A Dupla Porta no SUS, por Lenir Santos
Por Lenir Santos*
Assunto que tem sido crucial na assistência à saúde, conhecido como “duas-portas” ou “dupla porta” ou “cobrança por fora no SUS” e que está presente no serviço público de saúde desde os anos 90, agora será tema de audiência pública no STF.
A dupla porta, vamos chamá-la assim, é uma forma, que o poder público encontrou de aumentar os recursos financeiros do hospital público e a remuneração do médico servidor público.
Sua forma de cobrança se dá sempre mediante uma fundação de apoio, privada, que se instala no âmbito do serviço público hospitalar e passa a gerir o hospital como se privado fosse, instituindo duas categorias de cidadão: os com e os sem planos de saúde. Tem sido bem comum os hospitais públicos instituírem esse sistema de atendimento desigual ao paciente.
A chamada “duas portas” traduz-se pela preferência de atendimento nos hospitais públicos, às pessoas que possuem planos ou seguro-saúde, ou que se dispõe a pagar pelos serviços prestados. Para cada tipo de clientela, um tipo de acesso aos serviços; para os que pagam, garante-se atendimento prioritário, sem filas, em sala de espera confortável, com consulta pré-agendada etc.; aos demais (cidadãos brasileiros, com direito à saúde de forma igualitária), o atendimento é de segunda classe; consulta e exames com espera de semanas ou meses, filas, a insensatez e o desrespeito na marcação de todas as consultas do dia em um único horário; salas de espera sem o menor conforto, cirurgias agendadas em datas incompatíveis com a necessidade da intervenção e assim por diante.
O hospital é público, o patrimônio é público, o direito à assistência à saúde é isonômico, os servidores são públicos, mas a cobrança direta é instituída e o tratamento é diferenciado. Os hospitais com “duas portas” têm uma fundação de apoio, que, num passe de mágica, transforma tudo em privado. Até o seu servidor passa a poder exercer a medicina privada no âmbito público, recebendo valores complementares à sua remuneração salarial, o que é uma aberração jurídica.
Essas fundações de apoio — que são instituídas, geralmente, por servidores públicos e seu patrimônio depende de recursos públicos — celebram convênio com planos e seguradoras de saúde e reservam parte dos serviços dos hospitais públicos “apoiados”, a essa clientela, em desrespeito, ainda, ao art. 32 da Lei no 9656, de 1998 que determina o ressarcimento(1) aos cofres públicos pelas operadoras de planos e seguro saúde, em razão dos serviços prestados aos seus beneficiários.
Os recursos arrecadados são depositados nos cofres das fundações de apoio privadas (2) e destinam-se, dentre outro, ao pagamento de gratificações aos servidores públicos (médicos). A administração pública é conivente com essa situação, com ela convivendo há anos, sem grandes reparos feitos pelos órgãos de controle interno e externo (exceto os conselhos de saúde que sempre repudiaram essa burla, lutando contra ela há anos e membros do Ministério Público), defendendo-a em nome da “eficiência e possibilidade de captação de recursos extras e, por que não dizer, pelas facilidades administrativas que essas fundações privadas permitem”.
O Ministério Público, no estado de São Paulo, há mais de dez anos, propôs uma ação civil pública contra a instituição da “dupla porta” no Hospital das Clínicas, autarquia estadual; ação que não logrou efeito, visto que o Poder Judiciário, em decisão de primeira e segunda instância, entendeu legal esse tipo de discriminação social, de violação à Constituição Federal e à Constituição paulista que veda expressamente a cobrança nos serviços públicos de saúde — (art. 222, V), e à garantia da gratuidade prevista no art. 46 da Lei no 8.080/90. E a partir de 2012, fere a Lei Complementar 141, art. 3º.
Os serviços de saúde públicos devem ser de acesso universal e igualitário, não podendo haver nenhum tipo de discriminação ao cidadão usuário. A Lei Complementar 141, em seu art. 3ª, determina serem gratuitos os serviços públicos de saúde, de acesso universal, não podendo haver serviços preferenciais para determinados extratos sociais em detrimento de outros.
Ao determinar a Lei 9656 o ressarcimento pela operadora aos cofres públicos quando o cidadão detentor de plano de saúde utilizar serviços públicos, deu consequência ao acesso universal e igualitário, obrigando que a operadora, após o atendimento, ressarça os cofres públicos, uma vez que recebeu para garantir evento futuro e aleatório (que é o agravo à saúde).
Essa medida legislativa visou inibir o atendimento discriminatório ao cidadão que não tem plano de saúde; mas na prática tem sido duplamente punido porque as vagas dos hospitais públicos serão utilizadas de forma privilegiada por aqueles que podem escolher serviços privados para o seu atendimento.
Se a demanda por serviços públicos é escassa em relação às necessidades da população, como admitir que aqueles que têm outras formas de atendimento tenham privilégios no serviço público? Isso sem falar dos médicos que acabam por receber valores adicionais das operadoras de planos por atender privilegiadamente seus beneficiários.
Essa prática rompe com o princípio da igualdade, da equidade e fere o disposto no art. 196, no art. 3º da LC 141 e art. 46 da Lei 8080. Esse fato coloca o nosso país na contramão do caminho da justiça social, mantendo privilégios aos privilegiados.
País justo é um país saudável.
*Lenir Santos é doutora em saúde pública pela Unicamp; especialista em direito sanitário pela USP; coordenadora do curso de especialização em direito sanitário Idisa-Sírio Libanês. Advogada.
Notas
(1) Em artigo escrito em dez/1992 – Saúde em Debate – Cebes – 37 defendia que “se o segurado escolhe por contingência ou por sua livre vontade, um serviço público, a seguradora ou plano de saúde estaria obrigada a reembolsar o Serviço Público”. (Aspectos do financiamento das ações e serviços de saúde no SUS: seguro saúde e outras formas de medicina supletiva).
(2) Não se pode confundir a fundação estatal (pública) com fundação de apoio (privada). São categorias jurídicas muito diferenciadas. A primeira depende de lei e integra a Administração Pública; a segunda pode ser livremente criada pelo particular em cartório e não integra a Administração Pública.