população, sobretudo das classes mais exploradas. Não há mais espaço para negociar ou adiar as reformas necessárias e estruturantes. A rapidez e a avidez do desmonte do País já apresentam seus resultados com a deterioração das condições de vida e de trabalho de setores que na última década haviam saído da condição de pobreza, com melhoria da condição dos trabalhadores. A reversão dessa tragédia nacional não virá das classes dominantes, mas das classes e frações de classes que estão sofrendo e sofrerão as consequências do desmonte do Estado brasileiro e da perda de direitos. O Cebes estará junto nessa luta.

 

Maria Lucia Frizon Rizzotto
Editora científica da ‘Saúde em Debate’

 

Ana Maria Costa
Diretora executiva do Cebes

 

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato
Diretora de política editorial do Cebes