Concretização judicial de direitos fundamentais da pessoa portadora de transtorno mental
Gustavo Henrique de Aguiar Pinheiro | JusNaviagandi
No Brasil estamos com cerca de 40 anos de atraso na produção teórica e jurisprudencial entre “direitos fundamentais” e saúde mental.
1. INTRODUÇÃO
Fiat Lux! No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta, vazia; as trevas cobriam o abismo. Sobre as águas, apenas um vento pavoroso. Deus disse: haja luz e houve luz (Gênesis), e alguém no mundo entendeu que Deus falava latim.
As interações sociais estão sujeitas a múltiplos fatores pessoais, sociais, fisiológicos, de personalidade, de linguagem, psicológicos etc, que influenciam os processos de comunicação humana. Como observam Paul Watzlawick, Janet Helmick Bealvin, e Don D Jackson, a ilusão mais perigosa de todas é a de que existe apenas uma realidade. Aquilo que de fato existe são várias perspectivas diferentes da realidade, algumas das quais contraditórias, mas todas resultantes da comunicação e não reflexos de verdades eternas e objetivas[1].
Quando a luz se fez pela primeira vez, a humanidade, ainda sem espelhos, relegou a loucura ao signo da animalidade, passando em seguida sobre o simbólico dos “loucos bêbados”, “loucos sem memória e entendimento”, loucos mansos e semimortos”, “loucos avoados e sem cérebro” – que passeavam escravizados na Narrenschiff[2] pelos rios calmos da Renânia e dos canais flamengos – para aportar na grande internação manicomial de que nos fala a obra inigualável de Michel Foucault[3].
O direito, notadamente a civilística, antecipando-se às teorias médicas, apurou a sua análise do fenômeno da loucura, registrando o aludido filósofo francês que num sentido, é justo dizer que é sobre o fundo de uma experiência jurídica da alienação que se constituiu a ciência médica das doenças mentais[4].
A psiquiatria, disciplina nascida no século XIX em decorrência da crença de que os manicômios para guarda poderiam ter uma função terapêutica[5], desenvolve o conceito de “doença mental”, inicialmente adotando parâmetros das doenças orgânicas ou somáticas.
O paradigma, até então, tanto para o direito quanto para a psiquiatria, era a “doença mental”.
Mas, a segunda guerra mundial, com seus extremos de destruição, levou às duas disciplinas à percepção da fragilidade de seus poderes isolados. O direito percebeu que a sua tão propalada “pureza”, e mera legalidade, defendidas pelo positivismo jurídico”[6], tinham a capacidade de servir a qualquer senhor, como bem demonstraram as leis e o ordenamento jurídico dos nazistas. A psiquiatria teve que reconhecer, para além das bases biológicas, que o indivíduo como agente sócio-cultural é construído segundo diretrizes simbólicas, semióticas e virtuais que o orientam segundo representações e significações que lhe determinam um lugar e uma identidade no sistema de produção de sua cultura e sociedade[7].
Enquanto o direito, agora aberto aos demais ramos do conhecimento humano, formulava teorias e práticas para superar a barbárie, transformando em normas jurídicas eficazes valores éticos e morais, na tentativa de construir dispositivos jurídicos eficientes que não mais permitissem outro episódio autoritário universal[8], a área da saúde mental (não mais só da psiquiatria), mormente as experiências de Franco Basaglia nas cidades italianas de Triste e Goriza, ofertaram ao mundo uma nova possibilidade: a chamada “desinstitucionalização da loucura[9]”.
Para desinstitucionalizar a loucura uma reforma psiquiátrica é exigida, uma reforma, sobretudo, no conceito de “doença mental” que passa a ser desconstruído para dar lugar a nova forma de perceber a loucura enquanto “existência-sofrimento[10]”. Como pondera Nacile Daúd Júnior, exige-se uma ressignificação dos conceitos de loucura e doença mental, considerando a doença mental um fenômeno complexo relacionado ao drama existencial humano, combatendo a simplificação que reduz o conceito ao modelo clínico médico-psicológico causa[11].
Para lidar com a realidade do pós-guerra o direito se transforma. Numa revolução lenta e silenciosa realiza mudanças de paradigmas, atribuindo à norma constitucional o status de norma jurídica (anteriormente não passava de um documento essencialmente político, sem vocação imperativa, apenas indicativa), cuja não observância deflagra os mecanismos jurídicos próprios de coação. Essa nova norma jurídica, superior a todas as demais[12], possui estrutura semântica aberta (princípios), para proporcionar a incorporação em si de valores éticos e morais do humanismo, exigindo uma interpretação diferenciada (hermenêutica constitucional), a ser realizada por jurisdição devidamente constitucionalizada, que passa a ter a sua importância aumentada na contemporaneidade, deixando para trás a tão conhecida supremacia do parlamento.
Verdadeira revolução foi a constitucionalização dos direitos humanos, retirando destes a inaplicabilidade, e transformando-as em “direitos fundamentais”, protegidos dos perigos do processo político majoritário, aplicáveis contra o Estado e particulares, resguardados pelo Poder Judiciário, contando com um amplo rol de garantias processuais, bem como novas disciplinas, como o direito constitucional processual, que agora fazem parte do direito constitucional contemporâneo.
Marcelo Lima Guerra esclarece que os direitos fundamentais, como categoria jurídica dotada de contornos próprios, como atualmente se reconhece que eles são, nascem no constitucionalismo do século XX. Contudo, boa parte dos valores e exigências que têm como conteúdo são há muito reivindicados pelo humanismo e incorporados pela cultura jurídica. O que caracteriza os direitos fundamentais, como uma nova categoria jurídica,é, precisamente, a força jurídica reconhecida a tais valores. Em outras palavras, é o regime jurídico a que se acham submetidos os direitos fundamentais o novum que os identifica como uma categoria específica[13].
Das necessidades da reforma psiquiátrica, quando verdadeiramente se fez luz, também restou estabelecido um novo paradigma: a “saúde mental”. Esse novo conceito, que é em verdade uma exigência também prática de todos os povos, está necessariamente ligado ao princípio jurídico que sustenta toda a estrutura do direito constitucional contemporâneo: o “princípio da dignidade humana”.
É na dignidade da pessoa portadora de transtorno mental[14] que o direito constitucional contemporâneo se encontra com as possibilidades do conceito de saúde mental. A matriz genética de todos os direitos fundamentais, também alberga eficientemente uma reforma psiquiátrica verdadeira e eficaz, aquela que, sem exceção, terá de ser construída com instrumentos materiais e processuais da Constituição, a norma suprema do Estado Democrático brasileiro, maior e mais poderoso depositório de possibilidades em saúde mental.
Não se quer dizer que a “doença mental” não mais existe. A idéia de que a doença mental seria um mito restou consignada apenas nas relevantes e corajosas percepções de Thomas S. Azasz[15] . Qualquer um que experimente o sofrimento psíquico pode dar o testemunho de quanto ele pode ser destruidor e letal, assim como a assistência psiquiátrica distante dos novos paradigmas do direito constitucional e da saúde mental.
No Brasil estamos com cerca de 40 anos de atraso na produção teórica e jurisprudencial entre “direitos fundamentais” e saúde mental. Impressiona, ressalvadas exceções valorosas, o descaso que fazem os juristas acerca do tema. A rigor, tem sido a doutrina de bravos e humanistas profissionais da saúde, como José Jackson Coelho Sampaio, Paulo Amarante, Pedro Gabriel Godinho Delgado, entre outros, que tem explorado a intercessão do direito e da saúde mental, contudo, sempre sob a perspectiva dos “direitos humanos”. Há uma nova tarefa a cumprir, a “concretização”, e ela exige um olhar agora para os “direitos fundamentais”.
Não se questiona que na história da humanidade as declarações de direitos humanos foram e são muito importantes, mas é também inegável que os novos tempos exigem a realização plena dos direitos declarados.
Norberto Bobbio esclarece que o problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los.
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados[16] .
Estamos diante de novas possibilidades. Na contemporaneidade do direito constitucional loucura é somente o não-direito. As esperanças da saúde mental afloram não somente de doutrinas e leis, mas, sobretudo, da Constituição Federal de 1988, e o guardião desse documento máximo é o Poder Judiciário.
A humanidade não pode esquecer as lições do arbítrio universal, precisa sempre recomeçar, nunca mais sem o princípio da dignidade humana, pois, como lembra Hannah Arendt, também é verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que o fim pode produzir[17].
Na aproximação entre saúde mental e Poder Judiciário pode estar o princípio do fim da era manicomial, o verdadeiro começo da dignidade da pessoa portadora de transtorno mental.
2. UM CONCEITO JURÍDICO DE SAÚDE MENTAL – PODER JUDICIÁRIO
Intermináveis são as discussões sobre os conceitos de “doença mental” e “saúde mental”. Não cabe neste estudo, porém, digressões sobre os diversos autores e movimentos responsáveis pela referidas discussões. Importante, no entanto, é saber que inicialmente, do ponto de vista estritamente médico, falar em saúde mental seria falar de ausência de doença, ou seja, da erradicação da doença mental[18].
Essa visão estrita do conceito de saúde mental sofreu sensível evolução, mormente por influência da definição de “saúde” adotada pela Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS ou WHO)[19], em 1946, que, superando a concepção simples de saúde como ausência de doença, remete a uma expansão de sentido ao firmá-la como “o estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Posteriormente a aludida definição foi alterada de forma a se incluir no conceito de saúde a capacidade para produzir uma vida social e economicamente produtiva[20].
Face às necessidades de concretização dos direitos das pessoas portadoras de transtorno mental, a discussão teórica sobre o termo médio que corresponda a uma barreira bem definida entre o normal e o mórbido[21], não pode impedir a imediata percepção de um conceito jurídico de saúde mental, uma definição adequada a ser utilizada quando da atividade jurisdicional.
Fernandes da Fonseca propõe entender-se “saúde mental” como o sistema de equilíbrio funcional do organismo capaz de permitir ao indivíduo uma boa adaptação social[22]. Contudo, talvez a mais legítima definição seja mesmo a da Organização Mundial de Saúde, para quem saúde mental não é apenas a ausência de transtorno mental. É definida como um estado de bem estar que permite que cada indivíduo se aperceba do seu próprio potencial, lide com o stress normal da vida, possa trabalhar produtiva e proveitosamente e seja capaz de dar o seu contributo à sua comunidade[23].
Como lembram Maria Victoria Famá, Marisa Herrera e Luz María Pagano, também é possível compreender-se “saúde mental” para fazer referência a um conjunto de conhecimentos e ações de caráter público e privado tendentes a prevenir a aparição de transtornos mentais e desajustes de conduta em pessoas e instituições, a detectar e tratar precocemente os casos existentes, e a produzir a reinserção social de quem tenha sido afetado por alterações psicológicas[24].
Embora não seja possível falar-se em um conceito “oficial” de saúde mental, convém reconhecer que o exercício da jurisdição no caso concreto pode perfeitamente adotar as definições acima aludidas, pois ao Poder Judiciário compete interpretar os chamados “conceitos indeterminados”, principalmente porque legalmente obrigado a resolver qualquer pendência que lhe chegue às mãos. A pacificação social a que se destina o direito não pode esperar eternamente por discussões doutrinárias.
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