‘A PEC Emergencial (PEC 186/2019) acaba com o SUS’, diz Sônia Fleury

A aprovação da chamada PEC Emergencial (PEC 186/2019), que pretende acabar com os pisos constitucionais de investimento em Saúde e Educação com a desvinculação total do orçamento do Governo Federal, dos Estados e Municípios, seria o fim do Sistema Único de Saúde (SUS), aponta Sônia Fleury, pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. “Toda a sociedade perde (com aprovação dessa PEC). A proposta acaba com o SUS, que foi criado para ser um sistema único descentralizado, mas com ações de saúde articuladas. O SUS seria substituído por uma miríade de ações de saúde, o que seria pouco efetivo“, explica.

A pretexto de abstrata eficiência ou suposta alocação democrática pelos governantes de ocasião, a PEC traz consigo o risco de aplicação curto prazo e fisiológica dos escassos recursos públicos, além do risco de descontinuidade de serviços públicos essenciais“, explica Sônia.

O relator da proposta, senador Márcio Bittar (MDB), diz que a PEC devolveria a autonomia do orçamento aos governantes. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), em entrevista ao jornal O Globo, disse que “Na Saúde tem recursos demais. O problema da Saúde é gestão. Não estou dizendo que com essa medida você vai tirar dinheiro, não (da Saúde e da Educação). Estou dizendo que, quando você desvincula, você mantém o Orçamento todo para a necessidade do país naquele momento“.

A Constituição diz que estados devem destinar 12% da receita à Saúde e 25% à Educação. Municípios têm de gastar 15% da receita com Saúde e 25% com Educação. E no caso do Governo Federal, o piso de gastos nas duas áreas não pode cair e ainda deve ser corrigido pela inflação do ano anterior.

No início do mês de fevereiro, o Ministério da Saúde pediu ao Ministério da Economia um crédito suplementar de R$ 5,2 bilhões para custear principalmente leitos de UTI para pacientes com covid-19. Sem esses recursos, o número de leitos disponibilizados para pacientes da pandemia caíram nos últimos meses.

Para Sônia Fleury, a PEC Emergencial vai tornar permanente a falta de coordenação de políticas de saúde que vemos hoje no governo federal, com resultados desastrosos no combate ao SARS-Cov-2.

Reportagem do Estado de São Paulo aponta que, além das capitais, sistemas de saúde também de municípios do interior do Brasil estão saturados, com 100% dos leitos ocupados, com filas de espera por vagas de UTI. A matéria cita alguns exemplos em Minas Gerais – Uberlândia e Monte Carmelo, por exemplo -, ou em São Paulo – Araraquara, Jaú, Valinhos, Botucatu -, Paraná – Maringá -, Rio Grande do Sul – São Leopoldo e Gravataí -, Santa Catarina – Chapecó -, Pará – Santarém, Mato Grosso do Sul – Ponta Porã – Ceará – Juazeiro do Norte, e outros.

De acordo com a ex-presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), “ficou ainda mais claro nessa pandemia que a Saúde é um complexo sistema que envolve produção de insumos, produção de fármacos, incorporação tecnológica, rede assistencial, recursos humanos e outros fatores“.

A proposta não é uma recentralização de recursos na mão do Congresso, como um coletivo, mas uma fragmentação da Saúde, com cada um atendendo a sua clientela. Paulo Guedes quer passar mel na boca dos parlamentares“. Segundo a sanitarista, a proposta é uma forma de costurar apoio de congressistas ao Governo Federal.

Sônia também chama a atenção ao momento de apresentação da PEC: durante uma pandemia mundial que está pressionando sistemas de saúde pelo mundo todo. “Isso é tão absurdo e incompatível com a realidade que vivemos hoje. Por mais que o Centrão goste de receber dinheiro e faça política clientelista, esse é o pior momento de ter essa discussão de fragmentar o orçamento da Saúde e acabar o SUS“.

Governadores

A pesquisadora também aponta que seria uma forma de diminuir o poder político dos governadores, que bateram de frente ao governo federal na condução do enfrentamento à pandemia. “A PEC acaba com poder dos governadores. O dinheiro vai para o município, que vai fazer o que quiser“.

Governadores cresceram diante da opinião pública. População compreende os esforços que estão fazendo, mas esse esforço desprendido pelos Estados não supre o vazio deixado pelo Ministério da Saúde. É impossível pensar num sistema nacional onde cada um está definindo quem é a população de risco que deve ser vacinada primeiro. Isso compromete o resultado da vacinação, compromete as compras de insumos…“.

Uma outra fala de Arthur Lira reverbera essa questão de “diminuir o poder dos governadores“. No processo de eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, ele comemorou que o processo de votação seria presencial e não virtual, que poderia sofrer a influência dos governadores. Lira, por outro lado, foi eleito com ajuda do governo federal, que liberou R$ 3 bilhões em emendas parlamentares para ara 250 deputados e 35 senadores aplicarem em obras em seus redutos eleitorais.

Ela acredita que o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), o Conselho Nacional de Saúde (CNS) vão se mobilizar para evitar que a PEC seja aprovada. “São atores políticos que percebem a necessidade de articulação de políticas de Saúde no Brasil“.

Inconstitucionalidade

Caso a PEC seja aprovada, Sônia acredita que a proposta deverá ser ser judicializada pois é inconstitucional. “A Câmara não pode mudar o que para muitos é uma cláusula pétrea da Constituição“. A Seguridade Social, formada pelos subsistemas Saúde, Previdência Social e Assistência Social é um dos pilares do nosso ordenamento constitucional. “E um dos pilares da Seguridade Social é seu orçamento“, explica.

A pesquisadora diz que a PEC 186/2019 vai na mesma linha da Desvinculação das Receitas da União (DRU), criada no ano 2000 como um esforço num esforço anti-inflacionário e para dar estabilidade ao Plano Real: “Tira dinheiro da Saúde para pagar juros da dívida pública. Era uma medida que deveria ser temporária, mas está sendo sempre renovada“.

Para finalizar, Sônia aponta o absurdo da fala de Arthur Lira: “Ele diz que Saúde tem orçamento, mas não tem gestão. Mesmo se isso fosse verdade, a PEC, ao desmontar o SUS e distribuir o dinheiro da Saúde em práticas clientelistas, não melhoraria esse cenário“.