A imposição questionável do Exame de Ordem dos Conselhos Regionais de Medicina

helenoO Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) saiu na frente de possível e futura deliberação do Conselho Federal de Medicina impondo por Resolução estadual de caráter inconstitucional uma prova regional para que qualquer médico possa ser registrado para exercer a profissão no Estado de São Paulo (CREMESP, 2012).

Se um médico formado em outro estado resolver se registrar profissionalmente no dia seguinte à realização do exame obrigatório, só poderá receber o registro do CRMESP até doze meses depois sendo impedido da prática profissional e punido por invadir o mercado regional dos legisladores por medidas de Resolução administrativa.

Os Conselhos Regionais de Medicina andam legislando sobre a vida profissional de médicos e exorbitando sobre a vida alheia e outras profissões de saúde, como exemplo recente do CREMERJ criminalizando o exercício profissional de médicos que ousem apoiar ou assistir parturientes, enfermeiros, doulas e quaisquer outros que apoiem quem resolva ter filhos em casa, e até proibindo que acompanhem partos em casas de parto oficiais e hospitais, contrariando a lei vigente. (BRASIL, 2005; CRMERJ, 2012)

A imposição da Prova escrita em exame de múltipla escolha bem ao estilo anos noventa do mamãe-mandou-marcar-a-letra-“d” é mais questionável que o formato do exame imposto contra médicos formados no exterior, especialmente os que estudaram em Cuba, reconhecido país formador de médicos para os países não alinhados aos norte-americanos (BRASIL – MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO – MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2011).

A medida de impor uma prova escrita única para praticar a profissão médica é caricatural como é o exame de ordem da OAB, que reprova 90% dos graduados em escolas de direito. Não se questiona quem permitiu abrir, quem deveria avaliar, e quem lucra com tantas escolas de má qualidade, para submeter seus bacharéis a tal (v)exame. Também não existem órgãos federais que se proponham a avaliar como corregedores ou “Conselhos Nacionais” a natureza pedagógica, técnica e científica de tais (v)exames. Existe um conflito básico de interesses em que os formuladores e idealizadores dos testes de múltipla escolha são concorrentes de mercado daqueles que desejam testar. No caso dos Conselhos Profissionais estaduais e federais a situação se complica por que são polícias administrativas com poder federativo delegado pelo estado nacional para regulação da prática profissional.

Não basta dizer que uma prova tipo “provão” não avalia. Os órgãos que desejam instituí-lo são capazes de maquiar a prova com artefatos sem mudar a essência do processo. Os argumentos em contrário da DENEM – Direção Nacional dos Estudantes de Medicina assemelham-se a algo do tipo ‘fumei, mas não traguei’. O boicote político dos estudantes das universidades públicas à avaliação única foi se esvaindo ao longo dos anos e enfraquecendo os representantes em Brasília diante da SESU/MEC até que um racha político revelou sua inconsistência.

O problema apontado por alguns médicos e colegas de outras profissões é que os interesses de grandes empresários dos Escolões de 3o Grau são influentes no MEC e liberam faculdades e novas vagas em cursos de Medicina onde querem. Tem poder dentro do Conselho Nacional de Educação. Derrubam ministros.

Os empresários precisam vender o fetiche de formar médicos em novas faculdades de medicina privadas. Desejam ofertar cursos pelo país afora e pretendem ganhar muito dinheiro com isso. As faculdades de direito já foram suficientemente destruídas ao ponto de legitimar o provão do Amigo Urso e “cansado” da OAB.

Divulga-se pela imprensa corporativa médica um falso conflito entre empresários de faculdades tipo “armazém de esquina” contra faculdades que se julgam de elite e não desejam apoiar o desenvolvimento do SUS como prevê a lei brasileira. (BRASIL, 1988; 1990)

Muitos dos alunos das faculdades públicas de medicina se orgulham de dizer que serão especialistas para a elite e nunca vão trabalhar com a assistência governamental seja no nível primário ou no terciário público. Essa pretensão de só formar especialistas acaba por legitimar o “provão” de múltipla escolha.

ExamA direção política consciente e politizada dos alunos das faculdades públicas mais famosas apregoa o boicote ao exame e por outro lado não consegue mobilizar a sociedade para trocar as diretrizes corporativas de CFM, AMB e FENAM. Essas instituições são os braços de polícia administrativa, política e sindical que estão também a serviço da mesma ideologia neoliberal no modelo do mercado médico. A briguinha da AMB, CFM e FENAM contra faculdades novas é do tipo ‘me engana que eu gosto’. Não é para valer. Ao aplicar o provão a todos os médicos recém-formados vão beneficiar os empresários legitimando o que não teria como ser defendido. O provão iguala todos e apaga a origem.

O provão é apenas um complemento necessário, já que não convém fechar faculdades dos empresários que formam médicos, contratam esses mesmos profissionais no mercado a baixíssimo preço, e vendem planos de saúde suplementares privados. Daria na vista se fosse contestado o esquema de formação empresariada rápida na maioria das faculdades que não leva alunos para a atenção primária, não tem hospital vinculado ao SUS, não integra medicina com outras profissões de saúde, não tem professores com dedicação exclusiva, não pesquisa, não estuda, não lê, e não publica.

Os empregadores donos de hospitais privados e de convênios desejam mão-de-obra desse tipo para desvalorizar o salário dos médicos que contratam. Pagando 10 reais pela consulta médica dos médicos credenciados em consultório para atender convênios estão degradando o mercado liberal. Acumulam lucros e integram o grupo de formadores com o de consumidores. Maximizam o lucro degradando a profissão.

Os partidos de esquerda e alguns velhos sindicalistas também não gostam dos médicos por razões históricas. A corporação médica aderiu muito facilmente, para não dizer gostosamente, às estratégias excludentes de mercado praticadas em passado recente. Ficou marcada pelo estigma de discriminar pobres, atender mal e não cumprir horário de trabalho para o atendimento da população nos empregos governamentais.

A imprensa das cinco famílias que dominam a Mídia televisiva e Jornalões no Brasil reforçou a imagem de alpinismo social entre os médicos na intenção de promover a venda dos serviços privados bloqueando o desenvolvimento do SUS. Juntando tudo o que a TV associada às seguradoras de saúde mostra diariamente os médicos de serviços públicos sempre são vilões e incompetentes. A imagem social profissional dos médicos é degradada propositalmente para vender planos e seguros de saúde e desestimular a organização da população para reivindicar um sistema de saúde pública socialmente justo.

A lei de responsabilidade fiscal criada pelos neoliberais foi o último garrote para impedir a expansão dos serviços públicos. O rádio e a TV martelam diariamente o “inchaço da máquina pública” e pedem cortes de gastos públicos via estado mínimo neoliberal quando não há polícia civil, não existem profissionais de saúde, não existem professores.

O estado também está degradando a profissão médica reduzindo o ensino de 3o grau à custa da política que premia pesquisa CONTRA o ensino e obriga à sobrecarga os que se dedicam às salas de aula. A CAPES e CNPq exigem alta quantidade de publicações em pesquisa para conceder apoio financeiro a projetos. Grupos representativos de pesquisadores em várias especialidades médicas e de saúde disputam para ver quem não dá aula buscando trabalhar em pesquisa e escrever artigos para publicação em periódicos de maior impacto no mercado científico.

Na contramão da obrigação de pesquisar e publicar o Governo Federal respondeu à greve dos professores das Instituições Federais de Ensino – IFES determinando em junho de 2012 aumentar de oito para doze horas semanais a carga de trabalho em sala de aula acima do que dispõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. Dessa maneira punem os docentes que mais trabalham, reduzindo-lhes o tempo e as energias para trabalhos de pesquisa e extensão. Os professores de medicina não são exceção à regra. São “punidos por ter cachorro” quando ministram muitas aulas, e também são “punidos por não ter cachorro” quando publicam e pesquisam menos. Perdem bolsas, não conseguem financiamento para pesquisa.

A pesquisa remunera de duas formas. Prestígio é a primeira recompensa e a profissão médica já o perdeu com o assalariamento por baixo. O segundo prêmio são as bolsas de produtividade científica restritas a 1% dos “produtores”. Elas são distribuídas entre o grupo que dispõe segundo lógica circular quem atende ou não aos critérios de distribuição das bolsas e dos financiamentos de projetos de pesquisa. Quem não “produz” perde R$1.500,00 (um mil e quinhentos reais) mensais livres de imposto de renda. Para os pesquisadores de universidade pública que têm bolsa o ideal é colocar um pós-graduando para dar aulas e se internar escrevendo e pesquisando. As atividades de pesquisa devem ter se intensificado durante a greve de professores em sala de aula.

Em algumas universidades foram desenvolvidos mecanismos de captar recursos extra orçamentários. São criadas taxas de pedágio sobre financiamentos conseguidos pelos docentes que supostamente revertem em benefício dos que necessitam de apoio em momentos de dificuldade ou urgência. Inventaram um modo cruel de piorar a situação. As verbas suplementares de socorro a pesquisadores são agora restritas àqueles que as utilizam para completar um financiamento já obtido. Uma verba destinada ao socorro de professores em dificuldades passou a ser exclusiva de quem já tem financiamento. É a aplicação egoísta do neopetencostalismo científico interpretando ao pé da letra o “princípio de Mateus13:12”, tomando tudo de quem já não tem nada.

Existe, portanto, uma sinergia de coincidências. O mercado de serviços de saúde quer médicos baratos produzidos em massa e testados em provão que iguala os bons aos ruins. As escolas públicas não querem mais produzir alunos bons na graduação. Os políticos e muitos sindicalistas não gostam da corporação médica pela sua postura social histórica. A direita combate o SUS por meio de seus deputados e senadores médicos neoliberais. Os alunos de medicina que desejam alpinismo social não querem ser produzidos como bons médicos gerais e preferem a figura da especialidade precoce. Os professores “vencedores” das grandes faculdades públicas apoiam o esquema regressivo de Ciência e Tecnologia e não desejam dar aulas.  O governo premia com financiamentos quem não dá aulas e pune exigindo maiores cargas horárias daqueles que já as carregam sobre os próprios ombros. Os empresários donos de faculdades de medicina desejam abrir muitas escolas médicas e estão nadando de braçadas nessa confluência de interesses.

Para piorar, alguns defensores de nichos de mercado locais e regionais da medicina desejam criar nichos para seus pupilos criando exames de barreira em que somente seus alunos passarão. Criam sofisticados esquemas de ensinar a passar nas provas e oportunamente fraudá-las se possível. Tornam a seleção para residência médica uma farsa antidemocrática e criam novos “cursinhos para exame de residência”. Todos trocam benefícios recíprocos e não desejam mudar a essência do sistema. E vamos ficar reclamando de uma prova? A prova é só a ‘cereja do bolo’. O bolo está podre.

É necessário um sistema público e democrático de avaliação durante o curso universitário, ao final da graduação e que seja periódico no mercado de trabalho. O sistema de avaliação deve prestar contas à população sobre os avanços e medidas para aprimorar o ensino das profissões de saúde pago com os impostos do povo. A saúde pública é importante demais para se deixar avaliar por uma nova agência governamental ou por grupos profissionais corporativos. Essa é uma responsabilidade de estado e compete aos ministérios da saúde, previdência social, educação e trabalho. O projeto de avaliação teria que ser público e não pode ser controlado pela corporação profissional que se beneficia na concorrência pelo mercado e pelo domínio dos métodos empregados para fazer as avaliações até o presente momento.

Heleno R Corrêa Filho.

Referências:
BRASIL – MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO – MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria Interministerial 278/2011 – Institui o REVALIDA – Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos expedidos por universidades estrangeiras. Diário Oficial da União, v. 2011, n. 53:12-17, p.12-17, 2011. Disponível em:. Acesso em: 15Junho2012.

BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. v. 2009, n. 14 outubro de 2009, p.Meio digital eletrônico, 1988. Disponível em:.

______. LEI – 8080 de 19/09/1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências., v. 2009, n. 14 outubro de 2009, p.DOFC – Diário Oficial da União PUB  20/09/1990 – pagina 18055 coluna 1,, 1990. Disponível em:. Acesso em: 20/09/1990.

______. LEI Nº 11.108, DE 7 DE ABRIL DE 2005 – Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília DF, 2005. Disponível em:. Acesso em: 07/04/2005.

CREMESP. Exame do Cremesp: Resolução nº 239 torna obrigatória a avaliação para o registro profissional. Noticias, 2012. Disponível em:. Acesso em: 25/Julho/2012.

CRMERJ. 265; 266/2012: Resoluções 265 e 266/2012 -265 Dispõe sobre a proibição da participação de médico em partos domiciliares. 266 Dispõe sobre a responsabilidade do Diretor Técnico em relação à assistência perinatal prestad por pessoas não habilitadas e/ou de profissões não reconhecidas na área da saúde. Rio de Janeiro RJ, 2012. Disponível em:. Acesso em: 13/Julho/2012.