Não falem (apenas) das flores! Igualdade, isso sim, em tudo e todos os dias

Por Sandra Machado*/ Blog da Igualdade Correio Braziliense

No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos em Nova York (EUA) entraram em greve para reivindicar melhores condições de trabalho, como a redução na c arga diária para 10 horas (as fábricas exigiam 16 horas), a equiparação salarial com os homens (as mulheres chegavam a receber menos de um terço do salário deles, pelo mesmo ofício) e tratamento digno dentro da fábrica. A manifestação foi violentamente reprimida. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas. Somente no ano de 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de Março passaria a ser o “Dia Internacional da Mulher”, em homenagem às mulheres que morreram na fábrica. Em 1975, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas).

Brasília, capital federal, às vésperas do Carnaval (cenas descritas em matéria publicada pelo Correio Braziliense , em 1º de março de 2014):

Na hora em que a discussão começou, por volta da 1h, poucas pessoas estavam no estabelecimento, que tem sete anos e é bastante frequentado pelo público GLS. Dois casais de lésbicas sentavam próximo à porta. A poucos metros, havia uma mesa com seis pessoas, sendo três homens e três mulheres. Não se sabe ao certo por que a confusão entre os grupos começou, mas, durante a briga, uma das meninas foi xingada de ‘lepra da sociedade, puta, neguinha e sapatona’.
As agressões verbais evoluíram para agressões físicas. Daniela*, 18 anos, levou murros no rosto, chutes na cabeça e desmaiou. A namorada dela, Maria*, 21, tentou defendê-la e também acabou atacada. “As imagens não saem da minha cabeça. Já estou acostumada a agressões psicológicas pelo fato de ser lésbica, mas nunca imaginei passar por tanto terror”, contou Maria. “Foi uma violência gratuita”, reforçou Daniela.”

Depoimento: ” Em luto pela impunidade”

Sinto-me violentada no meu espaço de trabalho. Não tinha nem vontade de abrir a loja depois de tudo o que aconteceu. O meu desejo era de manter o estabelecimento fechado em luto pela impunidade. Não é possível que essa violência seja considerada algo normal, que essas pessoas saiam impunes e que os agressores responsáveis por espancarem a jovem, detidos e encaminhados pelas mãos do poder público, sintam-se confortáveis para rir na nossa cara. Porque foi isso o que aconteceu. Mesmo com a polícia presente, continuavam a proferir termos agressivos com relação à sexualidade e à raça das vítimas. Mesmo após entrar na viatura, continuaram a proferir que elas eram uma doença e que eles tinham de matar todo mundo. Fomos à Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) e continuaram provocando as vítimas, falando que bateriam na cara da ‘neguinha’. A pessoa não pode ser violentada por ser mulher, homossexual e negra. Gostaria de lembrar que o Balaio Café é um território de liberdade de expressão e diversidade sexual. E, pelo resultado que vi na delegacia, sei que não vai dar em nada. Vão registrar apenas como uma lesão corporal. Enquanto não tivermos uma legislação ou um decreto que combata a homofobia, a impunidade, infelizmente, persistirá.” Juliana Andrade Lima, 33 anos, dona do Balaio Café, em Brasília.

Neste 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, continuamos sem ter muito a celebrar. Comemorar o quê, no Brasil ou em boa parte do mundo? É a mais pura hipocrisia social essa insistência em determinar um dia do ano para enviar flores e mensagens do tipo “mulher é forte”, multiuso, consegue fazer mil coisas ao mesmo tempo. É generosa, gentil e está sempre de bom humor, feliz… é super-heroína!

Isso tudo está mais para reforçar as imagens estereotipadas – os construtos engendrados nas culturas, religiões e tradições – de que se pode fazer de tudo para e com/contra elas. Pouco importam as políticas públicas e as leis mais recentes pela equidade de gênero, pelos direitos fundamentais, humanos e civis, das mulheres.

Afinal, como ditam a publicidade e a propaganda (e a imprensa, os filmes, os livros e todas artes – ficcionais ou não), praticamente em nível mundial, elas são “pau prá toda obra”, “incansáveis”. São verdadeiras escravas (inclusive, sexuais) e estão aí para servir. Ganham menos ou nada para fazer o mesmo trabalho que os homens; fazem virtualmente todo o “serviço” doméstico; e, com frequência, são cobradas ou até espancadas e mortas por não cumprirem seus “papéis”. Esperados delas após milênios de “domesticação” pelas tradições religiosas e culturais.

Bom, para surpresa de muitos e apesar de toda a pressão contra, a maioria das mulheres, mundo afora, não mais se limita a tais estereótipos. Os rejeita e luta contra tudo isso, já há muito, desde as primeiras ondas feministas do Século 19. Em nossa contemporaneidade, por não mais haver como negar a elas os acessos à informação, à educação e ao mercado de trabalho, as mulheres simplesmente já não se encaixam em mitologias que, na verdade, as diminuem e as restringem.

Elas não querem mais ser super donas-de-casa que também trabalham e “ajudam” nas despesas com a família. Reivindicam, com justiça, o compartilhamento equânime dessas jornadas duplas, ou triplas, de serviços domésticos, cuidados com as crianças e a labuta fora de casa. Tal sobrecarga apenas faz aumentar as atuais estatísticas sobre a deterioração da saúde feminina, pelo estresse físico e o esgotamento mental.

Ao passo que as mulheres caminham para a equidade no que tange o sustento próprio e o de seus filhos e filhas (no papel de “chefas de família”), no Brasil, as pesquisas mais recentes apontam que apenas daqui a 30 anos, ou mais, elas terão a tão sonhada igualdade salarial. Muito devido a um sistema patriarcal e machista, ainda forte a disseminar a falsa ideia de que os homens devem ganhar mais pelo mesmo trabalho, pelos mesmos cargos, em empresas públicas ou privadas. Simplesmente porque “sustentam” suas mulheres e a família. Oi?!

Qual são as consequências disso tudo? Um estranhamento cada vez mais perigoso, violento e abissal entre os gêneros. Felizes são, hoje, os homens e as mulheres que acordam para a equidade, para a serenidade em saberem que são iguais em seus direitos e deveres sociais, civis, econômicos e culturais. Uma antenada amiga enviou-me ontem o texto escrito no Blog Papo de Homem , que acredito valer para o que coloco aqui:

Um homem . Ser homem. Homem não chora. Tem de ser cavalheiro. Tem que ter um trampo bom. Precisa de grana. Paga jantar. Compra as alianças. Dá presente. Cuida da mãe. Do pai. Dos irmãos. Prega prateleira. Usa furadeira. Arruma encanamento, vazamento e outros centos. Dá o lugar pra alguém sentar. Segura a onda. Fica em pé. Dirige. Troca óleo. Troca pneu. Resolve. Gosta de carro. De futebol. Respeita as mulheres. É bom de cama. Faz a barba. Vai direto ao ponto. Prefere não ter DR. Só casa se amarrado. Só casa com quem quiser. Paga pensão quando engravida. Paga pensão quando separa. Faz teste de DNA. Faz xixi em pé. Se você é homem, certamente já viveu pelo menos uma dessas situações – ou pressões – além de muitas outras. Nenhuma delas sozinha te faz homem , e o fato de ser homem não te faz corresponder exatamente a todos esses padrões. Certo? Pois dê-se muito feliz por poder não se encaixar em vários desses estereótipos masculinos nos dias de hoje, e agradeça eternamente ao feminismo por isso.” Feminismo é Papo de Homem? por Marília Moschkovich

Sim, o feminismo é papo de homens e de mulheres! É absurdo continuar com piadas e insultos contra movimentos que vêm libertando a todos e todas nas sociedades globais. Ações que fomentam não somente a igualdade entre os seres humanos – pelos direitos das diversidades raciais, étnicas, gerações (crianças, adolescentes, idosas e idosos), de orientação sexual e de gênero –, mas também maior compreensão, atenção e harmonia sociais. Sem pressões absurdas sobre uma ou outra pessoa.

Entretanto, o que temos presenciado mundo afora é uma resistência sobre-humana às mudanças, às transformações necessárias. É surreal e patético verificar o ressurgimento de ideologias nazistas e fascistas, de racismo, misoginia, machismo, homofobia e do ode às tradições de “família e propriedade”. Família “tradicional”, diga-se de passagem, com papai e mamãe a encenarem papéis arcaicos de “opressor e submissa/oprimida”.

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Qual é o balanço dessa dicotomia, ou esquizofrenia, entre as forças contemporâneas que já não admitem tais mitologias e as que insistem em retomá-las ou perpetuá-las?

Na Europa, a mais gritante consequência, e que já se verifica também por aqui, é a resistência das mulheres economicamente ativas e estáveis, quando chegam aos 40 ou 50 anos, em permanecerem casadas. Não mais admitem a sobrecarga da jornada dupla, indefinidamente. Preferem estar sozinhas – ou apenas com seus filhos e filhas, a dividir os deveres e prazeres do lar –, a seguir fazendo também o papel de mulher/amante gentil, que atende também às necessidades dos cônjuges/companheiros.

Não é sem motivos o alto índice de homens de meia idade com dificuldades em encontrarem companheiras, tanto nos países desenvolvidos como também entre as classes mais abastadas das regiões em desenvolvimento. O casamento ou a união com mulheres das regiões mais pobres do planeta, como as latinas, têm sido a “solução” para muitos que ainda acreditam nos papéis vitorianos. Naqueles onde as mulheres lavam e passam suas roupas, cozinham, lavam o banheiro e ainda perfumam a casa…

Esse não é um modelo de felicidade. Muito longe disso. Até porque nem mesmo as pessoas “treinadas” para a submissão suportam as sobrecargas por muito tempo. O desamor, o estresse e as brigas são o caminho mais certo. E aí…

Por aqui, mais do que nunca, houve o aumento desenfreado das múltiplas violências contra elas – assassinatos, estupros, espancamentos, tráfico humano (inclusive, de meninas/os), salários e oportunidades desiguais em relação aos homens, prostituição, e por aí vai.

Mesmo com leis mais duras, como a Maria da Penha , os números de assassinatos de mulheres chegam a um absurdo patamar de mais de 15 feminicídios diários , no país. Ou seja, uma morte violenta de mulheres a cada 1h30min. Segundo os dados, já há três anos o Brasil ocupa a 7ª posição na listagem dos países com maior número de assassinatos de mulheres. Segundo querem fazer crer alguns pesquisadores, o aumento deve-se a um número cada vez maior de mulheres que se encorajam a denunciar casos de agressão. Será?

Um levantamento da OMS ( Organização Mundial da Saúde ) aponta para o fato de que 70% das vítimas de assassinato, do sexo feminino, foram mortas por seus parceiros. No Brasil, além dos elevados índices de feminicídios, a cada 15 segundos uma mulher é espancada e, no mesmo intervalo de tempo, ocorre um caso de estupro contra elas.

Em nível internacional, foi divulgado essa semana o estudo contundente da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, com a estatística de que uma em cada três mulheres da UE foi vítima de violência física ou sexual. Ou seja, algo em torno de 62 milhões de mulheres residentes na Europa sofrem ou já passaram por algum tipo de violência machista. Uma em cada cinco (22%) disse ter sofrido essa violência por parte do parceiro ou ex-parceiro.

O maior estudo sobre violência de gênero já realizado na UE envolveu 42 mil entrevistadas, nos 28 Estados-membros, ou 1,5 mil por cada país. As mulheres foram questionadas sobre as suas experiências de abusos físicos, sexuais e psicológicos, em casa, no trabalho, na esfera pública e também no espaço virtual (perseguição e assédio pela Internet).

Então, está na hora de se pensar, refletir e debater sobre políticas públicas realmente eficazes contra a discriminação e o preconceito – social, econômico, cultural e sexista/machista – contra as mulheres, no Brasil e em boa parte do mundo. Sobretudo, é preciso investir na educação igualitária, naquela que ensina o respeito e a equidade entre todos os seres humanos. A educação pela cidadania. E que esse ensino de qualidade bem como os recursos orçamentários para tanto estejam ao alcance de nossas mentes e corações em todas as regiões!

 

*Sandra Machado é jornalista e professora universitária. Doutora em História – com pesquisa em Estudos de Gênero, das Mulheres, Cinema, Multiculturalismo e Transnacionalismo, pela Universidade de Brasília (UnB). É Master of Arts em Cinema e Video pela The American University, Washington, D.C, EUA. Repórter e produtora para mídias audiovisuais e impressas – Correio Braziliense, Jornal do Brasil, TV Globo e o Caderno de Livros de O Globo.