“Agenda Brasil”, se levada adiante, haveria um SUS para os que podem pagar e outro dos indigentes
Nessa segunda-feira 10, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), encaminhou ao Planalto a chamada Agenda Brasil: 28 medidas para enfrentar e superar a atual crise econômica.
Entre elas: avaliar possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda. Considerar as faixas de renda do IRPF.
“Essa medida submete o direito à saúde ao capital e ao mercado”, denuncia a médica Ana Maria Costa. “Se levada adiante, é o fim do SUS.”
Ana Maria Costa é presidente do Centro de Estudos em Saúde (Cebes), professora da Escola Superior de Ciências da Saúde-ESCS/DF e coordenadora geral da Alames (Associação Latino-americana de Medicina Social).
Segue a íntegra da nossa entrevista, publicada originalmente no Blog da Saude, no site Viomundo.
Viomundo — Passava pela cabeça da senhora que, entre as medidas para reverter a atual crise econômica do País, fossem propor o pagamento do SUS?
Ana Costa — A pauta liberal está sob a mesa e a crise é cenário para seu protagonismo, tal como estamos assistindo! O ajuste econômico proposto pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e assumido pelo governo federal evidencia isso.
A tentativa de amortecer o golpe político pressiona o governo a adotar medidas antipopulares que só interessam aos atores golpistas. Isso se refere tanto ao pagamento de assistência no SUS como às demais propostas no pacote de propostas do Senado Federal, todas elas lesivas aos direitos sociais, distantes dos interesses do povo e favoráveis ao agronegócio, ao mercado e ao capital.
Já não sabemos mais o que esperar mas o certo, e que deve ser denunciado e alertado ao Governo, é que o direito à saúde está sendo dilapidado continuamente e isso terá conseqüências gravíssimas na sociedade e na economia, a curto prazo. Nossa condição demográfica e epidemiológica exige melhorias e ampliação do SUS e não o seu desmonte. O povo brasileiro precisará cada vez mais do SUS para cuidar das condiçoes crônicas de saúde que, inclusive não interessam ao mercado privado de saúde. Mas as coisas não andam bem: de um lado, por meio de subsídios, renúncia fiscal e autorização para a ação do capital estrangeiro o país expande a mercantilização da saúde e a financeirização do setor. Do outro, o conjunto de medidas adotadas no ultimo ano agravam ainda mais o persistente subfinanciamento do SUS e compromete a sua sobrevivência. Enquanto isso, propostas como a taxaçao das grandes fortunas, medida adotada pelos países capitalistas centrais não ganham espaço político e nem passam por aqui onde os donos do capital nao querem perder e nem serem solidários com a sociedade. A voracidade acumulativa dessa parcela da sociedade é compatível com a barbárie em termos civilizatórios.
O pagamento à assistência no SUS representa a segmentação dentro do sistema público de saúde, que foi criado para ser universal e integral.
Viomundo – A segmentação significaria ter um SUS de segunda, terceira classe?
Ana Costa – É preciso lembrar que o SUS foi e deve sempre ser concebido sob os valores coletivos de solidariedade e igualdade próprios do modelo de proteção social criado pela Constituição de 88 , valendo-se do financiamento de cada cidadão por meio de impostos, de acordo com sua capacidade contributiva, mas todos têm o direito de usar igualmente o sistema , conforme suas necessidades de saúde e nunca mediante o critério de sua capacidade de pagar.
Estudos no Brasil e no exterior mostram que essa modalidade de co-pagamento que está sendo proposta, prejudica muito mais as populações mais pobres que os segmentos médios e ricos da população. Por isso o SUS tem como principio a universalidade dando conseqüência ao direito à saúde e a gratuidade compõe sua base ético- política. A cobrança seletiva por atendimento desfigura o SUS pois cria portas de entrada diferenciadas para ricos e pobres e sob essa perspectiva a rede pública passaria a incorporar a lógica privada, enquanto planos e seguros de saúde ficariam ainda mais à vontade para, como já fazem hoje, despejar no SUS a demanda de alto custo, de idosos e de doentes crônicos.
Segmentar é deixar de ser inteiro, único, ser partido, fraturado: um SUS para os que pagam e outro para os que não podem pagar. Um SUS diferente do outro, naturalmente. Reforço que esse caminho cria vícios e privilégios na rede de serviços e nos modos de atender e ser atendido, rompe com os princípios da universalidade e integralidade sob os quais o SUS foi concebido e que necessitaria não retrocesso mas sim consolidar-se. O Brasil perde muito de um sistema que tem melhorado muito a saúde no país, apesar de todas as suas dificuldades.
… é deixar de ser inteiro, único, ser dividido. Um SUS para os que pagam e outro para os que não podem pagar. Um SUS diferente do outro, naturalmente. Isso cria vícios e privilégios na rede, nas formas de atender e ser atendido… Rompe com os princípios da universalidade e integralidade sob os quais o SUS foi concebido e que necessitaria não retroceder mas consolidar-se. São perdas de direitos.
Viomundo – A dupla porta nos serviços públicos de saúde que começou pelo Estado de São Paulo está hoje desgraçadamente disseminada pelo País. Ou seja, eles atendem o público e o privado, seja por meio dos planos de saúde, seja particular, mesmo. A proposta do Renan significa a dupla porta dentro dos serviços que atendem os próprios pacientes do SUS?
Ana Costa – Lamentavelmente, sim… A dupla porta é uma estratégia perversa e movida pela introdução de uma ética privada no processo de atenção e de cuidado à saúde, decompõe o caráter da relevância publica que a saúde assume na Constituição de 1988. A dupla porta opera exatamente assim: uma, de baixa qualidade, mais precária, para os que não podem pagar. E outra, melhor – com mais segurança, tecnologia e qualidade- aos que pagam.
O que fica ainda mais patente é que as forças que querem ampliar o mercado da saúde, se omitem quanto ao debate conseqüente sobre o financiamento adequado do SUS ao considerar equivocadamente a estrategia de co-pagamentos como fontes estáveis de receitas, anomalia suprimida até mesmo nos Estados Unidos, com o Obamacare.
Se já é crítica a situação da segmentação setorial na saúde hoje presente na perversa condição de convivência entre setor publico e privado, essa proposta do pacote do Renan institui o pagamento no SUS “aos que podem pagar”. Logo, piora ainda mais a vida da população.
Viomundo – Em termos práticos, o “piora ainda mais” vai representar o quê?
Ana Costa — Piora ainda porque segmenta o SUS, separa um SUS com melhores serviços e maior segurança e garantias aos que podem pagar e outro aos indigentes, não pagantes. Esses vícios nos serviços e no sistema são a pá de cal no projeto constitucional para a saúde.
Essa proposta do Renan deixa claro de qual lado estão os seus proponentes, que seguramente não é o dos interesses públicos e coletivos.
Viomundo — Essa proposta significa o fim do SUS, como estabelecido na Constituição de 1988?
Ana Costa – Ao longo das quase 3 décadas de implantação do SUS sob a onda e os interesses da redução da presença do Estado nas políticas sociais, tem ocorrido muitos problemas e sabotagem à sua consolidação. Entretanto tem uma multidão de gestores, conselheiros, trabalhadores, usuários e movimentos sociais que têm impedido mais retrocessos.
O SUS é o sistema criado pela Constituição 1988 para, integrado às politicas sociais e no contexto da seguridade social, garantir a assistência à saúde. A Constituição de 1988 também define que saúde é direito universal e dever do Estado. Mais uma vez todos precisarão se mobilizar e negociar com os Poderes da Republica para abortar essa proposta. Ou , caso contrario, acabaremos com o SUS Constitucional.
A gratuidade é inerente à responsabilidade do poder publico e está associada diretamente à universalidade.
O pagamento não apenas exclui, mas cria segmentos de classe de usuários do SUS. Isso gera, como você bem já observou antes, tipos diferentes de de atendimentos diferentes…Atendimento de primeira categoria, de segunda…
Pagar o SUS é medida que ainda impulsiona por pelo menos duas vias o setor de planos de saúde. Primeiro o usuário do SUS perguntará: por que usar e pagar o SUS se na sua avaliação seria melhor pagar um plano? Segundo, seria a situação que comentamos acima, do uso do SUS como solução de atendimento aos casos que nao dão lucro aos planos privados de saúde, o caso dos idoso crônicos, etc
Viomundo – Doutora, curiosamente, não há nenhuma proposta para fazer com que os planos de saúde ressarçam ao SUS pelos atendimentos nos serviços públicos.
Ana Costa – Embora o governo diga que quer cobrar devidamente os serviços que o SUS presta a clientes de planos de saúde, esse processo tem sido muito lento e custoso e por isso o ressarcimento dos planos de saúde aos cofres públicos ainda é irrisório…E por cima disso, o governo ainda perdoa dívidas das operadoras de planos de saúde. Os eleitos com apoio das empresas de seguro privado de saúde têm sido bastante corretos no cumprimento dos compromisso assumidos perante elas. Nao têm nenhuma culpa ao preterir os interesses públicos e isso precisa ser advertido à população. Da mesma forma que é preciso ampliar a consciência de que planos são seguros, que a pessoa paga a vida inteira e quando interrompem perdem tudo o que pagaram. Isso tem sido muito freqüente quando as pessoas aposentam e nao podem continuar pagando planos que seu empregador oferecia como complemento de salário.Justo quando mais precisam. A lógica é essa: lucrar com quem precisa menos de serviços de saúde, jovens e saudáveis adultos.
É esquecimento ou vale a lógica de proteger o capital, no caso os donos das empresas de planos de saúde?
O setor privado dos planos cresce sempre acima da economia do país e as operadoras ainda reclamam dos lucros. Até quando o setor não vai ser devidamente regulado?
O Governo precisa decidir e estabelecer até quando e quanto deve crescer o mercado de planos privados de saúde. Já está enorme, com quase 60 milhões de pessoas. Dos maiores mercados de planos do mundo. Precisam definir e praticar uma base regulatória efetiva nao apenas de cobertura de procedimentos, mas de custos e todas as garantias para os segurados. E precisam melhorar o SUS para que a população possa sentir se segura com o sistema publico pelo qual já paga pela via dos tributos. Tem mais. A saúde precisa ser salva do projeto de ampliação do percentual e do tempo de vigência da DRU (desvinculação dos recursos da União), e o Congresso Nacional precisa discutir e decidir como melhorar o financiamento do SUS, tributação de grandes fortunas para reverter ao SUS, ampliar participação do financiamento público no PIB setorial, temas que tem sido deixados de lado nesse cenário de crise cujas conseqüências recaem sobre a população brasileira, especialmente pobres..
Viomundo — A partir de agora o que fará o Cebes em relação a essa proposta indecente, que mais uma vez privilegia o capital, os mais ricos, e ferra os mais pobres?
Ana Costa — Estamos mobilizando forças, ampliando alianças, discutindo e apostando na mobilização da sociedade e no bom senso do governo para não entrar para a historia como o governo que retrocedeu os direitos sociais e trabalhistas ao período pré- Constituição 1988, a Constituição cidadã. As instituições e a legislação conquistadas não podem servir apenas para estruturar o sistema de saúde, mas também para proteger o direito à saúde de qualquer ameaça.
E á assim que conclamamos que se manifestem os gestores do SUS, o Ministro e Secretários de Saúde, o Ministério Público e o Poder Judiciário, os Conselhos de Saúde, os profissionais de saúde, os trabalhadores, usuários e movimentos sociais. Hora de defender o SUS e ao mesmo tempo avançar na solução de seus crônicos problemas, particularmente os relativos ao financiamento estável, e portanto vinculado e suficiente.