Cloroquina e hidroxicloroquina para covid-19: Entidades de saúde coletiva e bioética pedem ao CFM pedem revisão imediata; leia ofício que Conselho ignorou

artigo de Conceição Lemes originalmente publicado no Viomundo.

No dia 28 de abril, Lúca Souto, presidenta do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), Túlio Franco, presidente da Rede Unida e Dirceu Greco, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), enviaram ofício ao Conselho Federal de Medicina contra a decisão nº 4/2020, de 23 de abril de 2020, que liberou o uso da cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento da covid-19. Veja aqui uma entrevista com o cebiano Heleno Corrêa sobre a decisão do CFM.

No documento (na íntegra, abaixo) destinado ao presidente do CFM, Mauro Ribeiro, eles destacam, entre outros pontos, que:

— Está cientificamente comprovado que até o momento não há qualquer medicamento que tenha se mostrado eficaz em ensaio clínico controlado, aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa

— Especificamente em relação à cloroquina/hidroxicloroquina, estudos, geralmente pequenos, não controlados, impossibilitam avaliar sua eficácia, mas têm demonstrado efeitos colaterais significativos e, muitas vezes, graves e mortais.

Sobre o parecer, eles apontam as várias impropriedades do parecer do CFM, cujo relatório é o próprio presidente Mauro Ribeiro.

Uma delas:

O Parecer explicita que nos casos com sintomas leves, a utilização será “a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID- 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso”.

Mesmo com o reconhecimento da inexistência de estudo que comprove o benefício,  este parecer transfere para o paciente, que está extremamente vulnerável e em relação completamente desigual com o médico, a responsabilidade pela decisão e, consequentemente, dos eventuais efeitos adversos.

E perguntam: Isto é eticamente aceitável?

Outra impropriedade apontada diz respeito à conclusão do CFM.

O parecer de Mauro Ribeiro diz taxativamente:

“Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19”.

Os presidentes da Sociedade Brasileira de Bioética, Cebes e Rede Unida contestam:

Como assim?

Isto quer dizer que mesmo utilizando medicamento sem indicação cientificamente baseada, especialmente para aqueles “com sintomas leves”, o médico não cometerá infração ética?

Não está nas normas do Conselho, que decisão como essa só ocorrerá após o devido processo administrativo?

Os três presidentes concluem o documento, propõem que o parecer seja imediatamente revisto e modificado.

Justificam:

É inócuo no caso do uso off-label compassivo, mas pode ser muito prejudicial nas fases iniciais da infecção, sem o adequado acompanhamento.

Como eu disse no início, o ofício foi encaminhado ao CFM no dia 28 de abril.

Porém, até hoje, 30 de abril, o Conselho não respondeu, sequer confirmou o recebimento.

Diante disso, os doutores Lúcia Couto, Túlio Franco e Dirceu Greco, , respectivamente, presidentes do Cebes, Rede Unida e SBB decidiram tornar público o documento.

Abaixo, a íntegra do ofício do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), da da Rede Unida e da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) ao CFM


Ao Dr. Mauro Luiz de Britto Ribeiro
Presidente do Conselho Federal de Medicina

Assunto: posição contrária ao Parecer do Conselho Federal de Medicina nº 4/2020, de 23 de abril de 2020, relacionado ao “uso da cloroquina e hidroxicloroquina, em condições excepcionais, para o tratamento da COVID-19.”

Senhor Presidente,

A Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), juntamente com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a Rede Unida, têm participado intensamente de diversas ações relacionadas aos aspectos bioéticos, sociais, de saúde da epidemia da COVID-19.

Essas entidades, com assento no Conselho Nacional de Saúde (CNS), têm se pautado na defesa dos direitos das pessoas em risco ou infectadas pelo SARS-CoV-2, na solidariedade com todos os profissionais que estão na linha de frente de confrontamento desta pandemia, no apoio incondicional ao Sistema Único de Saúde (SUS) e no papel crucial desse sistema no enfrentamento da pandemia.

Estamos também atentos frente aos dilemas éticos em situações de insuficiência de recursos e na discussão e avaliação dos medicamentos, visando o tratamento de todos que deles necessitem.

Consideramos fundamental a realização de pesquisas cientificamente controladas para estabelecer, de modo adequado, o necessário tratamento.

Em relação às possibilidades de tratamento farmacológico de pacientes com a infecção pelo SARS-CoV-2, assunto específico deste Ofício, ressaltamos:

– Está cientificamente comprovado que até o momento não há qualquer medicamento que tenha se mostrado eficaz em ensaio clínico controlado, aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa;

– Vários medicamentos, incluindo a hidroxicloroquina, a cloroquina, associadas ou não à azitromicina, o interferon, a associação lopinavir/ritonavir e o remdesivir, estão atualmente sendo avaliados em ensaio multicêntrico internacional (Estudo Solidarity, coordenado pela Organização Mundial da Saúde).

O Brasil participa deste estudo, corretamente planejado e eticamente adequado, mas que levará algum tempo para ter resposta conclusiva;

– Especificamente em relação à cloroquina/hidroxicloroquina, estudos, geralmente pequenos, não controlados, impossibilitam avaliar sua eficácia, mas têm demonstrado efeitos colaterais significativos e, muitas vezes, graves e mortais.

Em referência ao Parecer CFM 04/20:

– O Parecer faz diversas considerações sobre o “estado da arte” do conhecimento sobre estes dois medicamentos e conclui:

“Com base nos conhecimentos existentes relativos ao tratamento de pacientes portadores de COVID -19 com cloroquina e hidroxicloroquina, o Conselho Federal de Medicina propõe “três situações nas quais estes medicamentos podem ser considerados/utilizados”. E, apesar de discorrer no preâmbulo sobre a inexistência de comprovação de sua eficácia para enfrentar a atual pandemia, propõe seu uso em todas as fases da infecção, desde a fase inicial (“sintomas leves”), intermediária (“pacientes com sintomas importantes-sic”), nos casos graves e no seu “uso compassivo em pacientes críticos recebendo cuidados intensivos”.

Há várias impropriedades:

1. Apesar de ter iniciado, em seus considerandos, com razoável citação da literatura atual sobre estes medicamentos, a qual mostra inequivocamente a inexistência de evidência científica robusta para recomendar o seu uso, este Parecer contraditoriamente indica a possibilidade de utilizá-los em todas as fases da infecção.

E sobre eventos adversos, cita nota da Sociedade Brasileira de Reumatologia e não considera relatos na literatura, nacional e internacional, de efeitos graves, e até mortais, secundários ao uso da cloroquina quando utilizada para o tratamento da COVID-19.

Neste sentido, a Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, recomendou cuidados quanto ao uso da cloroquina e hidroxicloroquina fora do ambiente hospitalar para o tratamento do novo coronavírus.

Entre estes inclui: “A FDA está ciente dos relatórios sobre problemas graves de ritmo cardíaco de pacientes com COVID-19 que se trataram com hidroxicloroquina ou cloroquina, combinado também com azitromicina e outros medicamentos”.

2. Evidentemente o risco de eventos graves, inclusive sobre o coração, que podem ser agudos e até mortais, poderá ter consequências ainda mais sérias em pacientes com sintomas leves, porque além disso, estarão em tratamento ambulatorial, sem o devido monitoramento.

O Parecer explicita que nos casos com sintomas leves, a utilização será “a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID- 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso”.

Mesmo com o reconhecimento da inexistência de estudo que comprove o benefício, exatamente num momento de dúvida sobre a possível evolução da sintomatologia, este parecer transfere para o paciente, que está extremamente vulnerável e em relação completamente desigual com o médico, a responsabilidade pela decisão e, consequentemente, dos eventuais efeitos adversos. Isto é eticamente aceitável?

3. E no último item da conclusão: “Diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia, não cometerá infração ética o médico que utilizar a cloroquina ou hidroxicloroquina, nos termos acima expostos, em pacientes portadores da COVID-19”.

Como assim? Isto quer dizer que mesmo utilizando medicamento sem indicação cientificamente baseada, especialmente para aqueles “com sintomas leves”, o médico não cometerá infração ética?

Não está nas normas do Conselho, que decisão como essa só ocorrerá após o devido processo administrativo?

Em conclusão, propomos que este parecer seja imediatamente revisto e modificado, pois é inócuo no caso do uso off-label compassivo, mas pode ser muito prejudicial nas fases iniciais da infecção, sem o adequado acompanhamento.

Cumpre enfatizar que este Parecer, apesar de direcionado ao médico, terá repercussão significativa para a sociedade e especialmente para os pacientes, extremamente vulneráveis nesta fase da epidemia e que correrão risco acrescido de reações adversas graves.

Em nossa avaliação, o CFM deveria reforçar o que se sabe hoje: manter o autoisolamento, associado aos cuidados preventivos de distanciamento social e higienização de mãos, e à informação pública correta e exclusivamente aquela baseada em evidência científica e eticamente adequada.

Além disto, seria de grande importância que o Conselho Federal de Medicina reforçasse o papel fundamental do SUS e a urgente necessidade de seu maior financiamento, visando mitigar os riscos de falta de cuidados de saúde, desde o diagnóstico até, e agora principalmente, de acesso a cuidados intensivos.

Atenciosamente,

Dirceu Bartolomeu Greco – Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)
Lucia Souto – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES)
Túlio Franco – Rede Unida

28 de abril de 2020