A anemia do orçamento
Rodrigo Martins | Carta Capital
A mudança do perfil epidemiológico brasileiro vai impactar diretamente a saúde e exigirá um novo SUS, com maior aporte financeiro, uma estrutura de governança autônoma, que valorize a carreira e a formação generalista e que resolva os gargalos das câmaras bipartites e tripartites. Essas são algumas das ideias que José Gomes Temporão, abordou em entrevista à revista Carta Capital dessa semana (o fac-símile da capa está abaixo).
O ex-ministro da Saúde destaca a luta do movimento Saúde +10 que reivindica a destinação de 10% da receita bruta da União à pasta; o fortalecimento do complexo industrial para a capacitação produtiva de medicamentos e procedimentos voltados à saúde pública; a importância de toda a sociedade brasileira, sejam ricos ou pobres, serem atendidos pela Estratégia Saúde da Família, e as perdas financeiras que o sistema sofre com desonerações fiscais e subsídios à indústria farmacêutica e aos planos de saúde. A entrevista foi realizada pelo repórter Rodrigo Martins.
CartaCapital: O que o próximo governo precisa levar em conta ao montar um programa para a saúde?
José Gomes Temporão: O País passa por uma transição epidemiológica. Hoje, temos um padrão de adoecimento e mortalidade bem próximo dos países desenvolvidos. A principal causa de morte no Brasil são as doenças cardiovasculares e cerebrovasculares. A segunda causa de morte é o câncer. Temos, porém, uma especifcidade: a importante expressão das causas externas, principalmente homicídios e acidentes de trânsito. Esse terceiro fator não está presente com a mesma dimensão nos países desenvolvidos. O Brasil também passa por uma preocupante transição demográfica, com o envelhecimento da população.
CC: Quais são os reflexos desse fenômeno na saúde?
JGT: O Brasil fez em 50 anos o que a França levou cem anos. Nossa taxa de fecundidade está em 1,7 filho para cada mulher fértil. A mortalidade infantil cai de maneira acelerada. Em 25 anos, teremos mais brasileiros acima de 60 anos do que na faixa de 0 a 19 anos. Haverá, portanto, uma carga maior de doenças crônicas. Teremos mais pacientes com a necessidade de tomar medicamentos por longos períodos e de ter cuidados especiais. A Organização Mundial da Saúde nos alertou. Nas próximas décadas, as demências e os transtornos neuropsíquicos terão importância cada vez maior. Precisamos preparar o sistema para agüentar a demanda de pacientes com mais idade.
CC: As mudanças no padrão alimentar também preocupam?
JGT: Sem dúvida. Com a mulher no mercado de trabalho, os brasileiros cada vez mais se alimentam fora de casa e consomem produtos industrializados, com alto teor de sal, gordura e açúcar. Essa transição do padrão alimentar, associada ao fenômeno do sedentarismo da vida urbana, leva a um crescimento assustador do diabetes do tipo 2 e de alterações na pressão arterial. Essa é, por sinal, a base das doenças cardiovascularese neurovasculares. Hoje, metade da população está acima do peso. E há ainda um quarto fenômeno, o veloz avanço das tecnologias de saúde.
CC: Por que as novas tecnologias representam uma ameaça?
JGT: Elas representam custos cada vez maiores. E preciso introduzir algum tipo de racionalidade na avaliação dessas tecnologias, adotar critérios de custo-efetividade. Uma incorporação acrítica é um grave perigo para a sustentabilidade financeira do SUS. Normalmente esses produtos são protegidos por patentes. O produtor pode estabelecer o preço, mas nem sempre a sua incorporação tem impacto expressivo do ponto de vista da saúde pública. O governo Dilma conseguiu aprovar a lei que cria a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. A Inglaterra tem um instituto chamado Nice, que faz exatamente isso, desenvolve pesquisas para avaliar até que ponto aquela tecnologia tem impacto na saúde pública.
CC: Chegaremos ao ponto de fixar um limite de gasto para uma nova tecnologia, ainda que garanta uma sobrevida ao paciente?
JGT: E um tema espinhoso. Vamos avaliar uma hipótese. Surge um novo medicamento para o tratamento de determinado tipo de câncer e ele garante uma sobrevida de dois meses, mas a um custo absurdo. O governo deve pagar? Quem tem uma doença grave gostaria de viver mais, por dois meses que seja. Mas aí surgem as indagações: Com que qualidade de vida? Mudaria o prognóstico? Esse paciente vai, inevitavelmente, morrer. E uma questão na fronteira do direito e da ética. Muitos países estabelecem limites.
CC: E o Brasil?
JGT: E, talvez, uma das nações que mais oferecem alternativas. O SUS financia o acesso a um conjunto de medicamentos de alto custo. Somos o segundo maior transplantador de órgãos do mundo. A sociedade esforça-se para atender a todas as demandas, mas há limitações financeiras. Os critérios têm de ser construídos por todos, e não somente por uma burocracia profissional e fria.
CC: A sociedade terá de decidir quanto está disposta a pagar para garantir um ano a mais de vida de um paciente?
JGT: Teremos de enfrentar essa questão no futuro próximo. Há, porém, outro aspecto que merece atenção, a percepção social do acesso à saúde. A saúde é vista como um bem maior que deve ser protegido e garantido pelo Estado? Ou como uma coisa importante, mas que pode ser comprada? São dois conceitos bastante distintos. Para muitos, o processo de ascensão social só está completo quando o cidadão tem um carro, uma casa própria e um plano de saúde. E uma visão que diminui a medicina pública.
CC: Para atender a um quarto da população, o mercado privado detém quase 60% dos recursos disponíveis para a saúde. O restante é investido pelo SUS para atender 75% dos habitantes. A iniquidade é grande, mas podemos abrir mão dos planos?
JGT: A Inglaterra construiu um Estado de Bem-Estar Social no qual o serviço universal de saúde sobreviveu ao thatcherismo e a todas as tentativas de fragilização. Hoje, a medicina privada inglesa é absolutamente residual, explora poucos nichos. Por quê? A sociedade britânica vê o sistema público de saúde como um patrimônio. Outro exemplo é o Canadá. Em 2004, fizeram uma enquete para saber quem seria a personalidade canadense mais importante da história do país. E o escolhido foi Tommy Douglas, criador do sistema público de saúde deles.
CC: O que fazer para o SUS se tornar um orgulho nacional?
JGT: O primeiro desafio é resolver o problema do financiamento. Há um consenso ensurdecedor diante do tema. Todos dizem ser favoráveis a aumentar os recursos para a saúde pública.
CC: Mas os ministros da Saúde continuam de pires na mão…
JGT: E verdade. O Congresso aprovou a Emenda 29 sem reservar 10% das receitas da União para a saúde, uma frustração enorme. Na minha gestão, também tivemos a perda da CPFM. Agora, temos 2,2 milhões de assinaturas para apresentar uma emenda de iniciativa popular que garanta esses 10% para o SUS, mas a pauta não anda no Legislativo. Na prática, há uma redução gradual da participação da União no financiamento. Cada vez mais o ônus incide sobre estados e municípios. Precisamos de uma estrutura financeira mais sólida no sistema público. Ao garantiro repasse de 10% das receitas brutas da União para a saúde, compensaríamos a perda da CPMF em 2007.
CC: Quanto era a CPMF na época?
JGT: Em valores atualizados, cerca de 50 bilhões de reais, o que representa 40% do orçamento atual. Também precisamos rediscutir os gastos tributários em saúde, ou seja, as isenções e renúncias fiscais oferecidas pelo governo ao mercado privado. Hoje, não há qualquer critério. Se uma madame fizer uma cirurgia estética por que não gosta de seu nariz, ela pode abater as despesas do Imposto de Renda. Em 2012, segundo o Ipea, mais de 15 bilhões de reais deixaram de ser arrecadados com essas renúncias.
CC: O que é considerado “gasto tributário em saúde”?
JGT: O Ipea considerou quatro elementos: as desonerações para a indústria farmacêutica, as renúncias fiscais de entidades filantrópicas, como as Santas Casas, o abatimento do Imposto de Renda de pessoas físicas, o que corresponde a mais ou menos metade desses 15 bilhões de reais, e as isenções para empresas. Não leva em conta os subsídios da União, dos estados e dos municípios para os planos de saúde do funcionalismo público. Os servidores, em vez de usar o sistema público, têm benefícios para usar atendimento privado. Mas quero ir mais fundo no impasse do financiamento. A macroestrutura econômica, do jeito que está montada, impede o financiamento adequado da saúde, da educação e de qualquer política social.
CC: Por quê?
JGT: Em 2012, a União alocou mais de 40% de seus recursos para pagamento de juros e amortização da dívida interna. Trata-se dos empréstimos captados pelo governo para realizar investimentos. Mas o que sobra para saúde? Uma porcentagem ínfima. Sem uma ampla reforma fiscal e tributária, continuaremos a enxugar gelo. O ministro Alexandre Padilha é refém dessa macroestrutura, como eu também fui. Aí permanece aquela visão assistencialista, de que o SUS é importante, mas só para os pobres. De modo algum, todo e qualquer cidadão deveria ter um clínico da rede pública para cuidar da saúde dele. E o acesso a níveis mais especializados só deveria ocorrer a partir desse ponto.
CC: Se sentir uma palpitação, ele deveria passar antes pelo clínico geral, e não ir direto ao cardiologista. É isso?
JGT: Sim, é muito mais racional. Hoje, se um usuário de plano de saúde acordar com dor de cabeça, ele pode marcar uma consulta diretamente com o neurologista. Nenhum sistema de saúde, público ou privado, consegue se sustentar nesse modelo. O que proponho é a universalização do Programa Saúde da Família, no qual todos, mesmo os mais ricos, deveriam entrar.
CC: Como obrigar todos a aderir ao Saúde da Família?
JGT: E uma discussão a ser feita. O importante é que todos os pacientes passem por um generalista antes de ter acesso aos níveis mais especializados de medicina, para não haver desperdício.
CC: O Canadá controla a oferta de profissionais por meio da regulação das vagas de residência médica. Dessa forma, há mais generalistas que especialistas. Seria uma opção para o Brasil?
JGT: Com certeza. Com isso, torna-se prioridade absoluta a estratégia sobre a atenção básica. E podemos criar uma carreira nacional para atrair jovens médicos para esse espaço de trabalho.
CC: É uma estratégia diferente do programa Mais Médicos, não?
JGT: Totalmente. A decisão política do Mais Médicos me parece adequada, há um déficit no interior que precisa ser suprido de forma emergencial. Mas estruturalmente o programa não toca no cerne. O jovem médico não atua nos rincões do País por não existir um horizonte de trabalho. A maioria dos profissionais encara o Programa Saúde da Família como um bico. Se eles receberem um salário bom, se tiverem opções de aperfeiçoamento e capacitação, oportunidades de crescer na carreira, talvez mudem essa visão.
CC: Dentro da própria atenção básica? Ou a experiência continuará como trampolim para uma especialização?
JGT: Vamos precisar sempre de psiquiatras, neurologistas, cardiologistas. O problema é que hoje há um desequilíbrio. Criamos um sistema cada vez mais fragmentado, no qual as portas de acesso às especializações são cada vez mais múltiplas. Há uma hiperespecialização médica. Conheço ortopedistas que só cuidam de pés, outros que só lidam com mãos, ombros, quadril.
CC: Em breve teremos otorrinos especializados apenas em orelha direita…
JGT: Pois é (risos). Aí entramos numa questão mais profunda: precisamos universalizar uma atenção básica centrada na clínica médica, de alta qualidade. Isso é indispensável para garantir racionalidade ao sistema. Mas também é preciso assegurar o acesso aos níveis mais especializados quando for necessário.
CC: Essa é a queixa de muitos usuários do SUS. Têm a atenção primária garantida num posto de saúde, mas enfrentam enorme dificuldade para marcar consulta com um especialista.
JGT: Hoje não há articulação de esforços entre União, estados e municípios. Cada um capacita o pessoal à sua maneira, elege as prioridades sobre seu território, gerencia da sua forma. Isso obriga o governo federal a construir espaços de pactuação tripartites ou bipartites. Todo mês esse povo reúne-se em Brasília, em longas discussões, mas pouco se avança. Dos mais de 5,5 mil municípios, só uns 200 têm mais de 100 mil habitantes. A grande maioria das cidades não tem estrutura para fazer nada.
CC: O que fazer?
JGT: O professor Gastão Wagner de Souza Campos tem uma proposta brilhante de dividir o Brasil em regiões sanitárias, a congregar um conjunto de municípios. Em cada região, haveria um hospital de referência, uma universidade, uma estrutura de governança que garanta certa autonomia para prover insumos e pessoal. Os recursos seriam partilhados com base em critérios epidemiológicos, populacionais e tecnológicos. Também é preciso rever certas leis que inviabilizam a gestão adequada dos serviços de saúde. Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, um prefeito não pode gastar mais de 50% de suas receitas com a folha salarial. Ao contratar médicos e enfermeiros, opta pela terceirização. E cada cidade faz isso à sua maneira. Há de tudo. Contratos legais e ilegais, cooperativas e falsas cooperativas, empresas de fachada…
CC: Parece um terreno fértil para a corrupção…
JGT: E preciso certa cautela na avaliação. Há um discurso conservador que chama tudo de privatização e não diz o que quer. Vou dar um exemplo. O Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ, está em uma situação de degradação total. E um hospital quaternário: faz ensino, pesquisa, é um centro de referência. Lá, o diretor não tem qualquer autonomia sobre a contratação dos funcionários. Se quiser mandar alguém embora, não pode. Todos os médicos estão protegidos pela estabilidade do funcionalismo. Para aprovar um concurso público, precisa do aval do Ministério do Planejamento, da Educação e até da Presidência. Sabe-se lá Deus quanto tempo perderá até vencer a burocracia. Quando preencher as vagas, terão se passado dois anos.
CC: A terceirização dos serviços é a solução do problema?
JGT: Essa questão é um tabu hoje. Todo mundo é contra. A esquerda opõe-se, assim como os sindicatos e as corporações médicas. Mas é inviável administrar um hospital de alta complexidade com uma base normativa dos anos 1950. Precisamos de um modelo de gestão mais flexível e profissional. Não entendo por que um profissional da saúde não pode ser contratado pela CLT, como qualquer outro trabalhador.
CC: O que fazer para reduzir a dependência brasileira das tecnologias de saúde estrangeiras?
JGT: Precisamos fortalecer o complexo industrial da saúde, estabelecer parcerias entre laboratórios públicos e privados, por meio do poder de compra do Estado e o BNDES como agente fomentador, no sentido de internalizar no Brasil a capacidade produtiva. Temos quase cem parcerias nesse sentido.
CC: O governo busca nacionalizar a produção de medicamentos de alto custo, mas não é o caso de investir mais em pesquisa?
JGT: De fato, o Brasil não pode tornar-se um mero consumidor de tecnologia desenvolvida fora, comprada pelo preço estabelecido pelo produtor. O País é o 13º do mundo em publicação de papers em revistas científicas. Quando analisamos as patentes nos deparamos, no entanto, com um traço. Como transformo esse conhecimento em tecnologia aplicável às necessidades do SUS? Precisamos aproximara academia da indústria, transformar essas pesquisas em produtos.
Assista ao depoimento do ex-ministro José Gomes Temporão dado ao Cebes com exclusividade: