Desigualdade persistente
O Estado de S. Paulo – 27/08/2012
A América Latina é a região do mundo com a maior desigualdade, e o Brasil é o quarto país mais desigual da região, mostra o relatório Estado das Cidades da América Latina e do Caribe 2012, publicado pelo Programa da ONU para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat). O País só perde para Guatemala, Honduras e Colômbia nesse quesito, que envolve não apenas distribuição de renda, mas também fatores determinantes de bem-estar, como habitação, oportunidades de trabalho, condições do espaço público e acesso à educação, saúde e crédito. A posição do Brasil melhorou substancialmente desde 1990, quando o País encabeçava a lista dos mais desiguais, mas a desconfortável situação atual prova que é preciso fazer muito mais do que dar Bolsa-Família e apostar em transferência de renda.
“O principal desafio é desenvolver estratégias para combater a desigualdade. Sabemos que as cidades latino-americanas têm riqueza suficiente para reduzir essa situação”, disse o representante do ONU-Habitat, Erik Vittrup. Na América Latina, os 20% mais ricos da população têm uma renda média per capita quase 20 vezes maior do que os 20% mais pobres. Há enormes discrepâncias dentro do continente. Enquanto na Venezuela e no Uruguai, que são os menos desiguais, essa diferença não chega a 10 vezes, há casos em que ela é 30 vezes maior, como no Haiti. E que não se tomem pelo valor de face os números venezuelanos: mesmo sob o “socialismo do século 21”, nome dado pelo caudilho Hugo Chávez à sua política assistencialista, a desigualdade na Venezuela é maior que nos EUA, sede do “império”, e que em Portugal, o mais desigual da Europa. A fatia da população urbana venezuelana em situação de pobreza ou indigência mantém-se estável desde 2006, variando entre 27% e 30%, uma das mais altas do continente.
Em termos relativos, a pobreza foi reduzida na América Latina nos últimos anos, gerando melhora na distribuição de renda – graças, segundo o ONU-Habitat, ao aumento dos salários e à adoção dos programas de transferência. No entanto, enquanto houve ganhos razoáveis em dez países, a situação piorou em outros oito. Na Bolívia, no Paraguai e na Guatemala, mais da metade da população é qualificada como pobre.
A pobreza persistente reflete o problema crônico da produtividade: segundo o relatório, calcula-se que esse indicador tenha subido em média apenas 1,4% nos últimos 20 anos, na região. No mesmo período, a China teve aumento de 8,4%, e a Índia, de 4,7%. Com isso, a participação da América Latina na economia global cresceu de 6,5% em 1970 para apenas 7% agora, e a região abriga 8,5% da população mundial.
Embora a população latino-americana pobre tenha diminuído de 48% para 33% entre 1990 e 2009 e a região esteja perto de cumprir a primeira das Metas do Milênio fixadas pela ONU, o número absoluto cresceu – e, dos 124 milhões de pobres do continente, 37 milhões vivem no Brasil e 25 milhões, no México.
O relatório salienta que a pobreza não se mede só pela renda insuficiente, mas também pela incapacidade de alcançar padrões aceitáveis de vida e de participação na sociedade. Nesse sentido, os programas de transferência de renda, que no Brasil começaram em 1995 e que têm no Bolsa-Família seu símbolo mais reconhecido, tiraram milhões de pessoas da pobreza extrema, mas têm fôlego limitado. Se quiser reduzir a miséria, que ainda hoje atinge 8,5% da população, e conter de fato a desigualdade, o Brasil precisa manter por muito tempo o atual ritmo de geração de empregos. Para isso, depende de um crescimento econômico cada vez mais improvável no contexto atual, tanto pela crise internacional como pela ausência de estratégias de longo prazo do governo. Noves fora a ribombante propaganda oficial sobre o feito de ter criado uma “nova classe média”, é necessário um modelo de desenvolvimento capaz de romper o ciclo de privação sistêmica de que padecem os mais pobres – e isso deve incluir estímulos reais à produção, à educação e à cidadania, algo que vá muito além de satisfazer o desejo de comprar uma geladeira nova à prestação.