Carlos Ocké: ‘Devagar com o andor, que o santo é de barro!’
Em texto especial para o Cebes, o economista Carlos Ocké rechaça qualquer tentativa de negociação do SUS como moeda de troca. Os desafios de um novo governo são enormes e entre os principais compromissos está o fortalecimento do padrão de financiamento público (da saúde), revogando o teto de gasto e promovendo uma reforma tributária que incida sobre os super-ricos. Carlos Ocké é economista, ex-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) e militante do COLETIVO LUTA SAÚDE (PT-RJ).
“Três verdades incontornáveis sobre a saúde no Brasil passaram pela CPI: a rede pública é subfinanciada, o setor privado é predador e há disparidades sociais que fazem a vida de uns valer menos que a vida de outros”
Mário Scheffer, As verdades da CPI sobre a saúde no Brasil, Estadão, 29 de outubro de 2021)1
Em 2022, provavelmente, o Partido dos Trabalhadores disputará as eleições presidenciais contra a extrema direita.
Será fundamental elegermos Lula, organizando uma frente democrática com ampla mobilização popular, capitaneada pela oposição de esquerda.
No entanto, depois do golpe jurídico parlamentar contra Dilma e da prisão de Lula, em nome da futura governabilidade, o pragmatismo de outrora não pode nos cegar.
O SUS, por exemplo, é inegociável: saúde é um dever do Estado e um direito do cidadão. Isso não deveria ser figura de retórica entre lideranças, dirigentes e parlamentares do PT.
Reconhecemos a firmeza ética do companheiro Haddad, mas, em sendo verdadeira a notícia, não entendemos o que fazia o CEO da Qualicorp,2 Bruno Blatt, nas negociações do partido sobre a sucessão do governo de São Paulo.3
De um lado, os empresários da saúde ganham fortunas (Gráfico 1), capturam a agência reguladora (Agência Nacional de Saúde Suplementar) e não perdem a chance de lucrar com a doença: os casos relatados na CPI da Covid, em particular sobre a Prevent Sênior, não deixam dúvidas acerca dos abusos e horrores praticados pelo setor privado de saúde.
De outro, a Qualicorp é expressão concreta do processo de financeirização do setor,5,6 movimento que favorece a mercantilização do SUS e a privatização do sistema de saúde, bem como faz parte de um fenômeno global, que tem produzido no Brasil fome, pobreza, desigualdade e desemprego.
Tendo em mente os interesses do país, no plano econômico, um debate realista com os donos de planos, hospitais, organizações sociais e laboratórios, passa necessariamente por cinco questões: (i) a presença do capital estrangeiro; (ii) a desmercantilização do SUS; (iii) o fortalecimento do Estado no complexo econômico-industrial-digital da saúde; (iv) a redução dos gastos das famílias e dos trabalhadores com bens e serviços privados; (iv) o fim dos subsídios.7
Afinal de contas, há anos as pesquisas de opinião vêm apontando a saúde como o principal problema dos brasileiros.
Desse modo, a partir do legado da reforma sanitária brasileira, ou o PT assume o compromisso (i) de fortalecer o padrão de financiamento público, revogando o teto de gasto e promovendo uma reforma tributária que incida sobre os super-ricos, (ii) de aumentar os recursos das ações e serviços públicos de saúde (iii) e de acabar com o parasitismo do mercado sobre o SUS, ou a universalidade e integralidade da Constituição Cidadã de 1988 se tornarão cada vez mais letra morta com graves consequências sobre as condições de vida e saúde da população.
É um desafio gigantesco e precisamos acumular força política e ideológica, mas será um erro tático e estratégico tratar a saúde como moeda de troca. Temos que dialogar com todas e todos interessados em superar o neoliberalismo e derrotar o bolsonarismo, priorizando as demandas das classes populares e médias, que, durante a pandemia, passaram a ter certeza de que daqui para frente o melhor plano de saúde é o SUS.
Referências:
- 1 https://politica.estadao.com.br/blogs/diario-da-cpi/verdades-sobre-a-saude-no-brasil/.
- 2 Cujo fundador, José Seripieri Filho, segundo a Polícia Federal, esteve no topo da cadeia criminosa, que envolveu supostos repasses ocultos de R$ 5 milhões para a campanha do tucano José Serra (PSDB) ao Senado em 2014 (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/07/21/serra-e-fundador-da-qualicorp-estao-no-topo-de-cadeia-criminosa-diz-pf.htm?cmpid=copiaecola).
- 3 https://veja.abril.com.br/blog/radar/o-jantar-de-fernando-haddad-e-geraldo-alckmin-em-sao-paulo/.
- 4 OCKÉ-REIS, C.O.; MARTINS, N.M; DRACH, D.C. Desempenho econômico-financeiro das operadoras líderes do mercado de planos de saúde (2007-2019). Rio de Janeiro: Ipea, 2021. (Nota Técnica, n. 96 ).
- 5 SESTELO, J.A.F. Planos de saúde e dominância financeira. Salvador: EDUFBA, 2018 (ver p. 254-270).
- 6 LAVINAS, L.; GENTIL, D.L. A política social sob regência da financeirização. Novos Estudos Cebrap, v. 37, n. 2, p. 191-211, 2018.
- 7 Com tendência de alta, os subsídios destinados aos planos de saúde somaram aproximadamente R$ 20 bilhões em 2018. Ver OCKÉ-REIS, C.O. Avaliação do gasto tributário em saúde: o caso das despesas médicas do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Rio de Janeiro: Ipea, 2021. (Texto para Discussão, no prelo).