Pandemia e serviços essenciais

por Heleno Corrêa, cebiano e epidemiologista

Precisamos distinguir o que são “serviços essenciais” de “trabalho obrigatório” e saber que hoje, durante a pandemia de Corona vírus (SARS-COV-2), se ficarmos sem comunicação por telefone e sem ônibus, metrô e trem para viajar sentado, voltamos para a idade dos sinais de fumaça. Se “parar tudo” estaremos todos mortos.

Essa discussão é necessária por que há pessoas e mesmo técnicos de saúde defendendo que “parem tudo”, incluindo transportes e combustíveis. Isso levaria as pessoas que não têm carro próprio a morrerem em casa de fome, doença, e solidão sem vigilância comunitária participativa.

Para “rico” a quarentena é romântica. Para pobre é a morte. “Rico” é um conceito fluido como é o de consciência de classe – a famosa “classe para si” que tem muito pouco que ver com a condição de classe ou classe ‘de verdade’ na chamada “classe em si”. Há personagens clássicos de pobres e assalariados que se acham de classe alta. Os donos de banco, especuladores e rentistas vão dar uma enorme contribuição durante a pandemia para deixar mais claro quem é rico de verdade. Vão aplainar muitas consciências enganadas.

Trabalho obrigatório – significa que o trabalhador não consegue ser dispensado de comparecer ao trabalho sem perder o salário. Uma coisa é convicção de que o trabalho é imperativo, uma missão de vida. Outra é passar fome e ser despejado para o olho da rua.

Serviços Essenciais – esse sim é conceito de classe. O que é essencial para o povo não é a mesma coisa que é essencial para a classe alta.

Para a classe alta de verdade essencial é: ter um grupo de serviçais que não faltem ao trabalho chova, faça sol, fique doente ou tenha familiar doente; ter serviços de transporte, água, eletricidade, mecânicos, hospitalares, de comunicação e lazer que não parem nunca, dia e noite, noite e dia. O resto se compra, incluindo influência política, operação da justiça ou do direito, controle da política que é para rico e não para pobres que não sabem de nada.

Para o povão essencial é: ter um busão para entrar e viajar sentado sem estar debaixo do sovaco de outras cinco pessoas; ter água para cozinhar e para o banho sem ficar no escuro de noite por falta de energia elétrica; ter com quem deixar os filhos para ir ao trabalho; ter vacina o centro de saúde para os filhos não morrerem de doenças que rico desconhece; ter telefone com internet para conseguir trabalho (quem sabe emprego?) pelo whatsapp; ter direito a ficar em casa se estiver doente ou tiver pessoa doente em casa; ter onde comprar comida e remédios sem pagar o preço da exploração; ter centro de saúde e pronto socorro aberto todos os dias e de noite, com equipe que sabe onde a família mora e quem precisa de ajuda; ter passarela para atravessar a rua sem ser atropelado; ter polícia que não mata seu filho por que é preto ou tem cara de pobre; ter escola com merenda que ensina sem chover dentro. Na falta da escola ter acesso à merenda para levar para os filhos.

Sem planejamento a quarentena tira do pobre para dar ao rico e ao remediado. Ações de planejamento estadual indicam falta de planejamento nacional. Cada estado faz o que decide e não existe um plano de logística que impeça caminhoneiros de passar fome na estrada embora tentem levar combustível, comida, remédios e insumos para que não parem os sistemas de saúde e alimentação. (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quarentena-em-sao-paulo-comeca-hoje-saiba-o-que-muda/)

O que é essencial para o pobre trabalhador é sua maior fraqueza. Vive com medo dos que dizem que vão tomar tudo isso e deixa-lo pior do que jamais esteve. O medo é mau conselheiro. Com medo o pobre entrega suas desconfianças e vai atrás do que diz que pode protege-lo, e depois toma o que lhe resta em nome de sua própria segurança. São os pastores, as milícias, os traficantes, e até o estado corrupto que age sem transparência com quem não tem poder.

Existe uma zona de superposição mínima entre as necessidades da classe média endinheirada e as classes subalternas trabalhadoras. Todos precisam de teto para abrigo, água, energia, transporte, saúde, segurança e comunicação. Essas “necessidades básicas” do mundo moderno unem as preocupações de todas as classes sociais durante a pandemia que obriga todos a ficarem em casa. A dose que cada um tem acesso e deseja é que varia segundo o poder de compra. O que é pouco para um é muito para a maioria. Mas a natureza do essencial é unânime.

Nos dias de ficar em casa para não contrair a COVID19 a lista de prioridades se inverteu um pouco. Comunicação vem logo antes da saúde e segurança por que é o único meio pelo qual um trabalhador de “carteira verde amarela” consegue um bico para não morrer de fome endividado. Quem se comunica consegue alternativas, informação de sobrevivência. Aí vem o nó que dificulta tomar controle do estado que serve às classes altíssimas em segredo e toma das pessoas que pensam que são ricas e da classe pobre logo abaixo.

No golpe contra o médico sanitarista e socialista Salvador Allende em 1973 no Chile foi a maior gigante de telecomunicações dos EUA que ajudou a CIA a contratar os caminhoneiros para fazer greve remunerada em dólares e levar o povo chileno a passar fome. Algo parecido com que tentam fazer hoje na Venezuela. Na Bolívia, Equador e Colômbia não precisaram chegar a esse ponto. No Brasil os donos de transportadoras ajudaram golpes sempre que foram chamados e confundiram mobilizando caminhoneiros donos de seus caminhões ameaçando com a perda de seus financiamentos e fretes. Caminhoneiro que trabalha sozinho ajudou a derrubar Dilma e hoje paga combustível ao triplo do preço com carga pela metade do valor do frete, mas tem medo do socialismo. Motoristas passam fome nas estradas com o fechamento não planejado de seus restaurantes de parada.

Nos EUA de 1973 a AT&T controlava, a ainda controla, a maior fatia das telecomunicações construídas após a 2ª grande guerra. Os cabos submarinos internacionais, os satélites de duplicação de sinais, as torres de emissão e recepção regionais são em sua maioria propriedades desses gigantes da comunicação eletrônica. Controlam o dinheiro dos bancos que passa as fronteiras sem deixar rastro. Controlam quem viaja, onde vai, o que faz, onde compra e o que gasta. Esse controle é reforçado por que o dólar é a moeda padrão mundial para transações (Tratado de Breton Woods), inclusive com os países socialistas fora da rede bancária estadunidense, inglesa e alemã. Sadam Hussein foi derrubado, dizem, por que tentou mudar a moeda do petróleo para o Rublo.

As companhias de telecomunicações são o núcleo gerador dos golpes contra todos os governos latino-americanos que tentam quebrar o domínio do quintal americano na política do grande porrete (Big Stick). Foi assim com João Goulart e pulando décadas foi assim com Zelaya, Lugo, Dilma e Evo Morales. Fracassaram com Chávez Frias, denominado ditador. Elegeram Macri, Piñera e o falso Messias.

No Brasil de 2016 a 2020 o golpe foi pelas telecomunicações. Quem controlou as emissões de notícias falsas pelo WhatsApp determinou o que pastores neopentecostais falavam para seus fiéis. As notícias falsas foram cobertas por colchão de amortecimento da realidade com notícias de distração de massa e propaganda política deslavada pela grande imprensa de TV e rádio.

No Brasil de 2020 se desejarmos sair da pandemia de coronavirus SARS-COV-2 precisaremos dobrar as telecomunicadoras que cobram planos de comunicação caros que nunca entregam. Precisamos de seis a oito meses em que as operadoras privatizadas NÃO POSSAM DESLIGAR os chips dos cidadãos pobres que não terão como pagar os planos impossíveis. Sem telefone celular ficarão sem poder achar trabalho “verde e amarelo” como a diarreia social causada pelo grupo que tomou o poder no estado brasileiro. Seria a MORATORIA TELEFÔNICA. A mesma moratória é necessária para luz, água, e esgoto.

Assim, o principal programa até novembro de 2020 seria impedir as telefônicas desliguem o povão. É preciso que Vivo, Oi, Claro, e uma infinidade de siglas que levam ao mesmo grupo de donos do poder não desliguem as torres, os chips, e deixem os trabalhadores sem recurso para encontrar trabalho, saúde e alimento, mesmo quando possam voltar a sair de casa.

A vigilância à saúde precisa da comunicação entre agentes comunitários de saúde – ACE – e suas equipes. Sabemos há muito tempo que toda a comunicação entre equipes de saúde já não se dá por meio de telefones fixos obsoletos em suas sedes desaparelhadas. Todo ACE fala direto no celular e paga para isso. Todo doente busca informação e manda mensagens pelo celular sem sair de casa. Isso ajuda ao distanciamento social necessário hoje para combater a pandemia da COVID19. Chegamos a um ponto que um chip de telefonia celular funcionando é mais importante que a capacidade de andar até um Pronto Socorro em caso de emergência.

No Brasil de 2020 não se pode falar em SUS descentralizado com ações de Núcleos de Atenção à Saúde da Família (NASF) e Agentes Comunitários de Saúde (ACE) sem chips de telefonia celular ligados e funcionando. A Vivo, a Oi e a Claro podem desligar tudo e ajudar o vírus.

As companhias de comércio telefônico também podem piorar a epidemia por que seus trabalhadores ficam horas seguidas em baias como se fossem estábulos à distância de um cotovelo do(a) trabalhador(a) vizinho(a). O contato íntimo se dá no trabalho dos “Call Centers” por obrigação de trabalhar. Esse trabalho não é essencial, mas é obrigatório. Experimente um trabalhador de call-center faltar. Será substituído por uma fila de espera no ato.

Outra loucura é mandar parar de circularem ônibus, trens e metrô. Os trabalhadores obrigatórios e os essenciais terão de andar à pé ou terão de morar no trabalho. Ao contrário de mandar parar seria para fornecer equipamentos de proteção individual a motoristas e cobradores, multiplicar por três ou por cinco o número de veículos circulando, limpar veículos após um número mínimo de viagens, proibir de andar em pé dentro dos ônibus, e reduzir a lotação para que pessoas não andem acotoveladas nos bancos. Se existe trabalho essencial o trabalhador só pode chegar se tiver transporte.

Podem criar regras para ser transportado como tornar obrigatório o uso de panos sobre o rosto, luvas descartáveis para andar de ônibus, criar filas nas entradas das estações e pontos de parada para evitar entrar excesso de passageiros, tornar obrigatório exibir as mãos para receber um jato de álcool sobre as mãos antes de sentar-se, e evitar tocar as outras pessoas no transporte. Trabalhador a pé não é nada romântico e o vírus agradece a ajuda para contagiar nos transportes superlotados.

A limpeza dos transportes públicos deixaria de ser tarefa de trabalhadores precarizados durante as madrugadas para ser feita por grupos de limpeza contínua durante o dia com técnicas destinadas a limpar janelas, corrimãos, vidros e assentos a cada viagem. Esse grupo também deveria receber atenção especial sobre normas e equipamentos de proteção para não serem contagiados ao fazer a limpeza.

No Sistema Único de Saúde – SUS – verificamos que sem os trabalhadores a saúde não presta serviços, atendimentos e socorro. A minoria dos trabalhadores da saúde tem veículo próprio embora tenha telefone celular. Ninguém pensou que o abastecimento de combustíveis poderia parar. Rico detesta ficar a pé. Se não existe transporte não existem serviços de saúde funcionando. Mais uma vez toda região de saúde deve estruturar sua rede de comunicação por telefonia celular para evitar congestionar seus centros de saúde, farmácias, clínicas e hospitais. Sem telefonia celular e sem aplicativos congestiona tudo. Se desligarem os chips por falta de pagamento farão um apagão no SUS.

A frase ameaçadora que vem sendo publicada é “PAREM TUDO”. Essa frase não explica o que é parar nem o que é o “tudo”. Se for levada ao pé da letra vão deixar morrer em casa os idosos sem remédio e sem comida. As casas serão lacradas com cadáveres em putrefação. Os ricos continuarão rodando de carro mostrando aos guardas rodoviários “com quem estão falando”, e o vírus continuará circulando. Até uma guerra tem regras de passe e permissão. (https://theintercept.com/2020/03/24/coronavirus-poltica-italia/)

É necessário que os governos comprem e usem kits de diagnóstico rápido para o COVID19 e façam TESTAGEM UNIVERSAL ampla populacional de todos os suspeitos e pessoas de contato. Bastaria passar na frente do serviço de saúde e pedir para ser testado ou receber convite. Há conhecimento tecnológico e capacidade produtiva para testar todo o mundo. Essa está sendo a chave do sucesso e a diferença da contenção da pandemia na Coreia do Sul, depois que a China zerou a transmissão com suspensão dos contatos sociais em março de 2020. A UFBA já testou kit diagnóstico que dá resultado em três horas e não em três dias, além de custar muito menos que o kit importado.

Serviços de oficina mecânica e elétrica são essenciais para continuarem rodando os carros de emergência de saúde, segurança e transporte de alimentos e medicamentos. Os mecânicos devem ter proteção especial, tal como não tiveram os mecânicos de voo que levaram o grupo presidencial que foi buscar um conglomerado de coronavirus em Miami em março de 2020. Mecânicos, eletricistas, bombeiros encanadores, coletores de lixo urbano, frentistas de postos de combustíveis, todos devem ter um estatuto especial de liberação para usar transportes públicos, da mesma forma que profissionais de saúde. Devem para isso receber proteção especial e revisar suas condutas de defesa para não serem contagiados.

Por último fica a defesa da Renda Mínima Cidadã de um salário mínimo para toda PESSOA (e não “família”) que ficar impedida de trabalhar durante a epidemia. O decreto de calamidade social feito pelo governo federal não pode servir apenas para perseguir adversários políticos. Deve servir para liberar as despesas sociais travadas pela equipe econômica dos infernos bancários que quebrou o bolsa família, destruiu o programa de intercâmbio científico internacional chamado “ciência sem fronteiras”, fechou pesquisas nas universidades e quer quebrar a coluna vertebral do mundo do trabalho atacando leis, direitos, centrais sindicais e normas de segurança.

Sem liberação da Renda Mínima Cidadã, sem impedir que operadoras cortem os telefones celulares, sem dinheiro para a saúde o que ficará para o povo brasileiro durante a pandemia da COVID19 será a morte por tiro das PMs, por bala das milícias e dos traficantes, e pela criminalização das drogas enchendo as cadeias com os que vão morrer de tuberculose, COVID19, hepatites e brigas de facções. O Guedes não vai lá dentro das prisões enfrentar o inferno dos contágios. O presídio do Carandiru já foi chamado de hotel do senhor Guedes. O capitalismo rentista é inimigo da saúde e da vida.