“Sem mais recursos, medidas terão impacto limitado”
Via Carta Capital 16/7/2013
Para o ex-ministro José Gomes Temporão, País precisa criar uma carreira federal para médicos e outros profissionais da saúde
Ex-ministro do governo Lula e atual diretor-executivo do Isags, braço de saúde da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), José Gomes Temporão defende a estruturação de uma carreira federal como alternativa para sanar a falta de médicos nas periferias e municípios o interior. O especialista, entretanto, adverte: sem ampliar os recursos para o setor, qualquer iniciativa terá impacto limitado no enfrentamento da crise da saúde. “A voz das ruas que exige uma saúde de melhor qualidade não será atendida sem a aprovação em definitivo de uma sólida base de sustentação econômico-financeira para o SUS”. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista a Carta Capital.
CartaCapital: Faltam médicos no Brasil? O maior problema é a falta de profissionais ou a má distribuição deles pelo território?
José Gomes Temporão: Não existe consenso entre os especialistas de que o nosso país sofra com a escassez no número global desses profissionais. Há escassez de alguns especialistas como anestesistas, pediatras, geriatras, patologistas, médicos de família e clínicos gerais. Mas existe consenso de que a principal questão envolvendo os médicos brasileiros é a sua concentração nas cidades e regiões mais desenvolvidas do país. E isso não se constitui em uma novidade e nem se limita aos médicos, pois todos buscam locais que lhes permitam exercer com qualidade sua profissão. É um processo similar ao que ocorre em inúmeros países e sociedades. A questão é: como implementar políticas que permitam uma distribuição mais adequada desses profissionais?
CC: O que o senhor propõe?
JGT: Defendo a criação de uma carreira federal para médicos e outros profissionais assim como a aprovação de uma lei que estabeleça o serviço civil obrigatório para os mesmos. Nessa perspectiva, ao concluírem sua formação, trabalhariam nessas localidades por dois anos e esse trabalho contaria pontos em seu processo de especialização. Seriam duas medidas importantes para garantir a presença de profissionais de saúde nas áreas mais desassistidas, além de investimentos em infraestrutura tecnológica e científica.
CC: O governo anunciou a extensão dos cursos de medicina de 6 para 8 anos, os dois últimos reservados à prestação de serviços no SUS, com foco na atenção básica, urgência e emergência.
JGT: Essa a meu ver foi a medida mais importante anunciada e que, se bem conduzida, pode ter um grande impacto na qualidade da formação médica. Ela vai exigir profundas mudanças na organização do ensino em medicina e pode finalmente aproximar o perfil do médico a ser formado das necessidades da população atendida pelo SUS. E recoloca a questão da formação profissional dentro do enfoque estratégico da saúde pública. Ou seja, a centralidade da formação médica passa por uma ética e técnica necessárias ao exercício no sistema público. É desejável que essa mesma abordagem seja estendida às demais profissões da saúde como fisioterapeutas, dentistas, terapeutas ocupacionais, psicólogos, enfermeiros entre outros.
CC: Diversas associações médicas criticaram a medida…
JGT: Entendo que a proposta pode amadurecer e se aproximar dos 7 anos de formação (5 anos para o 1º ciclo e 2 anos para o 2º) que com mais 3 anos de residência em média, levaria o tempo de formação do médico para algo em torno de 10 anos, similar ao que ocorre hoje. Entretanto, essa medida, que é uma antiga aspiração de especialistas e entidades da área da saúde, foi anunciada no contexto da forte rejeição das entidades médicas às demais medidas referentes à interiorização dos médicos, especialmente a chamada de médicos estrangeiros sem a utilização do Revalida. Giovanni Berlinguer, ilustre sanitarista italiano que nos inspirou no início da reforma da saúde no Brasil, já nos dizia que não se faz a reforma da saúde contra os médicos.
CC: Contratar estrangeiros é a melhor forma de resolver o problema da falta de médicos nas periferias e no interior?
JGT: Um dos problemas se centra no tipo de vínculo que será proposto: uma bolsa de 10 mil reais mais ajuda de custo, sem qualquer tipo de proteção trabalhista ou a criação de uma carreira que permita a esses profissionais ter uma perspectiva de longo prazo para sua vida profissional? Esta me parece ser a questão central para garantir a presença permanente de profissionais motivados e qualificados na atenção básica. Penso também que esse debate deveria talvez ter começado a tentar responder a uma outra questão: que tipo de modelo assistencial queremos para o Brasil? Estaria esse modelo centrado na figura do médico? E o conceito de integralidade da atenção tão caro para nós? O trabalho clínico na base do sistema, no território, deve se apoiar em um trabalho em equipe que envolva vários profissionais centrado no cuidado também com quem cuida: Médicos isolados em comunidades isoladas pouco poderão fazer.
A polêmica importação de médicos levanta também a questão de que não se trata de importar tecnologistas mas profissionais que, vindos de outras culturas e contextos, necessitam de uma ambientação para melhor compreenderem as situações geradoras de mal estar e sofrimento de uma determinada população. Isso leva tempo e necessita de supervisão e de um suporte multiprofissional. Mas existe ainda uma demanda urgente sobre a organização do trabalho médico que é a garantia constitucional do acúmulo de dois empregos públicos, com atividades privadas em hospitais, clínicas e consultórios; o que traz uma série de outros problemas por demais conhecidos.
CC: Uma das principais críticas de entidades médicas à iniciativa diz respeito à possibilidade de importar médicos com a dispensa do Revalida, avaliação realizada pelo MEC para a validação de diplomas do exterior. Não é uma aposta arriscada?
JGT: O Revalida foi estabelecido durante a minha gestão e do ex-ministro Fernando Haddad no MEC. Foi implementado após um longo e complexo processo de construção de consenso junto aos órgãos que representam os médicos e as universidades. A avaliação do que aconteceu até aqui desde sua implantação mostra um baixíssimo grau de aprovação dos candidatos que se submeteram a ele. Especula-se que o mesmo teste aplicado aos formandos das nossas faculdades resultaria em alto grau de reprovação. Caberia reavaliar se o exame está adequado às exigências para o exercício profissional ou se há rigor excessivo em sua formulação. Mas não me parece boa solução não utilizá-lo como principal critério na revalidação de diplomas.
CC: Outra crítica recorrente diz respeito à suposta falta de condições de trabalho nas periferias e em municípios do interior. Médicos se queixam de trabalhar em hospitais de estrutura precária, de não ter o suporte de equipes multidisciplinares tampouco acesso a uma simples rede de diagnósticos, como exames de sangue ou radiologia. Isso não interfere nessa concentração de médicos nas áreas mais ricas e desenvolvidas?
JGT: Evidente que o exercício profissional exige um conjunto de requisitos mínimos do ponto de vista tecnológico. E o País vem avançando (não na velocidade desejada) na melhoria dessa infraestrutura. A estruturação de redes assistenciais integradas com porta de entrada definida, atenção básica resolutiva, acesso aos medicamentos essenciais e garantia de referência para exames diagnósticos, especialistas e hospitais, são pré-requisitos para uma assistência de qualidade. Um exemplo positivo é a utilização do telesaúde, por meio do qual equipes de saúde em áreas remotas ou de difícil acesso têm apoio em tempo real de centros de especialistas localizados em universidades ou hospitais de referência. Essa é uma ferramenta importante que já vem sendo implantada pelo Ministério da Saúde e conta com mais de oito mil pontos em todo o País.
CC: Na sua avaliação, a falta de médicos é o maior problema do SUS hoje? Ou o nó continua no subfinanciamento do sistema?
JGT: Existe um robusto consenso entre especialistas de que o principal problema do SUS na atualidade é a insuficiência de recursos financeiros. Vive-se uma contradição. Em 2011, o volume total de subsídios ao mercado privado por meio de várias isenções e renúncia fiscal foi de 16 bilhões de reais, volume de recursos que deveria estar sendo direcionado ao setor público. Sem uma adequada solução para essa questão (reivindicamos que a União destine 10% das receitas brutas para a saúde), toda e qualquer iniciativa terá impacto limitado no enfrentamento da crise da saúde. A voz das ruas que exige uma saúde de melhor qualidade não será atendida sem a aprovação em definitivo de uma sólida base de sustentação econômico-financeira para o SUS.