“As Pandemias na História e o Desafio da Covid-19” – texto introdutório de uma série sobre Saúde Pública do núcleo Chapecó do Cebes

Maria Eneida de Almeida, Mestre e Doutora em Saúde Coletiva, IMS-UERJ, Docente do curso de medicina na Universidade Federal da Fronteira Sul – campus Chapecó, Coordenadora do CEBES-Núcleo Chapecó. O texto abaixo é o primeiro de uma série sobre as Pandemias na história da humanidade em busca de contribuir na reflexão acadêmica sobre a Covid-19

As epidemias e as pandemias foram os fatores fundamentais para a construção de instituições de Saúde Pública nos territórios do mundo todo. Com a pandemia da Peste Negra, no século XIV, houve a implantação do primeiro regulamento sanitário entre os povos, que foi a notificação compulsória, o isolamento social e a quarentena. Tudo começou a ser organizado na Itália.

Deste momento em diante, foi crescente a necessidade de uma maior articulação técnica e política com institucionalização da assistência nos territórios, com a finalidade de atender a questão da prevenção das doenças e da proteção dos povos, sobretudo do comércio que se tornava instável e mesmo decadente quando as populações eram afetadas ou dizimadas por epidemias ou pandemias e os territórios precisavam ficar isolados.

No século XIX, os desdobramentos associados à Revolução Industrial causaram, por um lado, condições urbanas crescentemente precárias nos países envolvidos neste processo e, por outro, ocasionaram grandes ondas migratórias. Esses fatores fizeram aumentar a velocidade e a frequência dos surtos de doenças infecciosas e gerou várias epidemias e permanentes riscos de pandemias. A partir de 1841, uma série de conferências internacionais foi realizada para proteção do mercado internacional cujos trabalhadores e mesmos os escravos precisavam estar sãos e, como consequência, para a defesa da sociedade frente às doenças.

O campo da Saúde Internacional foi estruturado institucional e mundialmente somente após a II Guerra Mundial com a criação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que é uma das instituições que compõe a Organização das Nações Unidas (ONU).

Não seria simples falar de pandemias na história sem acompanhar a trajetória da construção do campo de Saúde Internacional para, ao final, se compreender o processo histórico-estrutural que acompanha a construção dos sistemas nacionais de saúde e, assim chegarmos ao Sistema Único de Saúde (SUS) frente à Pandemia de Covid-19.

A Saúde Internacional é um recorte do campo das Relações Internacionais que se articula com a Saúde Pública e tem por objetivo, além de prevenir a transmissão de doenças, melhorar a saúde e as condições de vida das populações dentro dos limites determinados pelos interesses nacionais dos Estados envolvidos. Sua operacionalização se dá através do intercâmbio de conhecimentos, informações, financiamentos, investimentos, tecnologias, influências políticas e constitui um conjunto de interações sanitárias que ocorre em escala global.

A dinâmica da Saúde Internacional se orienta pelo caráter inter-relacionado da saúde em todo o mundo e pelos esforços para melhorá-la em todos os países. A saúde como assunto internacional abrange, tradicionalmente, seis pontos: vigilância e controle de doenças com risco regional/global; regulações, normas e padrões; intercâmbio de conhecimentos e informação em saúde; políticas de saúde e de ciência e tecnologia; cooperação técnica e financeira; proteção da saúde de refugiados e populações vulneráveis. (OPAS, 1992).

Para Ulysses Panisset (1992), as diferentes dimensões da saúde (ideológica, política, econômica, cultural, étnica, demográfica, epidemiológica e ecológica) que operam no cenário nacional são os elementos de uma cadeia que articula as reações e as batalhas ideológicas no campo internacional. Os países com maior poder podem utilizar o campo da Saúde Internacional para promover ou mesmo para desacreditar diferentes ideologias de Estado, além de que este é um campo que reflete a definição das prioridades e das políticas nacionais dos governos.

A natureza ideológica de um Estado dá forma às suas políticas de saúde e define suas relações com outros países. “A ideologia dominante é que, em última instância, determina as políticas de saúde principais de um Estado-nação”. (PANISSET, 1992, p. 173). E diz, ainda, que o Estado que promove a intervenção global na base da política de contenção de ideologias opostas trata, também, de controlar o processo saúde-doença em relação às suas próprias pretensões e interesses geopolíticos globais.

É relevante lembrar que o movimento de formação dos Estados nacionais começou em meados do século XVII, desenvolveu-se até meados do século XIX, quando se consolidou o sistema interestatal ou, como se conhece mais, o Sistema Mundial Moderno e, a partir deste ponto, os Estados-Impérios ou as Grandes Potências, intensificaram seus movimentos expansivos sobre os continentes e sobre o mundo. Na arena internacional, a saúde sempre foi um ponto de alerta, e este foi crescente conforme os efeitos da Revolução Industrial que moldaram as sociedades ocidentais.

A questão da internacionalização dos riscos para a saúde das populações pelas fronteiras nacionais passou a ser central no relacionamento entre os Estados, simplesmente pelo fato de que os agentes biológicos que causam as doenças atravessam fronteiras sem pedir permissão, se o Estado não se posiciona com ações preventivas a tempo de contê-las.

Com o objetivo de contribuir com a pandemia da Covid-19, a primeira grande pandemia no início do século XXI, foi feito um estudo específico sobre a história das pandemias.

Para tal, o caminho metodológico desenhado contribuiu para a reflexão dos fundamentos históricos das pandemias que se abateram sobre o mundo. Este estudo tomou uma dimensão que ultrapassou o tamanho de um texto para publicação em periódico científico e passou a ter características de um ensaio. De ensaio, a ideia foi mais uma vez ampliada e passou a ser formatado em partes, resultando em uma série de textos com uma sistematização feita em grandes períodos da história da humanidade com o olhar voltado à Saúde Pública, demonstrando a forma que as doenças impactaram e marcaram épocas nas sociedades, sobretudo, do Ocidente. O campo de conhecimento científico que permeia e constitui o arcabouço teórico do estudo é a Saúde Pública Internacional, ou seja, buscamos entender sobre a organização e a comunicação entre os povos e os Estados nacionais, frente aos desafios das doenças infecciosas.

Os grandes períodos históricos estão sistematizados em:

  • capítulo I – Antiguidade e Idade Média, onde destacamos o surgimento da notificação compulsória, o isolamento social e a quarentena;
  • capítulo II – Idade Moderna, onde buscamos pelos primeiros movimentos de regulamentação para prevenção das doenças infecciosas;
  • capítulo III – a Idade Contemporânea, que organiza a criação da saúde pública nos estados territoriais no século XIX em decorrência da Primeira Revolução Industrial e a institucionalização da Saúde Pública no mundo com a criação da OMS, após a Segunda Guerra Mundial; e o
  • capítulo IV – onde poderemos dar uma contribuição para o desenvolvimento de um ponto de vista sobre a Pandemia da Covid-19.

As fases da história detalhada da Saúde Pública, sobretudo no Ocidente, tiveram historiadores por meio dos quais este estudo está profundamente alicerçado, como George Rosen, que fez uma inestimável análise historiográfica na sua obra clássica ‘Uma História da Saúde Pública’ e Stephan Ujvari, com seu clássico de grande importância ‘A História e suas Epidemias’.

Alguns questionamentos foram essenciais e deram início a esta reflexão, contribuindo no caminho metodológico teórico que levou à elaboração desta série.

  1. i) De que forma, ao longo do tempo, foi sendo construída a necessidade de existência de sistemas nacionais de saúde?
  2. ii) Quais fatores impulsionaram os Estados a tal construção?
  3. iii) Até que ponto as epidemias e as pandemias foram forças para a construção de um novo campo de conhecimento entre os Estados?
  4. iv) Quais eram as necessidades dos povos para a prevenção das doenças?
  5. v) O que tais necessidades interferiram no processo de organização de sistemas de saúde?
  6. vi) Até que ponto os sistemas de saúde de acesso universal, como o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, contribuem na prevenção de epidemias e pandemias?
  7. vii) De onde veio a necessidade de notificação compulsória, isolamento social e quarentena?
  8. viii) Como foi construída a Saúde Pública Internacional?

Com esta iniciativa, o Núcleo Chapecó-SC se organiza para contribuir na pensação sobre a Pandemia da Covid-19 no Brasil e no mundo. Momento obtuso da trajetória humana, como muitos outros já houve. E é com o que já se estudou, já se aprendeu e já se agiu que nos empenhamos a desenvolver a temática a qual, em pleno início do novo milênio, a todos mobiliza.

Referências