A crise política e a Política de Saúde: uma saída pela esquerda

Liz Duque Magno*

 

Krísis (do grego) ou Crisis (do latim) era o termo utilizado pelos médicos antigos para definir o momento em que, atingida a fase mais aguda da doença e realizadas as intervenções disponíveis, encaminhava-se para o desfecho: morte ou cura.

 

Esta definição, embora pareça anedótica, bem se encaixa no nosso momento político atual. Em meio a panelaços, apitos, aprovações e reprovações, greves, prisões, manifestações, redução de direitos sociais, disputas entre legislativo e executivo, um clima crescente de instabilidade já não consegue mais esconder a crise política instalada.

 

É fato que desde as manifestações de junho de 2013, ocorreu uma alteração no cenário prioritário das lutas sociais no Brasil que voltaram às praças e avenidas depois de intensos períodos nos corredores institucionais. Como todo espaço político, as ruas estão em disputa por forças progressistas e conservadoras; terão êxito àquelas que conseguirem alterar a correlação de forças ao seu favor, se constituindo como direção cultural e política deste processo.

 

A esquerda “tradicional” parece anestesiada diante das possibilidades de ocupação do lugar que sempre lhe pertenceu, seja pela crítica cega ou pela defesa insensata das medidas do governo, ao tempo em que uma multidão de jovens trabalhadores segue almejando mais democracia e mais direitos sociais. Enquanto isso, uma direita ainda mais conservadora se reestrutura entre os deslizes do Palácio do Planalto, ganhando apoio popular através dos aparelhos de hegemonia como a mídia, instituições educacionais, religiosas, dentre outras.

 

A crise econômica é um elemento fundamental para o aprofundamento da crise política. A crise do capitalismo internacional que teima em arrastar-se, levando consigo investimentos externos e a confiança do mercado financeiro, expõe a fragilidade do neodesenvolvimentismo como modelo de desenvolvimento adotado nos últimos períodos, onde o crescimento econômico pautado no consumo e limitado aos marcos do neoliberalismo ocorre associado a políticas de transferência condicionada de renda, valorização do salário mínimo e ascensão social sem romper com as iniquidades sociais. Com baixos índices de crescimento, a máxima do “todo mundo ganha” dá lugar à lógica do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, tornando inviável o pacto de conciliação de classes de sua frente de sustentação política. Inviável, também, tornam-se as políticas sociais, primeiras penalizadas no momento de “austeridade” imposto pelos ajustes fiscais.

 

Na Política de Saúde, a agenda neodesenvolvimentista permitiu a ampliação do acesso e qualidade dos serviços, prioritariamente na atenção básica, melhorias significativas nos indicadores de saúde, principalmente aqueles relacionados às condições de vida e acesso aos serviços. Entretanto, como já apontado por diversos estudos, grande parte destas conquistas são contidas pela redução do financiamento público em valores relativos (ainda que tenha aumentado em valores brutos) e o fortalecimento do setor privado na gestão dos serviços públicos e na prestação direta destes. A expansão e consolidação do mercado de planos e seguros privados de saúde (com uma regulação cada vez mais branda e sem ressarcimento aos cofres públicos dos serviços prestados pelo SUS quando procedimentos são negados aos usuários dos planos), a aprovação da entrada do capital estrangeiro na prestação de serviços de saúde, os cortes no orçamento e a proposta de constitucionalização dos planos privados para trabalhadores ameaçam gravemente a concepção da saúde como direito de cidadania.

 

Essas e outras medidas contribuem para o estabelecimento do modelo de Cobertura Universal de Saúde no Brasil, apontado recentemente como parte do rearranjo do capital financeiro internacional. Nesse modelo o setor privado é complementado pelo público que oferta os serviços apenas para quem não pode pagar pela assistência, invertendo em absoluto a proposta do SUS como um sistema universal que oferece assistência igualitariamente, independente do poder de consumo.

 

O lobby dos planos privados na formulação da política de saúde e sua influência na aprovação de pautas no congresso nacional podem ser justificados pelo suntuoso financiamento destas agências financeiras às campanhas políticas para o executivo e legislativo, reafirmando a importância da reforma política para o debate da saúde, que diante da contrarreforma em trâmite no congresso, não contemplará as necessidades da população se não for construída através de um processo amplo e democrático, como uma constituinte exclusiva e soberana para este fim.

 

Numa conjuntura tão adversa, onde a correlação de forças mantém-se favorável às classes dominantes que não pretendem perder seus privilégios, o desmonte das conquistas sociais parece um fim certo. A morte do SUS gestado pelo Movimento da Reforma Sanitária substituído por um SUS “balcão de negócios”, pode ser a tragédia por vezes anunciada quando em sua idealização, a Reforma Sanitária propunha que uma reforma setorial não se sustentaria sem uma reforma social ampla que apontasse para uma revolução no modo de vida. No entanto, o momento é de crise, ou seja, de decisão, separação, julgamento; momento agudo em que a morte ou a cura tem a mesma probabilidade de ocorrência, a depender das medidas que forem tomadas.

 

Neste momento propício para a reação, o mais estratégico não é debater se a crise econômica está gerando uma crise política ou se a crise política é a responsável pela crise econômica, como fazem governo e oposição. A negação da crise, apenas contribui para que medidas efetivas de enfrentamento sejam proteladas até que o desfecho não seja outro, senão, a morte.

 

É fundamental repensar o papel do Estado, o modelo de desenvolvimento e o lugar da saúde e das demais políticas sociais. A “dessetorialização” e a construção do debate da saúde junto com as demais organizações populares, sindicais, partidárias, intelectuais, como parte do projeto de transformações sociais e ampliação de direitos, se faz mais do que necessária. A conjuntura nos exige uma resposta política à altura através da estruturação de uma frente política ampla, de esquerda, com um programa unitário, que possa alterar a correlação de forças através da disputa ideológica de um projeto para o país que aponte para as reformas estruturais há tanto tempo esperadas pelo povo brasileiro.

 

*Fonoaudióloga, mestre em saúde coletiva, compõe a diretoria executiva do Cebes e é militante da Consulta Popular.