Democracia e saúde coletiva: outros Brasis são possíveis?

Alane Ribeiro, Diego Lima, Edna Bezerra, Jessica Farias Dantas, Maria Eneida, Matheus Bizuti, Carlos Nunes, Sergio Rossi, Itamar Lages

Muitos tiros. gritos. Mães bramem diante dos corpos dos seus filhos mortos. A Polícia Militar se recusa a descer os corpos para a parte mais baixa da comunidade. Os moradores descem os corpos carregando em pedaços de pano pelas ruas da comunidade. Não tem protocolos para esses corpos que figuram com o excedente e supranumerário. Se não fosse os moradores que aparecem na imagem usando máscaras, nada ou quase nada ali que é tempo pandêmico de coronavírus” Trecho de “Protocolo de Descarte do lixo. Contra-colonialidade(S) e o dia seguinte. Fátima Lima.

“Governador, tudo bem com você? Estamos aqui, em mais um dia de ação da Frente CDD. Estamos dentro da casa de moradores, com nossa roupa infectada, porque a ‘bala está comendo’ lá fora e estamos encurralados dentro da casa dos outros. Está cheio de crianças aqui com medo. Estamos aqui após levar cestas básicas para as famílias. Estamos tentando fazer o que o Estado não faz, que é levar comida para as pessoas, levar aquilo que falta. O Estado só leva isso aqui para dentro da favela. Balas. A única coisa que temos são balas dentro das favelas. Está todo mundo agora cercado, jogado no chão da casa dos outros, com medo. Muito obrigada pela sua ação.” Trecho da fala de um dos integrantes do grupo de voluntários da Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, que foram surpreendidos por uma operação da Polícia Militar.

Em decorrência do momento de crise humanitária, política, social, econômica e sanitária pela qual o Brasil se encontra é necessário reforçar a reflexão sobre os valores democráticos conquistados ao longo de cinco décadas, quando a utopia foi sendo gradualmente transformada em realidade com o acesso universal à Saúde que posteriormente foi se tornando descentralizado para grande parte do território nacional. Com as lutas populares travadas desde a metade dos anos 60 que conquistaram dentre diversos avanços o fim da Ditadura Civil – Militar reacionária e a histórica VIII Conferência Nacional de Saúde a partir da metade dos anos 80, criou-se a expectativa de um projeto de sociedade que promovesse a justiça social, através de valores democráticos, dentre os quais um sistema de saúde com alcance universal no qual todos os cidadãos teriam no mínimo acesso à saúde como direito inalienável, além de também ser um avanço contra uma proposta de saúde “biologicista”.

A Covid-19, doença provocada pela SARS-Cov-2 se torna uma pandemia agravando uma das maiores crises econômicas do capitalismo que se arrasta desde 2008, iniciada na crise das hipotecas nos EUA. Porém as crises também potencializam a reprodução do capital, situação que pode ser exemplificada por meio do aumento exponencial dos lucros nos setores que surfam na onda do “coronashock”¹ e do “screen new deal”², como amazon, google, uber e ifood, dentre outras que aumentam a precarização nas relações trabalhistas, assim como nas condições de trabalho, sendo os países da periferia capitalista os mais atingidos e assim constatamos que o neoliberalismo não cumpre sua promessa de “liberdade, igualdade e fraternidade”.

Esta pandemia revela com mais intensidade a crise política e econômica do SUS, haja vista que o subfinanciamento crônico condicionado pela iniquidade no sistema tributário e pelo incentivo governamental ao sistema privado de saúde, seja por meio das operadoras de saúde, seja por meio de Organizações Sociais de Saúde, vem fortalecer e aprofundar as injustiças sociais no Brasil.

Muitas pessoas já andam acostumadas em viver precárias condições algo muito semelhante a uma crise perpétua e emergência permanente, não só social e financeira mas humana e afetiva. O estado de exceção se tornou uma “norma”. Uma normalidade que só beneficia 1% da população mundial, que depende da exploração dos 99% e de toda a natureza para manter seus privilégios.

Podemos constatar isso por meio da (des)organização das cidades na formação das periferias, na qualidade da educação, nos níveis de saúde, no acesso ao emprego, no trabalho informal e no desemprego, nas precárias condições de moradia e saneamento básico, no encarceramento e no extermínio das populações marginalizadas (Negra, Favelada, Transgêneros, Pessoas Racializadas), que sofrem com o processo de vulnerabilização das vidas e dos territórios.

No campo vemos intensos e diários ataques do latifúndio à agricultura familiar, à agroecologia, aos territórios dos povos originários e quilombolas, e a destruição sistemática da vida, seja por agrotóxicos, seja por transgênicos e mais recentemente pelas queimadas nos maiores biomas preservados do Brasil. Cabe ressaltar que esse contexto não é algo momentâneo, mas duradouro, contudo se agravou durante a pandemia.

As chamadas políticas de matabilidades promovida pelo latifúndio com diversas ferramentas, como órgãos do Estado, dentre os quais a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Forças Armadas, tem como principal objetivo perpetuar queimadas, mineração na Amazônia e interior do Brasil, descontrole e aumento do uso de agrotóxicos, invasão de terras indígenas e quilombolas, intensificação das ameaças de morte e de assassinatos à lideranças camponesas e ribeirinhas.

Enquanto nas cidades o Estado intensifica a violência nas favelas ao mesmo tempo que acelera ocasiona o desfinanciamento e desmonte do SUS baseado na EC 95 e decretos auxiliares que associadas a diversas brutalidades, agressões e violações representam a Bio-Necropolítica e brutalismo³ em uma agenda política, econômica e social que promove a exclusão e genocídio de corpos em seus diferentes modos de produção de vida.

Tudo isso afeta e direciona a produção comum, que deveria ser para o bem comum. Ou seja, a forma como a sociedade se organiza direciona a situação de saúde individual e coletiva. Como no caso de Erasmo Teófilo, liderança ameaçada de morte por grileiros em Anapu – Pará, que mesmo marcado pra morrer, reafirma “A gente não pode recuar, a gente não pode se omitir pelas ameaças” e continua esperançando “Eu quero grandes projetos aqui (na Amazônia) mas me tragam projetos que aliem o bem estar da floresta com o bem estar do ser humano que está dentro dela.”

Portanto, quando o Estado através da matabilidade de suas políticas públicas escolhe não garantir os direitos das pessoas e seus modos de vida plena, ele escolhe quem deve morrer. É só olhar também a quantidade de recursos que o governo corta da saúde pública para investir na repressão policial, nas grandes empresas privadas e nos bancos multimilionários, além de promover uma cobrança insuficiente de impostos sobre grandes fortunas. Uma lógica neoliberal onde o Estado é mínimo na promoção e execução de políticas sociais ao mesmo tempo que é máximo na repressão policial e encarceramento dos trabalhadores e juventude pobre.

Os ciclos permanentes da crise capitalista desencadeada pela pandemia de Covid,-19, tem escancarado as desigualdades sociais, raciais e culturais e a urgência de um SUS democrático e intercultural que faça valer seus princípios doutrinários e organizativos. São as e os trabalhadores que sustentam a economia de um país! Somos nós quem fazemos o país girar, mas não somos aqueles que levam uma vida confortável. Defender a saúde, então, significa também lutar contra as iniquidades e mazelas das desigualdades sociais, racial e cultural.

Há uma redistribuição desigual dessas vulnerabilizações com a Covid-19, sobretuto afetando o povo negro com maior letalidade. No Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 18 de maio de 2020, sobem as mortes de pretos e pardos de 32,8% para 54,8%, o que aponta o reflexo do acesso ineficiente a serviços de saúde e políticas sociais e a precaridade das condições de vida.

Em tempos cada vez mais brutais, temos também resistências cada vez mais viscerais4, através dos movimentos, coletivos e organizações de resistências por todo o país. Uma vez que a raça, gênero, sexualidade e classe social atuam como batalhas cotidianas no macro e no micro espaços de produção de vida e política desses indivíduos e coletividades. Diante da negligência do Estado trabalhadores rapidamente mobilizaram amplas redes locais e até mesmo internacionais de solidariedade para suportar a pandemia e assim reorganizar os modos de vida e morte de diversos grupos sociais. O sofrimento e as mortes, trazidas pela pandemia, ajudaram a demonstrar a capacidade de organização popular.

Isso reforça a importância de abordagens de base comunitária, singular e subjetiva, em que devemos desenvolver atributos comunitários de solidariedade e não apenas de caridade, pautados nas necessidades urgentes do território com foco nas populações em processos de vulnerabilização. O desafio da atuação à distância, impõe a criatividade nas estratégias de mobilização, como cuidar e estar junto nem que seja só por telefone, internet ou telessaúde.

Por isso, cultivar a aproximação para a luta e ação para produzir o comum5 é estruturante em tempos de desmonte da Democracia. Cuidar da “casa comum” nunca foi tão importante (e urgente) quanto agora. Uma alternativa para isso está em refletir coletivamente sobre o que precisamos, sobre nossa saúde, sobre alimentos, sobre o território, sobre todas as situações que afetam nossas vidas.

Entretanto, o que vemos hoje no Brasil é ainda sua marca colonial de um Estado com profundos atravessamentos não laicos, cristãos, em que a caridade tem sobressaindo muito no momento atual de pandemia. Muitas ações de doações (financeiras ou materiais) tem ocorrido de forma despolitizada, com os movimentos religiosos sem o embasamento da teologia da libertação das comunidades eclesiais de base, teologia esta que foi tão importante para o processo de redemocratização do país na ação das igrejas nas periferias do país.

A política de distanciamento e isolamento físico adotada pelo Estado Brasileiro tem se configurado como uma política neoliberal que não reconhece as diversidades do modo de vida, do modo de viver e se relacionar com a terra e o trabalho, além de não garantir que essas diversidades de viver nos brasis possam usufruir do distanciamento físico.

O Sistema Único de Saúde Brasileiro é uma política pública que através de seu caráter democrático, tem como uma das finalidades a promoção da justiça social de acordo com o princípio doutrinário Igualdade/Equidade, entretanto nosso SUS democrático6 vem sofrendo desde sua criação com a agenda neoliberal e recomendações do Banco Mundial que tornam nosso sistema, em um SUS para pobres atuando com gravíssimas limitações.

O SUS para pobres7 é a concepção de que o sistema público de saúde é apenas para as populações pobres, negras e racializadas. Essa noção traz à tona como a falta de reparação histórica com os povos marginalizados (População Preta, Povos Indígenas, Povos Quilombolas, Ribeirinhos e Ciganos) criam a dicotomia que as elites brasileiras, a classe média em geral, não são usuárias do SUS. Visto isso, nosso sistema público de saúde sofre com medidas de austeridade fiscal, que funcionam como reforma da reforma sanitária, totalmente alinhada com os interesses do imperialismo e do setor privado da saúde.

Ao passo que para enfrentarmos essa pandemia, são necessárias políticas públicas e ações que fortaleçam os serviços públicos, ampliem acesso de acordo com as necessidades da população, garantam maior corpo técnico de profissionais, com condições dignas e seguras de trabalho e a adoção de medidas que assegurem a todas as famílias o direito ao isolamento físico em condições dignas de alimentação, segurança, moradia e acesso à água e saneamento.

Todas essas ações devem ser organizadas e alicerçadas a partir da diversidade que constitui os nossos povos. Há uma pluralidade de povos, modos de ser e de viver que constitui e compõe aquilo que denominamos “Brasil” que precisa ser incluída, incorporada e respeitada na definição, proposição e estruturação de qualquer política pública. Principalmente, quando, no contexto da pandemia, a crise sanitária é utilizada como estratégia de acobertamento para os ataques liberais, as desregulamentações e violações perpetuadas pelo próprio Estado, fazendo com que a “carreata” liberal passe por cima de todos aqueles que foram colocados “à margem” pelos interesses econômicos e políticos.

O que temos hoje é uma visão falsa de uma “guerra ao vírus”, uma tentativa de esconder seus erros, negligências e minimização à gravidade e ação do Estado de forma rápida e protetiva da vida das pessoas. A guerra que realmente temos no Brasil de hoje, é a convivência lado a lado da crise social e sanitária, com a guerra cultural bolsonarista9, com truques da retórica do ódio, da onipresença de bodes expiatórios e da proliferação imprudente de teorias conspiratórias, massas digitais, negação de dados objetivos e da ciência, a qual o governo quer transformá-la em política pública.

Que possamos nos inspirar em Kerala, na Índia, que conseguiu melhores abordagens de cuidado às pessoas em tempos de Covid-19, por meio de abrigo à população em situação de rua, auxílio financeiro, testagem de envergadura, grupos de voluntários coordenados pela gestão matriarcal, e uma força policial na rua que diz: volta para casa e toma a sua marmita do dia. Kerala aplicou de forma inventiva a epidemiologia sanitária que Sérgio Arouca em seu “Dilema Preventivista” questionava/tencionava, assim como a epidemiologista crítica e social de Cecília Donnangelo em seu “Medicina e sociedade”.

Que possamos nos inspirar nos comitês sanitários de defesa popular que atuam por todo o país em Belém (PA), Porto Velho (RO) e demais cidades do interior de Rondônia, Campina Grande (PB), Natal (RN), Recife (PE), Lagoa dos Gatos (PE), Petrolina (PE), Camaçari (BA), Lauro de Freitas (BA), Messias (AL), Brasília (DF), Goiânia (GO), Dourados (MS), São Paulo (SP), Curitiba (PR), São José dos Pinhais (PR) e Araranguá (SC), além dos Comitês de Saúde e Higiene em Defesa do Povo que atuam no estado de Oaxaca, no México. A organização dos comitês sanitários de defesa popular confirmam que os trabalhadores não aceitarão inertes serem lançados à miséria e a morte. “Derrotaremos a pandemia com a organização popular” “Só o povo organizado pode combater a pandemia”

Que possamos nos inspirar em Paraisópolis (SP) e as comunidade Maré, Santa Marta, Complexo do Alemão, Rocinha, Cidade de Deus (RJ) em sua organização territorial, em Recife e Peixinhos (PE) com os agentes populares de saúde, ou seja, que possamos nos inspirar nesse “Brasis” plural, coletivo e onde os sonhos caibam todas e todos, onde a preservação da natureza e biodiversidade prevaleça sobre o lucro e toda forma de colonização.

Não há mundo melhor dentro do capitalismo, nem na reprodução da “normalidade” histórica de desigualdade e crises. É tempo do futuro do agora, aquecer a utopia e o imaginário coletivo de uma Saúde Comum, em que dará aos 99% o poder de decidirem sobre que rumos tomar sobre suas próprias concepções de saúde, a partir de suas raízes e do processo de descolonização dos saberes, das subjetividades e visões de mundo.

Outros Brasis são possíveis, mas isso dependerá da preponderância do Brasis da ação coletiva para um bem comum e bem viver ou do Brasil da desigualdade, medo e privilégios (mais do mesmo). Isso em meio a umas das maiores crises do capitalismo e do imperialismo fomentador de um impasse civilizatório atual que atravessa diversas dimensões da experiência humana.

Referências

  1. Coronashock: https://www.thetricontinental.org/dossier-28-coronavirus/
  2. Screen new deal: https://www.democracynow.org/2020/5/13/naomi_klein_coronavirus_tech_privacy_surveillance
  3. Necropolítica e brutalismo: Esses termos são apresentados pelo teórico camaronês Achille Mbembe e faz referência à como o governo define quem vive e quem morre através da implementação determinadas políticas, do direcionamento de onde são implementadas ou da ausência delas, expressando toda sua soberania de poder.
  4. Bio-Necropolítica e Resistências Viscerais: Esses termos são apresentadas pela Antropóloga e Feminista Negra Fátima Lima que traz a reflexão da necropolítica alinhada com a biopolítica e biopoder, então os corpos que vivencia essas políticas de matabilidade, também vão pulsar dentro do seus corpos movimentos de resistências viscerais.
  5. Espaço comum / espaço público: Dissertação de Mestrado de Joviano Mayer, UFMG. “O comum no horizonte da metrópole biopolítica”. Disponível em: http://www.arq.ufmg.br/lab-urb/wp-content/uploads/2013/09/dissertacao_joviano_mayer.pdf e monólogo sobre o comum e o público. https://youtu.be/fYQPLYrj9IE
  6. SUS democrático e SUS para pobres: Esses termos são apresentados pelo Médico Sanitarista Jairnilson Silva Paim, no livro “O que é o SUS” (2009) e faz referência à como o SUS tem diversas tendências e concepções que variam com a constituição federal de 1988, leis orgânicas de saúde, modelos econômicos e atores sociais envolvidos.
  7. Guerra cultural bolsonarista: Esses termos são apresentados por João Cezar de Castro Rocha, doutor em Letras e professor titular de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o qual faz referência da guerra cultural bolsonarista como um movimento revisionista no tocante à memória da ditadura militar no Brasil. Segundo o autor essa guerra se difere da guerra cultural da europa e EUA, e é uma inspiração da concepção militar da doutrina de segurança nacional brasileira, que visa a destruição das instituições e a eliminação simbólica de um inimigo interno, principalmente, por meio das milícias digitais.