A esperteza publicitária
Laurindo Lalo Leal Filho *
O estádio do Pacaembu foi palco da segunda partida das finais do campeonato paulista deste ano. Com o empate em um a um, o Corinthians tornou-se campeão, já que vencera o primeiro jogo na Vila Belmiro. O “próprio da municipalidade paulistana”, como o estádio era chamado pelo locutores de outras épocas, viveu um dia de festa (apesar das trapalhadas da Federação na hora de premiar os vencedores, causando até um princípio de incêndio).
O Pacaembu, velho de quase 70 anos, a serem completados no ano que vem, deu conta do recado. As reclamações da imprensa se restringiram ao gramado, realmente muito mal cuidado pela atual administração. Sobre o pior, que estava à vista de todos, não se ouviu nenhum pio, por motivos óbvios.
Placas de publicidade, colocadas estrategicamente ao redor do campo para obter os melhores e mais constantes ângulos das câmeras de TV, anunciavam bebidas alcoólicas cuja propaganda pelo rádio e pela televisão é proibida no horário em que o jogo se realizava. Sem nenhum pudor a TV anunciava, ainda que indiretamente, marcas de cachaça e conhaque que, pela lei, só poderiam ser mostradas depois das 21 horas.
As tentativas da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de impedir que bebidas de teor alcoólico mais baixo, como as cervejas e os vinhos, continuassem a ser veiculadas a qualquer hora do dia nunca vingaram. E uma das razões, sem dúvida, está no fato das cervejarias patrocinarem as principais transmissões de eventos esportivos no país.
Ainda assim, a lei determina que bebidas com mais de 13 graus na escala Gay Lussac (caso da cachaça e do conhaque) só podem ser propagandeadas pela TV e pelo rádio entre as 9 da noite e as 6 da manhã. Mas, na final do Paulistão, lá estavam sendo exibidas sem nenhuma restrição em plena tarde de domingo.
“Belo atalho”
Emissoras, agências de publicidade, anunciantes e concessionários dos espaços publicitários no Pacaembu (e de outros estádios onde a prática se repete) encontraram um belo atalho para burlar a lei. Além de resistirem bravamente a possíveis restrições à propagada diurna de cervejas, conseguiram veicular também nesses horários bebidas de alto teor alcoólico, mostrando toda a sua esperteza. A cada tomada de câmera da pinga que “é uma boa idéia” ou do conhaque “macio”, risos de superioridade devem aparecer nas faces dos que operam à margem da lei.
Afinal eles são mesmo muito espertos.
A essa gente não interessa, por exemplo, os resultados de duas pesquisas recentes realizadas aqui e na Europa. A brasileira, apoiada pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e divulgada pela Fundação Oswaldo Cruz, mostra a diferença de atitude em relação à bebida dos adolescentes que ficam mais ou menos tempo expostos à propaganda desses produtos. Os primeiros consomem álcool em quantidades maiores do que os outros.
Os pesquisadores estudaram o comportamento de estudantes de 14 a 17 anos, da rede pública de ensino de São Bernardo do Campo, diante da exposição de 32 propagandas de cerveja. Entre os adolescentes que já haviam sido expostos previamente a mais mensagens publicitárias, a pesquisa constatou que o consumo de bebidas alcoólicas é de cinco a 10 vezes maior. “As propagandas que mais chamavam a atenção dos estudantes estavam associadas a sexualidade, humor e futebol”, disse o principal autor do trabalho, Alan Vendrame, pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Direto à geladeira
Na Holanda, cientistas da Universidade de Radboud conduziram um experimento com 80 estudantes universitários do sexo masculino, de idades entre 18 e 29 anos, divididos em quatro grupos. Um deles assistiu ao filme American Pie – A Primeira Vez é Inesquecível, com muitas referências ao consumo de bebidas alcoólicas durante a trama e com propagandas desses produtos nos intervalos. Outro grupo assistiu ao mesmo filme sem nenhuma propaganda. Um terceiro grupo assistiu ao filme 40 Dias e 40 Noites, que tem menos referências a bebidas alcoólicas, mas que foi interrompido algumas vezes por comerciais de bebidas. E o quarto assistiu ao mesmo filme, sem intervalos.
Durante a exibição os participantes tinham acesso a uma geladeira com cerveja, pequenas garrafas de vinho e refrigerantes. Aqueles que assistiram ao American Pie serviram-se de 1,5 copo a mais de cerveja ou vinho do que os que assistiram ao 40 Dias e 40 Noites. Os resultados sugerem que o efeito do conteúdo de álcool na TV não só é capaz de aumentar a compra de bebidas alcoólicas, mas pode também estimular o seu consumo imediato.
“Nosso estudo mostra claramente que exibir bebidas alcoólicas em filmes e propagandas não apenas influi nas atitudes das pessoas e nas regras para bebida na sociedade, mas pode funcionar como uma sugestão que afeta o desejo e o subsequente consumo de bebida”, afirmou o pesquisador Rutger Engels, que liderou o estudo. A pesquisa foi publicada na edição de maio-junho de 2009 da revista científica britânica Alcohol and Alcoholism.
Consequências conhecidas
As consequências desse consumo são mais do que conhecidas: doenças, atitudes antissociais, mortes no trânsito, entre outras. Mas a resposta dos publicitários e dos seus associados é sempre a mesma: a autorregulamentação resolve tudo. Afirmação igualmente desmentida por outra pesquisa conduzida por Alan Vendrame. Ele investigou a violação das regras impostas pelo código de ética do Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e constatou que 12 das 16 regras para a publicidade de bebidas alcoólicas são violadas. Entre elas, a que impede a propaganda de utilizar imagens, linguagens ou ideias sugerindo ser o consumo do produto um sinal de maturidade ou que contribua para o êxito profissional, social ou sexual.
A determinação de que os personagens da propaganda não devam ter nem aparentar ter menos de 25 anos também não é cumprida. Assim como a que impede o apelo sexual. O pesquisador entrevistou 282 estudantes de 14 a 17 anos de escolas públicas também de São Bernardo dos Campo, mas não os mesmos que participaram da outra pesquisa acima mencionada.
São constatações que mostram claramente a necessidade da presença do Estado nesse tipo de relação. A sua ausência não só permite o desrespeito às regras de autorregulamentação, como dá aos agentes da propaganda a sensação de total impunidade, levando alguns deles a buscar caminhos tortuosos para burlar o pouco de lei existente. Como no caso das placas publicitárias colocadas nos campos de futebol para serem exibidas pela TV.
* Sociólogo e jornalista, professor de Jornalismo da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero